Fábricas interditadas e investimentos atrasados: o que está por trás da queda na vacinação de crianças no Brasil

Vacinas contra difteria, tétano, coqueluche e tuberculose têm problemas de abastecimento, após interdições de fábricas no Instituto Butantan e na Fundação Ataulpho de Paiva; imunização infantil contra essas doenças são as que registram as maiores quedas
Por Diego Junqueira
 22/09/2020
Foto: Divulgação/Governo de SP

Enquanto todos se preocupam com a vacina para covid-19, uma outra questão ligada à imunização põe em risco a saúde dos brasileiros: a queda histórica no número de crianças vacinadas. Com duas antigas fábricas interditadas, houve redução da produção nacional, o que minou o estoque de doses contra difteria, tétano, coqueluche e tuberculose – vacinas que acumulam hoje as maiores quedas na cobertura vacinal infantil, segundo dados do Programa Nacional de Imunizações (PNI), do Ministério da Saúde.

Em declínio desde 2015, a vacinação infantil teve o pior resultado no ano passado, quando nenhuma meta foi alcançada pela primeira vez em 20 anos. Entre as principais vacinas aplicadas em bebês com até um ano, o menor índice foi o da pentavalente, que chegava a 95% das crianças há cinco anos, mas recuou para 70% em 2019. Essa vacina protege contra difteria, tétano, coqueluche e outras infecções. 

A queda foi ainda maior para a primeira dose de DTP, que reforça a proteção aos 15 meses de vida. Ela foi aplicada em 86% das crianças, em 2014, mas despencou para 56% no ano passado. 

Além de faltar nos postos de saúde em boa parte de 2019, o que essas duas vacinas têm em comum é que elas poderiam ser produzidas no Brasil, caso fosse reformada uma fábrica do Instituto Butantan, em São Paulo. Mas após 10 anos de promessas do governo paulista e do Ministério da Saúde, as obras não começaram. E não há prazo para acontecer.

Brasil importou 33 milhões de doses da pentavalente desde 2016; produto nacional não chega ao mercado por falta de adequações em fábrica do Butantan (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Situação parecida afeta a BCG, aplicada na maternidade contra tuberculose. Essa vacina costuma registrar os melhores índices de cobertura do calendário infantil, mas recuou nos últimos cinco anos, quando a produção nacional caiu e os problemas de estoque apareceram. Em 2014, a aplicação ficou acima da previsão do governo, mas caiu para 85% em 2019.

A BCG é fabricada há 90 anos no Brasil pela Fundação Ataulpho de Paiva, entidade privada sem fins lucrativos, no Rio de Janeiro. Operando com parte do maquinário da década de 1970, a linha de produção foi paralisada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) ao menos três vezes desde 2017, segundo a fundação, por não atender a normas de fabricação. A última interdição durou um ano e meio, e a produção só foi retomada em julho passado. 

As obras da nova fábrica começaram em 1989, porém, mais de 30 anos depois, ainda não terminaram por mudanças no projeto e falta de recursos. Além de afetar os estoques da vacina, a baixa produção de BCG deixou pacientes com câncer sem tratamento em 2019, segundo a BBC Brasil. 

O problema da importação

Brasil foi um dos países que mais deixou de vacinar crianças contra difteria, tétano e coqueluche em 2018, segundo a OMS (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Com as fábricas obsoletas e reformas que não saem do papel, o país vem recorrendo à importação dos imunizantes. A estratégia se explica, em parte, porque vacinas como a DTP e a BCG custam menos de R$ 1 a dose no mercado internacional: é mais barato comprar de fora do que produzir no Brasil.

Mas a economia pode sair caro, porque há poucas empresas no mundo interessadas em fabricá-las, devido à baixa lucratividade. “Os grandes laboratórios estão abandonando as linhas de produção para vacinas de retorno baixo e se concentrando naquelas de maior lucro. E aí faltam vacinas no mercado”, diz Artur Couto, presidente da associação nacional dos laboratórios públicos (Alfob). 

Com a escassez de fabricantes, fica mais difícil resolver problemas de abastecimento. Foi o que aconteceu em 2019 com a pentavalente. Cerca de 3 milhões de doses importadas foram descartadas por estarem com defeito. A reposição não foi imediata, e só foi regularizada em meados deste ano.

“O primeiro gargalo é que o mundo está consumindo mais vacinas, como os países asiáticos e africanos, mas o mercado mundial não está preparado para abastecer. O segundo é o problema de qualidade. Quando o governo recusa um lote, é difícil encontrar outro. Não há vacinas sobrando no mercado”, afirma o infectologista Renato Kfouri, da Sociedade Brasileira de Pediatria.

“A falta de vacinas é uma crise no mundo todo, mesmo na rede privada”, completa a médica Eliane de Oliveira Morais, do Centro de Referência de Imunização do Hospital de Clínicas da Unicamp. 

Os especialistas destacam ainda que fornecer imunizantes ao Brasil é um desafio para qualquer gestor, em razão do tamanho da população e da ampla oferta de soros e vacinas: são 300 milhões de doses por ano. “O nosso programa de imunização é um dos melhores do mundo, com cobertura ampla. O volume de compras é muito grande. Mesmo se produzir no Brasil, continuaremos dependendo de produtos importados”, diz Morais. 

Dados obtidos pela Repórter Brasil junto ao Ministério da Saúde e por meio da Lei de Acesso à Informação revelam dependência crescente das importações. Entre 2014 e 2019, a compra de ampolas estrangeiras para a vacinação infantil passou de 33% para 47% do total, em número de doses. O levantamento considera 12 das 13 vacinas indicadas para crianças com até 15 meses (com exceção da de febre amarela).

“O que aconteceu foi uma estratégia equivocada de não fortalecer os laboratórios públicos e a produção nacional, com aquela ilusão de que é possível comprar essas vacinas em qualquer lugar, mas não é assim que funciona esse mercado”, analisa Couto.

O vaivém no Butantan

A fábrica de DTP do Butantan continua sem investimento, há 10 anos, por causa da baixa lucratividade da vacina e do alto custo das obras. “Se a produção ficar abaixo de 50 milhões de doses por ano, essa fábrica dá prejuízo”, diz o imunologista Jorge Kalil, diretor do laboratório entre 2011 e 2017.

O Butantan fabricou a DTP (difteria, tétano e coqueluche) do início dos anos 1990 até 2010, quando a produção foi paralisada por falta do Certificado de Boas Práticas de Fabricação da Anvisa. A DTP compõe a vacina pentavalente, que também enfrentou desabastecimento no ano passado.

Desde então foram anunciados três projetos para deslanchar a produção. O primeiro tinha investimento de R$ 40 milhões do Ministério da Saúde e do governo de São Paulo, mas “era inviável”, segundo Kalil. “O projeto foi feito sem consulta ao instituto. Não ia atender às normas da Anvisa”. 

O ex-diretor conta que o Butantan operava no vermelho quando assumiu a gestão, e assim decidiu investir a verba em projetos mais rentáveis, como a fábrica da vacina da gripe. 

Um novo projeto para a fábrica de DTP foi anunciado em fevereiro de 2017. Orçado em R$ 150 milhões, seria custeado com R$ 54 milhões do governo federal e o restante pelo Butantan. Mas o projeto foi engavetado em duas semanas, após Kalil ser afastado do cargo, acusado pelo governo estadual de “graves problemas de gestão”.

“Foi uma injustiça o que fizeram comigo. As denúncias não se comprovaram e foram arquivadas”, diz ele. “O Butantan estava indo muito bem. Tinha R$ 1,5 bilhão em caixa e faturamento de R$ 2 bilhões”, completa. 

Após sua saída, a gestão do atual diretor, Dimas Tadeu Covas, decidiu não reformar a fábrica de DTP, alegando inviabilidade “tanto do ponto de vista econômico, quanto da necessidade de modernização das instalações e da ampliação da capacidade”, segundo o Butantan.

Um novo projeto foi anunciado no ano passado: o Centro de Produção de Vacinas. Orçado em US$ 450 milhões (R$ 2,3 bilhões), o centro  prevê sete vacinas diferentes, entre elas a de DTP, mas o Butantan ainda busca recursos. O valor da nova fábrica supera o investimento de R$ 1,9 bilhão previsto para a produção da Coronavac, a vacina da covid-19 que será desenvolvida pelo laboratório em parceria com a China.

O Ministério da Saúde afirmou à Repórter Brasil, por meio de nota, que fechou três convênios com o Instituto Butantan desde 2012, no total de R$ 90 milhões, para reformar diversas linhas de produção de vacinas, incluindo a de DTP. Desse total, R$ 36 milhões foram efetivamente repassados. A pasta afirmou que pretende efetivar a produção da pentavalente no Brasil, mas que o plano depende das reformas no Butantan.

Procurada pela Repórter Brasil, a Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo não comentou.

O Butantan informou que discute com o Ministério da Saúde o que fazer com os R$ 20 milhões repassados em 2012 para a DTP e que pode até devolver os valores. Outros R$ 54 milhões, que ainda não foram repassados pelo governo federal, têm destinação incerta e estão em discussão. O laboratório afirmou que busca recursos privados para “construção e equipamentos” do Centro de Produção de Vacinas. O instituto não comentou as declarações do ex-diretor.

Já a Fundação Ataulpho de Paiva disse que as fiscalizações e eventuais interdições da Anvisa são procedimento comum da indústria. A produção da BCG na nova fábrica está prevista para 2022 (veja os posicionamentos completos).

Enquanto o país sonha com uma solução para a covid-19, antigas fábricas de vacinas vão ficar mais tempo de quarentena.


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