No Mato Grosso do Sul, indígenas tentam bloquear covid sem ajuda do governo

Povos Kaiowá, Guarani e Terena assumem, sozinhos, criação e manutenção de barreiras sanitárias para conter a contaminação por covid-19. Desde que o STF obrigou o governo a criar um plano de ajuda aos indígenas, 52 pessoas da etnia Terena morreram por conta do novo coronavírus
Por Nataly Foscaches | Vídeo: Joana Moncau
 04/09/2020

“Passamos o mês passado debaixo de chuva, mas a nossa parte estamos fazendo.” Esse é o desabafo de um indígena kaiowá-guarani que participa de uma das 70 barreiras sanitárias montadas por esse povo para se resguardar da covid-19. Muitos estão acampados nesses locais para evitar que o coronavírus invada 45 comunidades já fragilizadas pela pobreza – trabalho que deveria ser do governo federal. 

 “Tivemos vários problemas com vendedores ambulantes que querem passar de qualquer jeito. Ou indígenas vindos de outra aldeia querendo entrar. Isso gera tensão. Às vezes, o próprio capitão [cacique] autoriza a entrada, e a barreira não deixa. Acaba gerando desavenças”, conta o antropólogo kaiowá Tonico Benites. Integrante da Aty Guasu (Grande Assembleia), organização política dos Kaiowá e Guarani, ele tem viajado pelas barreiras montadas por seu povo para levar doações angariadas junto à sociedade civil.

“Em alguns lugares, acionamos a polícia porque o não-indígena queria entrar de qualquer jeito. O Ministério Público Federal recomendou à polícia para, quando acontecer isso, atenderem imediatamente. Algumas vezes, a polícia vai, outras não. Esse problema acontece porque o Estado não participa”, resume Tonico.

Após a vitória da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), no Supremo Tribunal Federal (STF), a União foi obrigada a apresentar um novo plano de enfrentamento e monitoramento da covid-19 para os povos indígenas. No dia 7 de agosto, foi apresentada a primeira versão do documento. Nele, consta uma lista com a relação de bloqueios sanitários que seriam mantidos pela Fundação Nacional do Índio (Funai). A Repórter Brasil conversou com representantes indígenas de Mato Grosso do Sul, profissionais do direito, organizações sociais e teve acesso a uma série de imagens que revelam que, na realidade, as comunidades Kaiowá, Guarani e Terena estão se protegendo por conta própria e que o auxílio do órgão indigenista oficial existe, mas é insuficiente.

Uma das saídas encontradas são barreiras sanitárias precárias instaladas nas entradas aldeias. Esses bloqueios, pensados e organizados por essas populações de forma autônoma, são mantidos, sobretudo, com apoio de organizações não governamentais, associações e representantes da sociedade civil. 

“As organizações estão fazendo o papel do Estado. É desesperador você estar ali e ver o Estado não fazendo nada. As pessoas falando que não tem uma máscara para ir à cidade, álcool em gel, água encanada”, acusa a antropóloga e coordenadora de ações emergenciais de apoio às populações indígenas do Mato Grosso do Sul, Jessica Maciel. 

De acordo com ela, desde o início da pandemia até agora foram doados pela sociedade civil cerca de 6 mil cestas básicas, 5 mil equipamentos de proteção individuais (EPIs), 2 mil protetores faciais, 200 coletes refletores, 6 mil kits de higiene pessoal (água sanitária, álcool em gel, sabonete, detergente líquido, pasta de dente e papel higiênico), 500 reservatórios de água de 200 litros e 200 caixas d’águas (diversas comunidades indígenas – mesmo terras homologadas há décadas sofrem com a falta de água). Além de máscaras de tecido, capas de chuva, lanternas. 

Apesar de as barreiras impactarem positivamente no atraso da incidência epidêmica, a estratégia não conseguiu impedir totalmente a entrada da covid-19 nas aldeias. Segundo a Apib, foram confirmados 29.824 casos de indígenas com coronavírus no país, afetando 156 povos e gerando 785 óbitos até o dia 3 de setembro. No Mato Grosso do Sul, o Conselho do Povo Terena registrou, até o dia 1º de setembro, 1.692 indígenas com o coronavírus, e 52 mortes. O Distrito Sanitário Especial Indígena de Mato Grosso do Sul (Dsei/MS) notificou 343 indígenas kaiowá e guarani com coronavírus e oito mortes no dia 3 de setembro.

Indígenas largados à própria sorte 

Em 8 de julho, a Apib obteve liminar, no Supremo Tribunal Federal (STF), para a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709. A corte deu razão à sua alegação de que os povos indígenas são especialmente vulneráveis à pandemia e que há indícios de expansão acelerada da covid-19, bem como insuficiência das ações promovidas pelo governo federal para conter a doença entre essas populações. Em função disso, o STF impôs a adoção de medidas de proteção aos povos indígenas ao governo do presidente Jair Bolsonaro. A medida veio  a ser confirmada pelo plenário no dia 5 de agosto.

O plano de ação a ser apresentado pelo governo é uma das consequências dessa decisão da Suprema Corte. Uma das questões chave, e que têm gerado críticas e pedidos de ajuste às propostas inicialmente apresentadas pelo governo, é a necessidade de apoio público às barreiras sanitárias instaladas nos acessos a centenas de comunidades por todo o país. A nova previsão é que o documento seja apresentado pelo governo em 7 de setembro. 

Indígenas Guarani, Kaiowá e Terena fazem, sozinhos, um trabalho que deveria ser do Estado (Foto: FSF/Divulgação)

Devido à maior vulnerabilidade dos povos das terras indígenas, Vale do Javari, Yanomami, Uru Eu Waw Waw e Arariboia e do alto nível de contágio no entorno delas, no dia 31 de agosto, o ministro Luís Roberto Barroso homologou parcialmente o plano de barreiras sanitárias para a proteção desses grupos étnicos.

Entre a liminar concedida pelo ministro Roberto Barroso, em 8 de julho, antes do julgamento definitivo, e o prazo para a nova versão do plano a ser apresentado pelo governo, 7 de setembro, a inação continua gerando vítimas. “A decisão vai fazer dois meses já, e nós não sentimos na ponta ainda a proteção”, resume Luiz Henrique Eloy, advogado da Apib. 

A primeira morte de um indígena em Mato Grosso do Sul pelo coronavírus aconteceu em 19 de junho. Das 60  mortes de indígenas registradas até agora no estado, segundo dados da Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai) e dos movimentos indígenas, ao menos 54 aconteceram nas últimas sete semanas – após a decisão liminar do STF. 

Para barrar a entrada do vírus, além das barreiras sanitárias, os indígenas têm criado campanhas educativas nas aldeias e buscado acordos comunitários para evitar aglomerações – negociando com pastores evangélicos, por exemplo.

A situação é particularmente grave no Mato Grosso do Sul, estado com a segunda maior população indígena do país, onde há comunidades superlotadas e excessivamente próximas às cidades devido à falta de solução para a questão fundiária, dependendo do ambiente urbano para trabalho e abastecimento.

Os dois maiores povos indígenas do Estado – os Kaiowá e Guarani e os Terena – ocupam antigas reservas e acampamentos precários em áreas reivindicadas como sendo parte de territórios de ocupação tradicional, mas ainda não demarcados. Nesses locais, são alvo de frequentes ataques de fazendeiros e de abandono por parte das instituições oficiais. Segundo levantamento do Coletivo Terra Vermelha (CTV), o estado conta com aproximadamente 89 acampamentos.    

Prevenção na pandemia foi iniciativa dos próprios indígenas 

A Funai afirma ter distribuído 403 mil cestas a comunidades indígenas de todo o país, quase 63 mil kits de higiene e apoiado 311 barreiras sanitárias. Porém, a Apib e os representantes indígenas entrevistados alegam não ter conhecimento do apoio da União nessa iniciativa. “Onde estão essas barreiras que eu não sei?” questiona Eloy Terena.

Falta de estrutura e de apoio são frequentes nas barreiras sanitárias de comunidades indígenas do MS (Foto: Doriano Arce)

No Mato Grosso do Sul, os Kaiowá e Guarani criaram aproximadamente 70 barreiras sanitárias, e os Terena organizaram 17.  De acordo com Tonico Benites, desde o início da pandemia, as organizações indígenas têm pedido apoio da União para manutenção dos bloqueios, mas não foram escutadas. “A organização kaiowá e guarani se preocupa, recorreu aos órgãos, pediu apoio, mas a Funai já tem ordem para não conversar com as lideranças”, afirma.

Em média, sete pessoas participam de cada barreira sanitária, entre eles os líderes das comunidades e voluntários. Fotos e vídeos distribuídos em grupos de whatsApp demonstram a fragilidade dos bloqueios. 

“Só tem barraquinha de lona, mas a ventania estoura tudo. As barreiras são improvisadas. Várias cidades têm barreiras sanitárias com tenda, equipamento funcionando, funcionário, tem toda estrutura apoiada pelo município. Bem diferente daqui”, lamenta Tonico.  

Enfraquecimento da Saúde indígena em plena pandemia 

Entre as medidas de proteção aos povos indígenas propostas pela Apib ao governo federal está a determinação de que os serviços do Subsistema Indígena de Saúde, implementado pela Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai) sejam acessíveis a todos os indígenas que vivem em terras regularizadas e não regularizadas – ou seja, incluindo também áreas de retomada ou acampamentos. 

Por ordem do STF, a presidência da Sesai orientou aos coordenadores que cuidam da saúde indígena para que incluam “em seus planejamentos o incremento populacional decorrente do atendimento das terras indígenas não homologadas”, conforme ofício ao qual a reportagem teve acesso.

Mauri da Silva Almeida é um dos indígenas que se revezam na barreira sanitária Sucuriy: ‘Passamos um mês debaixo de chuva’ (Foto: Doriano Arce)

A Sesai afirma que, desde setembro de 1990, o Ministério da Saúde atende indígenas “aldeados” cadastrados junto ao Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (Siasi). “Caso os indígenas não sejam aldeados, os atendimentos são feitos diretamente pelos estados e pelos municípios onde moram”, afirmou a assessoria da secretaria em nota enviada à reportagem (acesse à íntegra da resposta). Em uma ação civil promovida contra a União, em julho deste ano, o Ministério Público Federal acusa a Sesai por não prestar assistência à saúde dos índios residentes em locais “não-aldeados”. 

“Desprezou-se totalmente, a situação dos indígenas das áreas de retomadas. Você tem um indígena contaminado, mas a única forma deles terem atendimento é se deslocando até o posto de saúde mais próximo que tem competência para atender aquela região”, diz a defensora pública da União Daniele de Souza Osório.

Conforme o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), a ação orçamentária executada pela Sesai para 2020 é de R$ 1,38 bilhão, valor mais baixo dos últimos oito anos. Em 2019, a execução do orçamento foi de R$ 1,48 bilhão contrapondo com R$ 1,76 bilhão em 2018, uma redução de 16%. Mesmo com a chegada da covid-19, o cálculo prévio com a saúde indígena não foi reforçado. A secretaria alega que o montante de recursos não foi alterado, somente a forma de repasse do dinheiro. 

Pandemia amplia velhos problemas 

Além da falta de apoio às barreiras sanitárias e à acusação, de lideranças, de que a Sesai não vinha atendendo indígenas não-aldeados, uma medida adotada pela Funai em 2019 tem colaborado para que as comunidades fiquem ainda mais expostas à covid-19. Isso porque o Ministério da Justiça e da Segurança Pública publicou, em outubro do ano passado, as portarias 764 e 1619/SE com o objetivo de centralizar na sede do órgão, em Brasília, as autorizações de deslocamentos de servidores para territórios indígenas localizados em municípios fora das coordenadorias regionais. 

Na prática funciona assim: sempre que um servidor de uma das 39 coordenações regionais da Funai, distribuídas em todo país, necessita viajar para atender os territórios que estão sob sua responsabilidade tem que solicitar, com ao menos 15 dias úteis de antecedência, uma concessão de diárias e passagens para a Presidência do órgão, que muitas vezes desconhece as especificidades dessas comunidades.  

Em nota, a Indigenistas Associados (INA), associação de servidores da Funai, demonstrou preocupação com a paralisia das ações de política indigenista, realizadas pelo órgão dentro das terras indígenas (em especial aos territórios em processo de regularização localizados em municípios fora das sedes regionais do órgão), provocada por essas portarias. De acordo com a organização, essas mudanças provocaram maior burocratização e morosidade dos serviços prestados. 

Na Amazônia, onde se encontram cerca de 50% da população indígena do país, boa parte das aldeias são localizadas em áreas de difícil acesso. Por esse motivo, já é de praxe o planejamento das viagens realizadas pelos servidores da Funai com antecedência. 

Já em estados como Mato Grosso do Sul, a realidade é diferente. As coordenadorias da Funai, geralmente, oferecem atendimento mais rápido às comunidades, devido à proximidade das terras indígenas com os centros urbanos. 

“Às vezes tem algum conflito na barreira sanitária, alguma situação e a gente não pode ir. Eles ligam para gente e eu tenho que falar sobre aquela questão do deslocamento e não posso ir. Fico explicando isso o tempo todo, mas para a gente é péssimo. Parece má vontade nossa”, explica um servidor que preferiu não se identificar. 

Essas portarias também impactaram as entregas das cestas básicas pela União. Embora a situação esteja regularizada agora, nos meses de janeiro e fevereiro deste ano, comunidades Kaiowá e Guarani de Mato Grosso do Sul e de outros estados denunciaram dificuldades para receber o benefício. 

Conforme informações da Defensoria Pública da União, algumas receberam as cestas entregues pela Funai na entrada das aldeias, outras às margens das rodovias próximas as suas terras, e no pior dos casos, os indígenas tiveram que se deslocar até a coordenação regional do órgão na cidade, expondo-se à contaminação pela covid-19 em um momento em que as autoridades sanitárias recomendam isolamento social e evitar a aglomeração de pessoas. 

Em meio a uma crise sanitária e humanitária, a espera das comunidades pelo auxílio dessas instituições pode ser fatal. “Todos os órgãos oficiais devem estar no modo pandemia, decisões rápidas, ação rápida. E não é o que a gente vê de parte do governo”, defende Flávio Machado, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) 

Procurada, a Funai foi não se manifestou.


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