“Era verde, ficou tudo preto e agora cinza”, descreve Alessandra Guató sobre a mudança provocada pelo fogo na Terra Indígena Baía dos Guató, em Barão de Melgaço, no Pantanal mato-grossense. A reserva teve 88% de sua área atingida por incêndios entre janeiro e setembro, e hoje sofre para conseguir água já que a seca esvaziou um braço do rio local. Do outro lado do Pantanal, no assentamento Taquaral, em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, Luiz da Conceição reclama que não vê mais o azul do céu: “Só cinza e fumaça”.
Quando chegou ao assentamento, depois de tentar a vida no Paraguai e cruzar o Mato Grosso do Sul perambulando em diversos acampamentos com a família, o paranaense Luiz conseguiu em Corumbá, próximo à fronteira com a Bolívia, a terra que sempre sonhou na caminhada de anos pela reforma agrária. “Agora estou no céu”, afirma. O que deixa o assentado chateado, contudo, é ser acusado de colocar fogo no Pantanal.
“A gente sabe que a vida fora da aldeia não é fácil. Na aldeia, por mais difícil que seja, é mais simples. Na cidade, amanhece precisando de dinheiro e anoitece precisando de dinheiro”, avalia Alessandra Guató
Luiz e Alessandra estão entre os “caboclos e indígenas” apontados pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) como responsáveis pelas queimadas que devastam todo o país. Bolsonaro fez a primeira acusação em julho, durante uma transmissão ao vivo em uma rede social, ao lado do ministro Meio Ambiente, Ricardo Salles: “Uma parte considerável das pessoas que desmatam e tocam fogo é indígena, caboclo”. Repetiu a acusação em setembro durante o discurso de abertura da 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU): “Caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas”.
“É uma covardia, uma desumanidade. É querer incitar o ódio e a xenofobia”, afirma Anísio Guató (PSOL), candidato a prefeito de Corumbá. Conhecidos como indígenas pantaneiros, os Guató chegaram a ser considerados extintos pelo órgão indigenista na década de 1950, resultado do processo de invasão de suas terras por pecuaristas. Anísio explica que não foram extintos, mas expulsos das terras, principalmente das margens dos rios em que viviam, e passaram a habitar a periferia das cidades. “Onde tiver uma canoa de um pau só é um território Guató”, cita a frase repetida pelos integrantes da etnia, em uma referência ao fato de que os indígenas estão em diversas partes do Pantanal.
Após serem expulsos pelo agronegócio a partir da década de 1940, foi iniciado um processo para tentar recuperar parte do território tradicional dos Guató. Uma delas foi homologada em 2018, a Terra Indígenas Baía dos Guató, que agora arde em chamas. Dos 19.287 hectares da reserva, 17.035 foram queimados entre janeiro e setembro — a destruição corresponde a 88%, segundo cálculo realizado pelo Instituto Centro da Vida (ICV), que desenvolveu o Monitor das Queimadas, com cruzamento de dados de satélites.
Casas foram queimadas, roças perdidas e o Corixo do Bebe (braço de rio) secou completamente, deixando as famílias que moram próximas sem água, descreve Alessandra Guató. “A gente fica com uma sensação de impotência. De não conseguir resolver muita coisa”, lamenta.
Alessandra calcula que a recuperação pode levar até 5 anos.”Perdemos a vegetação original, com árvores de 40 anos, que não crescem facilmente”, afirma. Ela e outras lideranças dos Guató estão tentando conseguir doações de sementes nativas e frutíferas, para fazerem um viveiro e iniciarem o replantio. O temor dela é que a destruição leve algumas famílias a deixarem a reserva e tentarem a vida nas cidades. Na Baía dos Guató vivem 80 famílias, que totalizam 253 indígenas e estão divididos em duas aldeias, Aterradinha e São Benedito.
“Queremos evitar que isso aconteça. A gente sabe que a vida fora da aldeia não é fácil. Na aldeia, por mais difícil que seja, é mais simples. Na cidade, amanhece precisando de dinheiro e anoitece precisando de dinheiro. Precisa de dinheiro para tudo: morar, andar, comer. Temos que evitar que os parentes saiam”, avalia Alessandra.
A destruição dos territórios indígenas no Pantanal mato-grossense não se restringiu à Baía dos Guató. Outras duas TI’s foram gravemente afetadas. A TI Tereza Cristina teve 21 mil hectares atingidos pelo fogo (73% do total) e a TI Periguara, 8,6 mil hectares (80%).
‘Fogo vem das fazendas’
Ao contrário da tese defendida pelo presidente Bolsonaro, os dados de satélite indicam que o fogo não foi provocado por indígenas e caboclos. Somente os incêndios que tiveram início em cinco propriedades rurais voltadas para pecuária, todas localizadas em Poconé (100 km de Cuiabá), foram responsáveis por destruir 116.783 hectares, área equivalente à cidade do Rio de Janeiro. Esse volume de destruição correspondeu a 36% da área total atingida por incêndios no Pantanal mato-grossense no período analisado (entre julho e a primeira metade de agosto).
Duas dessas fazendas de pecuaristas vendem gado para o grupo Amaggi, do ex-ministro, ex-senador e ex-governador Blairo Maggi, e para o grupo Bom Futuro, de Eraí Maggi, considerado o maior produtor de soja do mundo. Esses dois grupos empresariais, por sua vez, são fornecedores das gigantes multinacionais JBS, Marfrig e Minerva, conforme revelou a Repórter Brasil.
Quatro dias depois do discurso de Bolsonaro na ONU, o cacique Raoni Metuktire procurou os jornalistas em Sinop, no norte do Mato Grosso, e acusou o presidente de mentir. “Ele [Bolsonaro] diz no jornal que índio está botando fogo no planeta, isso é pura mentira. São os próprios fazendeiros. Madeireiros, garimpeiros estão prejudicando a natureza. Eles estão botando fogo no planeta”, disse o líder indígena.
“O fogo vem de fora; vem das fazendas”, entende Alessandra Guató. Ela afirma que não pode afirmar se o fogo foi colocado de forma intencional e pede que a polícia investigue. No Mato Grosso do Sul, a Polícia Federal iniciou uma investigação que tem como alvo quatro fazendeiros suspeitos de provocarem queimadas para abertura de pastos em Corumbá. Um dos investigados é Pery Miranda Filho, fazendeiro que já vendeu gado para o governador Reinaldo Azambuja (PSDB), conforme revelou a Repórter Brasil. O advogado de Miranda Filho negou que o fogo tenha sido colocado intencionalmente. O governador Azambuja informou, em nota, que não tem conhecimento sobre a operação da PF, mas que, “como produtor rural, há muitos anos mantém relações comerciais com todo o mercado de Mato Grosso do Sul”.
Ao conversar com os advogados de dois fazendeiros investigados pela Polícia Federal em Corumbá, ambos usaram o mesmo argumento. Dizem que o fogo é provocado por pequenos pescadores e pelos isqueiros, como são chamados os que extraem iscas vivas para venderem para hotéis e barcos que atendem o turismo de pesca. O motivo, segundo os representantes dos fazendeiros, é que esses pescadores artesanais e isqueiros acampam na beira do rio, colocam fogo para desmatar um pequeno pedaço para montar a barraca e, provocam os incêndios sem intenção.
“Vão culpar sempre os pescadores, pois eles são fracos e não tem como se defenderem”, afirma a presidente da Colônia de Pescadores de Corumbá, Luciane de Lima, que representa 875 pescadores e isqueiros. Ela considera a acusação descabida e questiona: “Como que o pescador vai destruir o meio ambiente se é dele que ele tira seu sustento?”. Esse argumento que culpa os pescadores foi intensificado, segundo Lima, após o discurso de Bolsonaro na abertura da assembleia da ONU. “Pegaram uma pontinha da fala do presidente para culpar o pescador”, entende.
A vendedora de peixes às margens do rio Paraguai, Rosimeire Barros Pinheiro alerta para outro problema que o fogo pode provocar para os pescadores, o fenômeno conhecido como “decoada”. Quando a matéria orgânica das queimadas fica no solo ela é levada pelas chuvas para rios e lagoas. Esse material se decompõe e reduz a oxigenação da água, o que leva à morte de peixes por asfixia.
Aos 75 anos, Rosimeire lembra que já viveu longos períodos de seca e cheias, mas que queimadas tão intensas como a deste ano podem ser piores se forem sucedidas por uma chuva forte. “Leva muita cinza para dentro d’água e vai ser a maior decoada. Até piranha vai morrer”, afirma, apontando para o baixo volume do rio Paraguai, o que agrava a situação.
Sufoco permanente
A reportagem esteve em Corumbá nos últimos dias de setembro e, quando circulou pela região, não viu nem sinal de azul no céu. A cidade localizada na fronteira com a Bolívia é a que mais tem focos de incêndio no país. Até 11 de outubro foram 7.715, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Somente Corumbá teve metade dos focos de incêndio que foram registrados em todo o Peru em 2020. Além da fumaça onipresente, o calor chegava a desorientar. Às 11h da terça-feira, 29 de setembro, o termômetro no painel do carro marcou 46°C. A combinação de calor, fumaça e umidade baixíssima (menor que 20%) provocam uma sensação de sufoco permanente.
“Essa noite a bronquite da minha esposa atacou. Ninguém dá conta de viver assim”, conta Lucas Souza, morador do assentamento Taquaral, em Corumbá. Ele e Valdinei da Conceição criam abelhas para extrair mel e relatam que a fumaça constante atrapalha a reprodução das abelhas. “Essa fala do Bolsonaro para colocar a culpa nos caboclos e indígenas é um absurdo. Isso é mania de distorcer a realidade”, afirma Lucas.
A conversa com os assentados só é possível na sombra formada pelo encontro de pés de goiaba, acerola, laranja e mexerica. No assentamento Taquaral vivem 300 famílias, que plantam para subsistência e criam gado leiteiro, além de outras atividades, como a extração de mel. Muitos ali se enquadram na definição de caboclo (filho de indígena e branco) usado pelo presidente Bolsonaro. Ao serem questionados sobre as declarações do presidente, um burburinho se forma e fica impossível tomar nota de tantas reclamações. “Isso que ele [Bolsonaro] fala tem reflexo aqui para gente. É muito perigoso”, afirma Valdinei.