Sem equipamentos de segurança, sem acesso nem a banheiro, sem pagamentos e com dívidas. Essas eram algumas das condições precárias às quais eram submetidos 18 trabalhadores resgatados em situação análoga à de escravo na fazenda São Bento, em Lucianópolis (interior de SP). Grande produtora de laranja, a fazenda, segundo informações da fiscalização do governo, é fornecedora da empresa Citrosuco – uma das maiores exportadoras de suco de laranja do Brasil.
Durante a operação da Auditoria Fiscal do Trabalho, que começou em 8 de dezembro, os fiscais constataram que o grupo estava trabalhando havia oito dias sem registro e sem remuneração. E mesmo assim, segundo os colhedores, já haviam contraído dívidas, pois tinham de pagar pela comida. “Havia uma completa negação da legislação trabalhista, por isso a caracterização da situação degradante. Desde o transporte, que estava irregular, às condições de trabalho”, ressalta o procurador Fernando Maturana.
A fazenda São Bento pertence a Valmi Blanco Machado, que atua há décadas no setor e comercializa com grandes empresas da laranja, além de ser também produtor leiteiro. Ele foi autuado por manter trabalhadores em situação análoga à de escravo e também por outras irregularidades trabalhistas, num total de 30 autuações.
Não é a primeira vez que a Citrosuco é envolvida em denúncias de trabalho escravo. Em 2018, a empresa integrou a lista suja do trabalho escravo, por autuação de 2013, quando 26 trabalhadores foram resgatados em situação análoga à escravidão em suas fazendas. A Citrosuco é fornecedora da Pepsi Co, uma das maiores empresas de alimentos e bebidas do mundo.
A Citrosuco afirmou, em nota, que “repudia veementemente quaisquer práticas de trabalho análogo ao de escravo em suas operações e perante seus fornecedores” e que “está apurando a situação em detalhes” (leia a resposta na íntegra). A reportagem também entrou em contato por telefone com o escritório de uma das empresas de Machado e com o gerente da Fazenda São Bento, mas não obteve resposta. Já a Pepsi Co afirmou que não iria comentar.
Registro na carteira só em caso de acidente
João*, de 38 anos, um dos trabalhadores resgatados, contou à Repórter Brasil que, no começo do mês, o grupo deixou Pontalinda, cidade onde vivem, no interior de São Paulo, a 300 quilômetros de Lucianópolis, após serem arregimentados por um “gato”. “A gente tava trabalhando no escuro, sem saber o que ia ganhar. Não tinha registro, nem hora de almoço. E nem banheiro… tinha que usar o mato mesmo.”
A safra da fazenda São Bento estava atrasada e o empregador precisava de mão de obra para terminar a colheita. “Eles disseram que não iam registrar, ia avulso, mas que a gente tinha que ter a carteira de trabalho em mãos. Caso alguém caísse de uma escada, se machucasse, aí eles falaram que registravam. Essa era nossa segurança”, afirma João.
Pedro*, de 27 anos, contou que eles já começaram a trabalhar endividados, pois viviam em um alojamento na fazenda e tinham que pagar não só pela comida, mas também pelo cozinheiro. “Se a lei não tivesse chegado, a gente tava devendo a eles. Não ia ter lucro nenhum”, contou João.
Segundo o auto de infração, obtido pela Repórter Brasil, os trabalhadores foram expostos a trabalho degradante e “a condições que claramente atentavam contra os seus direitos humanos e à sua dignidade”. Foram registradas irregularidades como “arregimentação por meio de fraude, engano, coação”, “induzimento do trabalhador a assinar documentos em branco, com informações inverídicas ou a respeito das quais o trabalhador não tenha o entendimento devido” e “exploração da situação de vulnerabilidade de trabalhador para inserir condições abusivas”.
Na fazenda, os auditores do trabalho – acompanhados pela Polícia Federal e pelo Ministério Público do Trabalho – encontraram três situações distintas: migrantes nordestinos atuando com registro, prestadores de serviços de um consórcio trabalhando de maneira irregular e o grupo resgatado como trabalho escravo. Mesmo entre os trabalhadores registrados, porém, havia irregularidades.
Machado, o empregador, foi notificado a pagar R$ 72 mil de verbas rescisórias, incluindo indenização por dano moral no valor de R$ 2 mil para cada vítima. Ele firmou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho, se responsabilizando a resolver as demais irregularidades encontradas em relação aos outros trabalhadores.
Para o procurador Maturana, é preciso continuar debatendo a responsabilização das grandes empresas. Ainda que discutida há anos, a questão segue sem solução, já que as condições de trabalho encontradas nas fazendas fornecedoras são sempre piores do que nas das próprias empresas. “Em qualquer responsabilização em cadeia, cabe à própria empresa estabelecer um código de conduta com seus fornecedores e exigir deles o cumprimento. Ao mesmo tempo, é preciso remunerar o valor da ‘caixa peso’ da laranja [para que o produtor consiga seguir as condições exigidas].”
Desvalorização e desmonte
“Eu já tinha passado por isso, só que a lei não chegou perto para ver. Nunca ninguém apareceu lá para fazer alguma coisa”. A fala de João reflete uma realidade temida pelo procurador Maturana: “Esse tipo de situação [resgate], se houvesse mais fiscalização, seria até reincidente na laranja, principalmente nos dois últimos anos”. Isso porque, para o procurador, a Reforma Trabalhista que entrou em vigor desde novembro de 2017 abriu brecha para que mais infrações ocorram, com a regularização das terceirizações. “Os ‘gatos’ estão começando a constituir empresas, arregimentam trabalhadores, que vem, em grande parte do Nordeste, na maior insegurança possível”, disse.
Somada a essa questão estão os desmontes que vêm sofrendo os órgãos de fiscalização no Brasil ao longo dos anos, com seu ápice no governo Bolsonaro, que inclusive extinguiu o Ministério do Trabalho. “O sucateamento desses órgãos é grave porque questão trabalhista não é vista no papel. Muitas vezes o documento está correto, mas a realidade está errada. É imprescindível que haja a presença em campo”, afirma Maturana.
Em fevereiro, a Repórter Brasil esteve em Lucianópolis e flagrou trabalhadores do empregador Machado atuando sem registro e recebendo menos do que o salário mínimo na colheita da laranja. A reportagem esteve na fazenda São Bento, em busca de informações, mas foi recebida por funcionários que, mesmo após a identificação dos jornalistas, acionaram a Polícia Militar. Mais de seis viaturas estiveram na fazenda, em uma clara ação de intimidação.
Para João, todo esse cenário deságua na desvalorização de quem está na linha de frente. “Faz oito anos que eu tô na laranja e o preço é o mesmo até hoje. Tem como?”
*nomes alterados a pedido dos trabalhadores
Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2017 2606 6/DGB 0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil