‘As mulheres Munduruku estão envenenadas por mercúrio e temos provas’, denuncia líder indígena

Mercúrio usado em garimpo ilegal de ouro contamina 99% de aldeias da etnia no Alto Tapajós, revela pesquisa coordenada por neurologista
Por Elpida Nikou e Joana Moncau*
 19/02/2021

Quando o avião do neurologista Erik Jennings pousou em Jacareacanga (Pará) para abastecer, um grupo de indígenas Munduruku pró-garimpo o esperava munido com hostilidade e ameaças. “Nos proibiram de entrar na terra indígena, foi bem tenso.” O que se seguiu foi uma fuga na qual a aeronave decolou em meio a um intenso ataque de pedras.

Era agosto de 2020 e Jennings, que é médico da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), tinha como destino a aldeia Munduruku Waro Apompu. E as más notícias que ele acabou sendo impedido de levar às lideranças eram, na verdade, o resultado de um estudo sobre a intoxicação de mercúrio na etnia. “Nossa pesquisa [feita com 109 moradores do Alto Tapajós] mostrou que 99% da população examinada tem níveis de mercúrio no sangue acima do considerado seguro pela Organização Mundial da Saúde. Algumas têm até 15 vezes acima do recomendado. É muito preocupante”, afirmou o neurologista à Repórter Brasil

Modo de vida dos Munduruku, diretamente ligado à pesca, é ameaçado com a contaminação: mercúrio usado no garimpo vai parar nas águas do rio, intoxicando peixes e as pessoas que os consomem (Foto: Greenpeace)

Assim, as notícias que o médico carregava naquele avião representavam um contraponto ao vento favorável ao garimpo ilegal, que o impedira de seguir o voo e que encontra eco em Brasília, com um governo de defende a liberação da extração de minérios em territórios indígenas. Isso porque a origem do mercúrio que contamina os munduruku é justamente no garimpo do ouro. 

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Os dados coletados por Jennings e sua equipe tem recortes gravíssimos, como o elevado nível de mercúrio no sangue de mulheres em idade fértil. “Isso é muito perigoso em uma gestação porque afeta diretamente o sistema neurológico destas crianças”, narra Jennings: “É uma urgência sanitária no Brasil”.

O neurologista explica justamente que os quadros mais graves na região do Tapajós são encontrados entre crianças, em função da contaminação das mães. Isso porque o metal atravessa a placenta, causando uma lesão irreversível do sistema nervoso e podendo gerar problemas de coração, tireóide e no sistema imunológico dos bebês. 

Entre adultos, os sinais se instalam de forma mais sutil, incluindo sintomas como falta de atenção, alterações de linguagem, na coordenação motora e também formigamentos, que fazem com que as pessoas confundam o quadro com distúrbios psicológicos. “Esse é um problema porque dá a falsa sensação de que não existe a intoxicação.”

Um dos aspectos mais preocupantes da pesquisa é o elevado nível de mercúrio no sangue de mulheres em idade fértil, já que, se engravidarem, há risco de que o sistema neurológico do bebê seja afetado (Foto: Greenpeace)

O mercúrio é usado no garimpo para ajudar a formar uma amálgama de ouro e, depois disso, vai parar nas águas do rio, intoxicando peixes e as pessoas que os consomem. A estimativa é de que os garimpos ilegais despejem no Rio Tapajós, por ano, 7 milhões de toneladas de sedimentos, sendo a maior parte de mercúrio. 

O trabalho do médico foi acompanhado pelo documentarista Jorge Bodanzky durante as gravações do documentário “Amazônia, a nova Minamata?”, lançado no início de 2020. O filme relaciona a contaminação por mercúrio na Amazônia e a tragédia da contaminação na década de 1950 em Minamata, no Japão. O caso deu origem à Convenção de Minamata, acordo internacional que limita o uso de mercúrio por problemas que o metal causa ao meio ambiente e à saúde. O Brasil é signatário. 

O estudo foi realizado na mesma época em que a Fundação Oswaldo Cruz, em parceria com a ONG WWF, desenvolveu uma pesquisa similar, também entre os Munduruku, mas em uma região diferente, no Médio Tapajós. Essa pesquisa aponta que 58% dos 200 indígenas participantes apresentaram níveis de mercúrio acima do recomendado pela OMS. Em uma das aldeias, o nível de contaminação chega a 87%, e mais de 15% das crianças menores de 5 anos analisadas tinham problemas de neurodesenvolvimento. 

Ameaçada por ser anti-garimpo

A pesquisa de Jennings se cruza com a trajetória de vida da líder Alessandra Korap Munduruku, que hoje sofre ameaças por conta de suas denúncias contra projetos que impactam seu território, como o garimpo – problemas acentuados sob a política do governo de Jair Bolsonaro (sem partido).  O resultado da pesquisa medindo os índices de intoxicação por mercúrio do povo Munduruku seria o culminar de um longo processo iniciado por Alessandra anos antes e para o qual ela desempenhou um papel crucial.

A líder indígena conta que, para ela, um dos grandes sinais de alerta para o tema do mercúrio foi o adoecimento de um importante parceiro pariwat [branco], Cássio Freire Beda. Indigenista que viveu durante alguns anos no Vale do Tapajós apoiando o povo Munduruku, Cássio apresentou altos índices de mercúrio no sangue. Desde 2016, ele passou a enfrentar graves problemas no sistema neurológico que, ano após ano, debilitam sua movimentação e agravam seu estado de saúde. Alguns médicos atribuem sua situação à contaminação por mercúrio. Além disso, nesse mesmo ano, outro sinal de alerta para Alessandra foi a publicação de um estudo da Fiocruz apontando que os Yanomami estavam com índices preocupantes de intoxicação pelo mercúrio usado no garimpo. 

Garimpo corta territórios Munduruku e preocupa lideranças como Alessandra, que sempre se questionou sobre as consequências para os garimpeiros: “Tem que ter punição, porque eles estão nos matando” (Foto: Greenpeace)

Em 2017, respaldada pelo povo Munduruku, Alessandra solicitou à Fiocruz que realizasse uma pesquisa sobre a intoxicação do Médio Tapajós, como a que haviam realizado com o povo Yanomami. Em maio de 2019, foi a vez dos caciques do Alto Tapajós – a região mais impactada pelo garimpo ilegal – solicitarem uma pesquisa similar ao Hospital Regional do Baixo Amazonas, que ficou a cargo Jennings e foi concretizada por uma parceria com a Universidade Federal do Oeste do Pará .

“A gente já sabia que ia ter essa doença. Sempre dizíamos para os parentes: ‘olha o mercúrio’, mas aqueles que são favoráveis à destruição não acreditam”, conta outra liderança da etnia, Kabaiwun Munduruku (que antes era conhecida como Leusa). “Essa contaminação é séria. O povo munduruku realmente está doente, e a gente precisa cuidar deles, delas, das crianças, muitas mulheres grávidas; é muito triste”.

Alessandra conta que sempre se questionou sobre as consequências para os garimpeiros. “Tem que ter punição, porque eles estão nos matando. Não é questão de se o garimpo vai trazer impacto. Já trouxe”, afirma a liderança Munduruku. “Os peixes estão morrendo contaminado. As mulheres estão envenenadas. Agora a gente tem prova”, preocupa-se Alessandra.

Assembléia de resistência

Esse cenário levou o povo Munduruku a se mobilizar por uma “Assembléia da Resistência”, que aconteceu entre 15 e 18 de dezembro, na mesma aldeia Waro Apompu. Todas as aldeias Munduruku foram convocadas, inclusive aquelas que defendem a atividade de garimpo. 

“Se a gente não reagir, nosso povo vai morrer. Se não chamarmos todo mundo, as mulheres, dizer o que está acontecendo e como a gente pode seguir nossa luta, a gente vai morrer calado”, afirma Kabaiwun, que, mesmo sob ameaça, marcou presença no evento.  

Kabaiwun tinha 26 anos quando “entrou para luta”, como ela diz. Ela é reconhecida como a primeira mulher a participar ativamente desses espaços antes reservados para os homens. “Vimos que os homens estavam ali participando, aí eu comecei a participar dessas ações. A luta não era só dos homens, era das mulheres também”. 

Dois anos depois, conheceu Alessandra, que ainda era tímida, apesar de já lutar dentro de sua comunidade. Alessandra sempre se lembra de como Kabaiwun a incentivou para estar cada vez mais atuante na luta. “Quando conheci a Kabaiwun, ela sempre me via e dizia que eu seria uma grande guerreira. Ela sempre me incentivava. Fui falando, de pouquinho em pouquinho, e até hoje a gente anda junto”, lembra Alessandra. “A gente está chamando outras mulheres, porque não pode ser só eu, ela; hoje já têm muitas mulheres Munduruku que estão gritando”.

Desde então, elas ganharam projeção. Em 2015, Kabaiwun e a liderança Rozeni receberam o Prêmio Equador 2015, pelo histórico de luta do movimento Munduruku Ipereğ Ayũ, movimento de resistência que a Kabaiwun coordenava naquele momento. Mais recentemente, Alessandra Korap ganhou o prêmio internacional de direitos humanos Robert F. Kennedy. Mas elas fazem questão de reforçar que não atuam sozinhas. Kabaiwun faz parte da Associação de Mulheres Wakoborun, que reúne lideranças de diversas comunidades do Alto Tapajós, e Alessandra da Associação Indígena Pariri, do Médio Tapajós.

Em carta publicada pelas lideranças presentes na assembleia, deixam claro, novamente, sua posição com relação ao garimpo em território indígena e àqueles que apoiam essa atividade. “Não aceitamos a criação da cooperativa agro garimpeira Munduruku que foi criada na aldeia Karapanatuba em dezembro de 2020, por um pequeno grupo de indígenas. Somos Munduruku e não garimpeiros. Não precisamos do garimpo para viver, temos nossas organizações que trabalham para a vida e não para a morte”, diz o documento.

“Nós não vendemos o nosso povo, nós não negociamos a vida dos nossos filhos. Por isso que as mulheres estão na frente dessa luta, porque a gente continua gerando a vida”, conclui Kabaiwun, que retornou para o território na Assembleia a pedido dos caciques.

*Colaborou Felipe Garcia

Reportagem produzida com o apoio da International Women’s Media Foundation’s Howard G. BuffettFund for Women Journalists.


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