O sonho de Maria da Penha era voltar a viver em Bento Rodrigues, o distrito de Mariana (MG) que foi destruído pela lama do rompimento da barragem da Samarco em 2015. Sem poder voltar para casa, pois seu “cantinho” foi reduzido a escombros, a aposentada se contentou com a ideia de viver no local que está sendo construído para reabrigar os atingidos.
Mas Penha não acompanhou a visita às obras no último sábado (27), e também não participou do protesto, em que os sobreviventes se indignaram com o atraso na entrega das casas pela Fundação Renova – organização criada para reparar os danos provocados pela Samarco e suas acionistas Vale e BHP Billiton. Desde novembro de 2019, o corpo de Maria da Penha está enterrado no cemitério ao lado da capela de Nossa Senhora das Mercês, uma das poucas construções poupadas pela avalanche de rejeitos de minério.
“Ela viu a lama levando a casa dela e nunca mais foi a mesma”, conta a filha, Luciene Alves, em lágrimas, enquanto observa o novo lote sem nenhuma parede levantada pela Renova. Além de Penha, pelo menos outras 54 pessoas que deveriam ser reassentadas morreram antes de receberem as chaves, segundo a Cáritas, entidade da igreja católica que atua ao lado dos atingidos. A conta considera as pessoas falecidas até novembro de 2020, quando o desastre completou 5 anos. Além deles, outros 19 morreram soterradas pelo tsunami de 44 milhões de m³ de rejeito de mineração, que deixou também 394 famílias desabrigadas, sem contar a devastação ambiental.
A Fundação Renova pediu, na Justiça, sucessivos adiamentos para a entrega das construções. A data inicial era março de 2019, que foi adiada para 27 de agosto de 2020 e novamente postergada para 27 de fevereiro de 2021, quando foi descumprido pela terceira vez.
As obras, contudo, estão longe da conclusão. No reassentamento de Bento Rodrigues há cinco casas prontas e outras 20 em construção, das 209 prometidas. A lentidão é ainda maior em Paracatu de Baixo, outro distrito destruído há 5 anos: nenhuma casa está pronta. Das 97 planejadas, somente sete tiveram as obras iniciadas. Quem observa o local tem dificuldade de imaginar que ali será erguida uma comunidade.
Diante do último atraso, o Ministério Público pediu na terça-feira (2) o pagamento de multa de R$ 1 milhão por dia descumprido. A Renova tenta o aval da Justiça para conseguir um novo prazo e se livrar da penalidade.
O MP pediu também a extinção da fundação: “Falta empatia e humanidade para com as pessoas atingidas. Cinco anos depois, as duas maiores empresas de mineração em todo o mundo [Vale e BHP] não conseguiram reconstruir um único distrito”, lamentam os promotores Gregório Assagra de Almeida e Valma Leite da Cunha, no texto da ação ajuizada em 24 de fevereiro.
A promessa da Fundação Renova, segundo nota enviada à Repórter Brasil, é a de que até o final deste ano 64 casas estarão prontas. A fundação informa que 95% das obras de infraestrutura estão concluídas (drenagem, energia elétrica, redes e de água e de esgoto), que o posto de saúde está pronto e a escola em fase final. A organização diz ainda que permanece dedicada às obras, com a previsão de gastar R$ 1 bilhão neste ano. “Um aumento de 14% em relação ao ano anterior”, afirma. Leia aqui a íntegra.
‘A Renova está enrolando’
Sem casas na nova Bento Rodrigues, resta a alguns moradores mais velhos um pedaço de terra no cemitério. O túmulo de Penha está próximo à sepultura de Valdeimar Martins, o Tuquinha, que morreu no último dia de 2020, aos 80 anos. No hospital, ele repetia aos familiares que sentia muita saudade de sua casa e que quando estivesse recuperado iria cozinhar frango com quiabo, polenta e costelinha no fogão à lenha. Tuquinha queria voltar a Bento Rodrigues, mesmo que fosse para o reassentamento, segundo a sobrinha Maria das Graças Quintão, mas morreu sem ver nenhuma parede pronta. Teve seu último pedido atendido pela família: ser enterrado no cemitério ao lado da capela, que fica em um ponto alto da Bento Rodrigues devastada.
“A Renova está enrolando o povo. O negócio deles é ganhar dinheiro”, acusa Vera Lúcia da Paixão, de 65 anos, que morava em Paracatu de Baixo e vive hoje em uma casa alugada no centro de Mariana. Na sua opinião, quanto mais tempo a fundação levar para concluir as casas, os funcionários da Renova serão bem pagos por um período maior.
O argumento de Vera ressoa na acusação do Ministério Público, que rejeitou pela quarta vez a prestação de contas da Fundação Renova, por não ter explicado os salários “exorbitantes” pagos aos seus diretores. A diretora de planejamento e gestão, por exemplo, recebeu remuneração anual superior a R$ 1 milhão. Para o MP, os salários são desproporcionais ao rendimento médio do mercado. “Gera perplexidade em se tratando de instituição sem fins lucrativos”, afirma o MP em um trecho da decisão.
Em nota enviada à Repórter Brasil, a Fundação Renova afirma que discorda das alegações do MP e que suas contas são submetidas a uma auditoria independente, que aprovou a prestação de contas. Afirmou também que adota “valores compatíveis com as responsabilidades assumidas” para remunerar seus executivos.
Enquanto a Renova justifica os altos salários, Vera lamenta que não será mais vizinha da irmã Izolina das Dores Izaías, quando for reassentada em Paracatu de Baixo. A irmã morreu em fevereiro do ano passado. “Ela era alegre, sorridente, mas o que tinha que falar não deixava para amanhã. Ia nas reuniões com a Renova e brigava muito”, lembra Vera.
Vera acredita que o aneurisma que matou a irmã pode ter sido provocado pelo abalo que ela enfrentou por ter que sair da casa que viveu a vida toda, em um ambiente rural, para viver na área urbana de Mariana. “Ela ficou muito abalada. Mas todo mundo está assim. Uns ficam estressados, outros ficam muito tristes”, afirma. A família morava em um terreno de 14 mil metros quadrados onde cultivavam hortaliças e frutas e pescavam no rio.
Os atingidos sentem um misto de alívio e apreensão diante da possibilidade do fim da Fundação Renova. No protesto que fizeram no último sábado, convidaram a equipe da Repórter Brasil e, ao percorrerem as ruas em obras do reassentamento de Bento Rodrigues, especularam sobre o que pode acontecer. Muitos temem que as obras sejam assumidas pelo governo estadual e nunca sejam entregues. Ao mesmo tempo, desejam que a Renova saia de cena por conta dos atrasos.
Na ação ingressada pelo Ministério Público, é solicitada a intervenção judicial, com a nomeação de uma junta interventora para exercer a função de conselho curador, que definiria a transição.
A Renova é acusada pelo MP de servir de escudo para as empresas (Samarco e suas acionistas: Vale e BHP) e de não atuar como agente efetiva para reparação humana, social e ambiental. O MP também pede que Samarco, Vale e BHP sejam condenadas a pagar os danos materiais que a Fundação Renova não reparou e banquem uma indenização de R$ 10 bilhões por danos morais.
Procurada, a BHP disse que não foi intimada pelo MP e que dá suporte à Renova. Vale e Samarco disseram que cabe à Fundação Renova a execução das medidas de reparação dos danos sociais e ambientais. Disseram ainda que apoiam o trabalho da fundação.
Para o MP, a Renova não é independente e é comandada pelas empresas responsáveis pelo rompimento da barragem. “É como se fosse autorizado que os acusados pudessem decidir e gerir os direitos das suas próprias vítimas”, comparam os promotores de Justiça que assinam a ação, Gregório Assagra e Valma Leite.
Sequelas até a morte
Penha tinha 69 anos e se recuperava de uma fratura no fêmur quando a lama chegou em Bento Rodrigues. Sem conseguir levar a mãe no colo, uma das filhas cogitou morrer abraçada com ela. Foram salvas por um morador que passou de carro, mas ao ser carregada, Penha se machucou muito. “Ficou cheia de hematomas porque ela caiu duas vezes no caminho por causa do desespero da lama chegando”, lembra Luciene.
Penha foi de helicóptero para o hospital, mas nunca mais andou. “Teve artrose, trombose e perdeu musculatura. Antes da lama, ela estava se recuperando da fratura e andava com a ajuda de andador”, detalha a filha. Apesar da saúde fragilizada, Penha seguiu lúcida e lamentava diariamente a saudade que sentia dos pés de mexerica e laranja serra d’água soterrados pela lama na horta de casa. A dor maior, porém, ela sentia pela perda do Gigante, o cachorro vira-lata de estimação, que foi levado pela lama.
Enquanto a família de Penha aguarda a nova casa e a Fundação Renova está no alvo do Ministério Público, a mineradora Samarco voltou a operar em dezembro do ano passado, com uma de suas minas a poucos quilômetros do reassentamento de Bento Rodrigues. Dias antes do retorno, o preço do minério de ferro bateu recorde no mercado internacional e desde então segue tendência de alta.