Mesmo tendo sido flagrada com seguidas infrações ambientais por desmatamento ilegal nos últimos anos, mesmo estando nas listas de embargo de órgãos ambientais tanto estadual como federal, e mesmo tendo espalhado chamas como foco de uma extensa queimada ilegal que arrasou com mais de 1,2 mil hectares no final de julho de 2020,propriedade de grandes dimensões na Amazônia brasileira mantinha uma “ficha limpa” aparente para continuar produzindo grãos, criando gado e comercializando sua produção.
Por meio do uso de um Cadastro Ambiental Rural (CAR) de outra propriedade próxima, a Fazenda Formoso, localizada em Marcelândia (MT), recebeu autorização provisória de funcionamento rural (APF) da Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Mato Grosso (Sema/MT) em setembro de 2020, com validade até o final do ano passado. Somente após alertas e questionamentos encaminhados ao órgão pela Repórter Brasil, ainda em dezembro de 2020, a documentação foi cancelada no dia 22, apenas uma semana antes do dia 31 de dezembro, quando expirava o seu prazo de validade.
Após análise interna, a Sema/MT confirmou que o Cadastro Ambiental Rural (CCAR autodeclarado) que constava desta autorização legal APF (nº 38005/2020), que liberava atividades econômicas em 4,8 mil hectares dos quase 7,5 mil hectares totais declarados “criados unicamente para obtenção da APF autorização provisória” e “não corresponde correspondia à área da Fazenda Formoso”. Constatada a irregularidade, a referida autorização “foi além da anulação do documento, a Sema/MT cancelada e anunciou as que responsabilidades pelo desvio estão estavam sendo “apuradas” para “adoção de medidas cabíveis”. Houve, ainda segundo a própria Sema/MT, “fortes indícios de obtenção indevida desta APF” e providências estão sendo tomadas para apurar as devidas responsabilidades e “o relato deste fato será seria encaminhado para à Delegacia Especializada de Meio Ambiente (Dema)”.
Apenas em autos de infração por ilícitos ambientais da Sema/MT, o complexo da Fazenda Formoso tem 17, lavrados entre 2016 e 2019 (ver quadro abaixo com fiscalizações e períodos), somando multas superiores a R$ 3,5 milhões. Além de aparecer como beneficiária das APFs e proprietária principal tanto em documentos fundiários como ambientais, Alexandra Aparecida Perinoto responde nominalmente à maioria desses autos; parte deles também mencionam filhos/as da empresária rural que mantém base de negócios em Sinop (MT). As fiscalizações de 2016 resultaram em embargos que permanecem ativos. Estes últimos, porém, como realça o órgão ambiental estadual, se referem apenas às áreas específicas das irregularidades e seus efeitos, como prevê a legislação, “não se estendem para as demais áreas do imóvel”.
Para tentar obter APFs que pudessem “lavar” a produção da Fazenda Formoso, conferindo regularidade à mesma, apresentaram-se, ao todo, 27 pedidos, 20 deles após agosto de 2019, meses depois de duas fiscalizações ambientais – uma da Sema estadual outra do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) federal – que flagraram uma série de infrações (inclusive com embargo de várias áreas dentro da propriedade). De todas essas solicitações – e mesmo após o já citado cancelamento de uma APF -, outra, relativa a uma parte menor (Lote 8) do que 5% (344,5 hectares) da área completa continua válida até o final de 2021. Concedido inicialmente em outubro de 2019, o documento autoriza o uso econômico de 178,5 hectares, pouco mais da metade do perímetro do Lote 8 e somente 3,7% daquela liberação (ilícita e anulada) de área maior de 4,8 mil hectares.
Essa enxurrada de solicitações de APFs se deu de forma coordenada com operação paralela e preparatória de fragmentação de múltiplos registros de CAR – recurso ilícito que viola a instrução normativa 2/2014 (Art.32) e vem sendo alvo de críticas de especialistas há muito tempo. Organizações ambientalistas e setores da estrutura do Estado que atuam com questões de sustentabilidade denunciam o uso do CAR como instrumento de diversas formas de desvios.
“O CAR foi um dos elementos mais importantes do Código Florestal que passou a valer em 2012. Existem aspectos positivos associados a ele, mas a maneira como foi implementado e as lacunas que foram deixadas ao longo do tempo foram se acumulando, gerando mais brechas para que seja possível fugir da legislação e de algumas regras”, comenta o engenheiro ambiental Heron Martins, analista de dados da organização não -governamental (ONG) Center for Climate Crime Analysis (CCCA). “Uma das coisas problemáticas é a possibilidade de edição do CAR. O sistema permite que sejam feitos ‘ajustes’ até que ele seja validado”, completa, lembrando que o processo de validação completa do CAR por parte dos órgãos estaduais anda a passos bem lentos e segue sendo um “calcanhar de Aquiles” de todo sistema.
No caso da Fazenda Formoso, houve um primeiro parcelamento em três partes iguais (inferiores a 2,5 mil hectares cada uma), com um segundo nível de fragmentação em 21 lotes (mais detalhes a seguir). Todos esses 21 “lotes” foram registrados como empreendimentos separados (4 em nome de cada um dos 3 filhas/os e 9 em nome da própria Alexandra). Quanto aos registros de CAR e aos pedidos de APF, inúmeros arranjos foram feitos (conferir tabela abaixo elaborada pelo ICV) para buscar garantir pelo menos uma documentação ativa para a comercialização de commodities agropecuárias.
Segundo a Sema, a APF do Lote 8 da Fazenda Formoso atende ao requisito de ter sido reconhecida como parte da “base de referência de uso consolidado”, com desmatamento anterior a 22 de julho de 2008 (conforme Código Florestal de 2012), seguindo regramento estabelecido pelo Decreto Estadual 262/2019. Sobre o processo que prorrogou a autorização (nº 22096/2019, anexada a termo de compromisso ambiental) até o final de 2021, a secretaria informou que a prorrogação automática por mais um ano foi concedida para todas as APFs em decorrência do Decreto n 770, de 29/12/2020.
Série de “dribles”
Muitos artifícios vêm sendo utilizados por agentes privados envolvidos em desmatamentos e queimadas de floresta nativa amazônica para a continuidade de suas atividades econômicas mesmo depois de seguidas infrações e sanções ambientais. Tomando como exemplo alguns recortes emblemáticos a partir do monitoramento da destruição do bioma ao longo deste ano, Repórter Brasil iniciou a publicação, com este caso sobre a Fazenda Formoso/Agromaster (ver mais sobre abaixo), de um conjunto de retratos para um panorama amplo de “dribles” que vêm sendo dados nas diversas normas e regulações instituídas que, pelo menos em seus propósitos, buscam conter o ímpeto que move os ciclos de destruição.
Resultado de uma combinação de cruzamentos e colaborações de diversos parceiros, estes esforços de caráter investigativo revelam que mesmo propriedades privadas supostamente “reguladas e monitoradas” – e não apenas as ditas áreas não-destinadas, cuja titularidade e responsabilidade direta repousam sob os colos do Estado –, inclusive fiscalizadas e atuadas seguidamente por várias instâncias, até mesmo com aplicação de embargos tanto estaduais como federais, permanecem a pleno vapor em suas marchas de violações, com ampliação de desflorestamentos e queimadas de grandes proporções. Mais do que isso: pela fragilidade da governança social e de seus instrumentos restritivos e sancionatórios, sequer tem suas produções de algum modo inibidas, mantendo vias de escoamento para o mercado.
O caso Formoso/Agromaster ilustra, de forma didática, manobras e subterfúgios de agentes do setor do agronegócio que se utilizam de diversos expedientes dentro do próprio sistema para prosseguir sua marcha, ano após ano, safra após safra. Como se verá nos próximos módulos desta série, parecem não estar muito preocupados em alterar as suas condutas que desembocam invariavelmente em danos socioambientais.
A propriedade em questão também acumula infrações emitidas pelo Ibama federal. O primeiro registro de desmatamento ilegal veio ainda em 2013, quando houve autuação e multa no total de R$ 3,44 milhões emitido em nome da citada proprietária. Em 2019, fiscais estiveram mais uma vez na área, encontraram novamente graves e extensas irregularidades e aplicaram outra multa milionária de mais de R$ 8,6 milhões – o que também resultou na entrada da lista de embargos, desta vez da autarquia federal. Por fim, em agosto de 2020, o mesmo Ibama esteve novamente na área para aplicar sanções administrativas por conta do descumprimento do embargo estabelecido em 2019 e também pela já citada queimada.
A assessoria de comunicação do Ibama confirmou ainda que, neste caso da Formoso, agentes chegaram a receber, numa das fiscalizações um contrato de venda em nome de outrem que posteriormente se revelou objeto de falsificação. Segundo o órgão, a Polícia Federal (PF) foi comunicada e iniciou-se o rito de “transferência da multa para os verdadeiros proprietários da fazenda”. A Repórter Brasil entrou em contato via telefone para solicitar o posicionamento da proprietária Alexandra Aparecida Perinoto, mas não obteve retorno.
Essas ilicitudes têm se desdobrado também em processos judiciais tanto do Ministério Público Estadual do Mato Grosso como do Ministério Público Federal (MPF). O MPMT enquadrou os casos dessas três fazendas como parte do Projeto Satélite Alertas, parceria com o Inpe que passou um pente fino nos grandes desmatamentos registrados entre 2008 e 2019; já o MPF entrou com uma ação civil pública com causa estipulada no valor de R$ 3,5 milhões, protocolada em 2017 com base em desmatamento detectado pelo PRODES/Inpe em 2016 e comprovado por relatório de perícia, dentro do programa Amazônia Protege, que segue em tramitação.
Queimada e desmatamentos
Uma grande queimada se alastrou pelo conjunto da Fazenda Formoso, no final de julho e início de agosto. O fogo se alastrou, segundo dados do Painel de Controle da Amazônia, mantido pela Nasa (agência espacial dos EUA), e também por imagens de outros sistemas de monitoramento (como o da InfoAmazonia: https://infoamazonia.carto.com) um total de 1,6 mil hectares, inclusive para fora dos limites da propriedade – o equivalente a 1,6 mil campos oficiais de futebol, mais do que toda a vegetação destruída no desastre do rompimento da barragem em Mariana. Nos cálculos do Ibama, somente o estrago interno ilegal (desde 1º de julho, Mato Grosso determinara a moratória do fogo, reforçada por decreto presidencial em nível nacional similar que passou a vigorar a partir de 16 de julho) teria sido de 1,2 mil hectares.
Separadas em sua origem como três grandes propriedades retangulares – Fazendas Formoso/Agromaster, Formoso II e Mariana, em seus registros no Sistema Gestão Fundiária (SIGEF), do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) (ver imagens abaixo) -, uma ao lado da outra, as áreas se localizam ao lado do Projeto de Assentamento Bonjaguá. Percebe-se que, logo na própria questão dos nomes, há uma confusão estabelecida nos dados listados pelos registrantes: num pedido de autorização para exploração florestal à Sema/MT datado de 2008 em nome de outro proprietário a área da Fazenda Formoso aparece como Fazenda Formosa, com terminação diferente.
Uma das fazendas, em documento mais recente de 2014 já no nome único de Alexandra Aparecida Perinoto, aparece designada apenas como Agromaster Fomento Agrícola III (consta até um erro de grafia na palavra no SIGEF, em que está “Agrícula”). Essa mistura ruidosa de nomes e letras envolve ainda uma pessoa jurídica, a Perinoto & Sotti Ltda, que tinha Alexandra como sócia e foi extinta em 2017. A discrepância em torno dos nomes e dos responsáveis pode ser considerada, portanto, como uma parte relevante dos “dribles” utilizados por agentes privados (quase sempre envolvendo também membros da família), uma vez que na própria mencionada ação protocolada pelo MPF a teia entre pessoas físicas e jurídicas acabou gerando ruídos, para além da reiterada dificuldade de notificação dos envolvidos.
Outro expediente de “drible” parece combinar a questão dos nomes das propriedades (em especial a “substituição” de Formoso por Agromaster) com estratégias deliberadas de fracionamento da terra – por meio de distintas ferramentas como o próprio Cadastro Ambiental Rural (CAR) – no sentido de dificultar o estabelecimento de vínculos dos produtos agropecuários escoados para o mercado com áreas específicas com registro não só de passivos ambientais, mas efetivamente embargadas tanto pelo governo estadual como pelo federal. Como parte das sanções se concentrou a porções da imensa área total de cerca de 7,5 mil hectares, é possível supor que gestores se valeram desses artifícios de “manejo de origens”, atribuindo fontes aparentemente “limpas”, para que a produção fosse mantida e seus produtos não fossem barrados.
Nessa linha, salta aos olhos, pelo lado da proprietária, a subdivisão estabelecida no Sistema Mato-grossense de Cadastro Ambiental Rural (SIMCAR), da Fazenda Formoso II em duas partes desmembradas (uma com 350 hectares, outra com 2,1 mil hectares), e da Fazenda Mariana em outras três (a própria Mariana, com 1,7 mil hectares; a Fazenda Formoso – Lote 08, com 344 hectares, e a Fazenda Formoso – Lote 14, com 358 hectares). Aquilo que inicialmente era um conjunto de três grandes fazendas no SIGEF/Incra aparece, no SIMCAR, como sete propriedades distintas, cada uma com o seu percentual respectivo de desmatamento e de sanções respectivas (nenhuma delas com o CAR validado), de acordo com as fiscalizações, multas e embargos aplicados pelas autoridades ambientais ao longo dos últimos anos.
Com esse “drible”, aparentemente não recaem embargos sob a área principal da Fazenda Formoso/Agromaster Fomento Agrícola III, mesmo tendo 56,9% de sua área desmatada (acima do limite de 20% para garantir a Reserva Legal no bioma Amazônia). Também pela mesma chicana, a própria Fazenda Mariana tem o seu percentual de degradação bastante reduzido (35,6%) e parcelas separadas, como a “Fazenda Formoso – Lote 14” aparecem intactas, por ser um recorte menor e “separado” dos outros “lotes” que formam o todo da Formoso. Justamente por este expediente a “Fazenda Formoso – Lote 8”, uma das múltiplas parcelas mencionadas no início produzidas no “fracionamento” do riscado paralelo do Sistema Nacional de Cadastro Rural (SICAR), pôde ser beneficiária de uma autorização temporária, por possuir no interior de seus limites partes desmatadas antes de 2008.
Pelo lado justamente dos órgãos estatais, chamam atenção outros dois aspectos, além das reconhecidas falhas na concessão de autorizações temporárias para funcionamento rural. O primeiro deles é a morosidade com que esses autos de infração tramitam no sistema burocrático. Dos 17 relativos a essas áreas por parte da Sema/MT, somente seis tiveram a decisão homologada para o referendo da multa (nenhuma foi paga) e manutenção de embargo. Apenas um deles, no nome de uma das filhas de Alexandra, foi inscrito em dívida ativa por não ter sido interposto recurso. A Procuradoria-Geral do Estado do Mato Grosso (PGE/MT) informou à Repórter Brasil, por meio de sua assessoria de imprensa, que o ajuizamento da execução fiscal foi realizado em março de 2021 na 6ª Vara Cível de Sinop..
Segundo a PGE/MT, a dívida ativa possui correlação com a origem do crédito que, nesse caso, foi oriundo do auto de infração lavrado em nome da parte citada. Se, durante a lavratura do auto, o analista ambiental constatou que a atividade estava sendo praticada ou possuía correlação com a autuada, a dívida ativa vai refletir isso. Na prática, contudo, neste caso da Fazenda Formoso, as autuações estão ocorrendo em face tanto da mãe Alexandra como da filha, “só que os processos não foram concluídos simultaneamente”, ou seja, “caso haja a conclusão de processo em nome da senhora Alexandra e o correspondente pagamento não ocorra, ela terá inscrição no próprio nome também”.
O desencontro diante da multiplicidade de sistemas (sejam fundiários, sejam ambientais) é o segundo aspecto relevante quanto ao papel desempenhado pelas instituições do Estado, também elas de alguma maneira “dispostas” a serem dribladas. Descompassos e desarticulações acabam por facilitar a vida de infratores que, cientes dessas lacunas, produzam uma sorte de bagunça deliberada de denominações e perímetros para complicar ainda mais o monitoramento e a regulação que não são necessariamente de interesse apenas estatal, mas público. Segundo avaliação da equipe técnica do Instituto Centro e Vida (ICV) que ajudou na análise dos dados, “há muitos pontos em que a integração entre os órgãos e poderes é falha” e existem também múltiplos “gargalos em termos de capacidade técnica e força de trabalho”.
Os sistemas de gestão ambiental, florestal e de terras nos dois níveis (estadual e federal), prossegue a análise, têm problemas de integração, de modo que muitos dados simplesmente não são cruzados. O SIGEF, do Incra, é uma coisa recente e o CAR ainda está pendente da sua fundamental etapa de validação. Em todos os órgãos responsáveis, segundo a análise técnica do ICV, há menos funcionários, menos equipamentos e menos capacidade técnica daquilo que seria necessário para integrar esses sistemas, bases de dados e informações. Sem essas condições estruturais, não é possível viabilizar uma inteligência que realmente faça a fiscalização e o monitoramento ambiental “funcionar plenamente”.
Cadeia produtiva
Por meio desses diversos “dribles” e mesmo com tantas e tamanhas infrações ambientais, as atividades agropecuárias no conjunto das três fazendas prosseguiu em atividade e expansão. Com base numa pesquisa exclusiva de cadeia produtiva, a Repórter Brasil identificou registros de fornecimentos diretos de soja provenientes da Agromaster III para duas companhias: a Fiagril e a Aliança Agrícola do Cerrado. Ambas adquiriram carregamentos de soja da Fazenda Formoso/Agromaster III no decorrer dos seis primeiros meses de 2019.
A Fiagril, como associada à Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), e a Aliança Agrícola do Cerrado, como parte da Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (Anec), são signatárias da Moratória da Soja, acordo intersetorial de adesão voluntária que completou seu 14º ano de implementação em torno do compromisso do veto à aquisição e venda de commodities provenientes de áreas desmatadas da Amazônia a partir de 2008, data-limite estabelecida pelo Código Florestal Brasileiro. As duas companhias – Fiagril, ligada atualmente à chinesa Dakang, e Aliança, parte do conglomerado russo Sodrugestvo, com sede em Luxemburgo – foram contactadas pela reportagem para se posicionarem sobre o caso, mas não responderam.
Ainda que as transações tenham sido realizadas no mesmo semestre das fiscalizações ambientais do Ibama (abril de 2019) que encontraram graves ilícitos nas fazendas, a sucessão de ilegalidades torna pouco convincente qualquer alegação de que não era possível supor que houvesse passivos ambientais tão pesados por trás da produção da Agromaster/Formoso. Primeiro porque as fazendas já estavam embargadas pela Sema/MT desde 2016. Segundo porque há registros de vendas de soja para as citadas que foram feitas depois da entrada da mesma área na própria lista de referência de embargos do Ibama, em abril de 2019.
A vasta queimada ilegal de julho e a multa do Ibama por descumprimento do embargo em agosto de 2020 neste conjunto de fazendas se apresentam, assim, como “coroamento” de um longo processo de irregularidades que passou batido pelas regulações públicas e privadas e teve nos mercados nacional e internacional parceiros da devastação da Amazônia.
Para além de estudos e levantamentos mais amplos que revelam os laços entre o cultivo da soja e o desmatamento na Amazônia – como os do ICV/Trase ou do professor da UFMG, Raoni Rajão, este caso da Fazenda Agromaster III (Formoso/Formoso II/Mariana) dá uma amostra concreta que mesmo áreas enormes e agentes produtores reiteradamente flagrados com e responsabilizados por crimes ambientais, inclusive incluídos em listas de embargos ambientais, podem estar, por meio de um conjunto de “dribles”, fazendo parte do circuito do mercado de commodities para exportação com relativa facilidade e tranquilidade.
Nesse sentido, a própria assessoria do Ibama salientou à Repórter Brasil que “os embargados se utilizam muitas vezes de nomes de terceiros como medida para driblar as sanções e poder comercializar os produtos oriundos de áreas embargadas”. Heron Martins, que já fez múltiplos estudos sobre o tema (inclusive sobre a “ilusão amazônica” da Reserva Legal, cuja porcentagem de 80% se aplica efetivamente apenas a 22,75% dos 389 mil imóveis situados no bioma, ressalta a existência inclusive de uma expressão específica para caracterizar esses dribles aos diversos sistemas de rastreamento com base em registros de CAR: “vazamento”. “O que eu verifiquei ao longo do tempo é que diversas edições desses registros de CAR buscam, entre outras coisas, excluir desmatamentos: tanto passados como os que ainda vão ocorrer. Quando o órgão ambiental ou o agente comprador olha apenas aquele CAR, não há desmatamento sobreposto. Essa é uma forma de burlar – e ainda existem muitas outras”.