“Não é só uma casa, é a história de construção de uma cultura.” Assim o jovem caiçara Heber do Prado resume a razão que o levou a buscar na Justiça, em abril, o direito de retomar sua ocupação na região do Rio Verde, situada no interior da Estação Ecológica Jureia-Itatins, no município paulista de Iguape.
Os exemplos vão de ervas medicinais às práticas das roças, passando por aspectos religiosos e musicais da cultura tradicional caiçara. “Todo o conhecimento que a gente traz está ligado a esse território”, confirma Marcos Prado, que acompanha o primo no mesmo pleito judicial.
Em 2019, a Fundação Florestal, órgão ligado à Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo, conduziu uma operação para demolir as casas de três casais caiçaras. Marcos e sua esposa, Daiane Neves, assim como Heber e sua companheira, Vanessa Muniz, tiveram suas habitações destruídas.
Só uma das casas permaneceu de pé, porque Karina Otsuka, companheira de Edmilson Prado, primo dos outros rapazes, estava grávida e se recusou a deixar a construção. A ação foi deplorada pelos avós dos rapazes, seu Onésio Prado e dona Nancy Prado, que disse à época: “Será que não tem autoridades no nosso país, no nosso município, que possam ajudar? Vendo a casa dos meus netos destruída. No lugar em que eu me criei, no lugar em que meu pai fez a casa dele…”
A Fundação, por meio de nota, alega que a demolição ocorreu porque “as equipes de fiscalização flagraram três construções irregulares no Rio Verde, o coração da Jureia, área de altíssimo valor ambiental totalmente desabitada”.
Para Andrew Toshio, membro da Defensoria Pública do Estado de São Paulo que acompanha a demanda das famílias, a Fundação agiu indevidamente. “Eles ingressaram com a ação sem ordem judicial, aviso prévio, sem providenciar transporte e oferecer qualquer alternativa habitacional, ainda que provisória. Do meu ponto de vista, é ilegal”, afirma. Além disso, o defensor destaca que, com a ação violenta e abrupta, o órgão ambiental rompeu unilateralmente um processo de diálogo mediado também pelo Ministério Público Federal (MPF) que estava em curso com as famílias, já há alguns anos.
Caiçaras conseguiram vitórias na Justiça de São Paulo
Os eventos que se desenrolam no Rio Verde desde 2019 são o mais recente capítulo de uma longa luta de famílias caiçaras da Jureia para permanecer em seu território.
“A minha família vive aqui há pelo menos oito gerações, trabalhando com agricultura, pesca artesanal e extrativismo”, conta Dauro Prado, ressaltando que essa antiguidade foi comprovada por documentos em laudo antropológico. Depois de enfrentarem investidas da grilagem, o avanço da especulação imobiliária e o lobby para criação de uma usina nuclear na área, na década de 1970, os caiçaras viram suas áreas de ocupação tradicional serem sobrepostas pela Estação Ecológica Jureia-Itatins, em 1986.
Além do cerceamento às atividades básicas, a atuação do Estado passou também pelo fechamento de serviços públicos, como escolas e postos de saúde, além do abandono da manutenção de vias de acesso.
“O santuário ecológico que viria para manter essas comunidades com seu modo de vida, sua cultura, e a conservação da natureza, trouxe totalmente o inverso, a expulsão dessas pessoas”, conta Dauro Prado, relatando como esse cenário empurrou parte significativa das famílias para as sedes municipais próximas, em busca de acesso a direitos e meios de vida.
Parte do grupo conseguiu permanecer na Jureia, porém, tornando possível a manutenção de vínculos. Foi o caso dos jovens em questão.
“Sempre acompanhei meus avós, meus pais e meus tios nessa produção das roças. E foi assim que eu resolvi voltar pra cá”, conta Marcos. “O que a gente sentia era que o lugar da gente sempre foi aqui.” Daiane, sua esposa, partilha do sentimento: “Parece que aquilo não fazia parte de mim. Quando precisei estar na cidade, uns oito a dez anos, foram difíceis, ficar longe dos meus pais, eu era muito ligada a eles. Mas a ligação com meu território nunca deixou de existir, eu nunca deixei de vir”, conta.
A luta caiçara obteve vitórias importantes, inclusive no plano legislativo. Em 2013, com a criação da lei que instituiu o mosaico da Jureia-Itatins, algumas porções da estação ecológica tradicionalmente ocupadas tornaram-se reservas de desenvolvimento sustentável.
As RDS não contemplaram todo o território caiçara, porém, de modo que a própria lei do mosaico registrou o reconhecimento dos direitos das famílias que permaneceram na estação ecológica. Isso foi também reconhecido em duas instâncias já, na Justiça de São Paulo, em decisão que afirmou os direitos de moradia de Edmilson, Karina e do pequeno Martim. É com base nisso que os primos Marcos e Heber pleiteiam seus direitos.
Povos tradicionais são importantes para conservação do meio ambiente
Além da antiguidade da ocupação e dos efeitos da criação da estação ecológica, pesquisas nas últimas décadas têm colocado em relevo a própria relação desse modo de vida a conservação ambiental. “Povos tradicionais são importantíssimos para a conservação de territórios, mas não é uma relação automática. Eles têm condições para isso desde que tenham um histórico de conservação, que o Estado forneça os serviços que lhe competem e que os próprios povos façam um novo pacto com regras condizentes com a conservação”, afirma a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha.
A pesquisadora foi uma das coordenadoras de um amplo relatório a respeito da contribuição de povos e comunidades tradicionais para a biodiversidade no Brasil, que acaba de ser publicado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e conta com uma pesquisa intercultural envolvendo os caiçaras da Jureia.
“O caso caiçara é muito paradigmático porque eles não só conservaram um pedaço de Mata Atlântica tão ameaçada, como construíram um acordo interno de governança para que isso possa seguir”, argumenta.
O acordo à que a antropóloga se refere é o Plano de Uso Tradicional Caiçara (PUT). Trata-se de um documento com colaboração técnica e científica de biólogos, antropólogos, especialistas em geoprocessamento, além de orientação jurídica da Defensoria Pública, que foi apresentado ao Estado em 2018.
“O objetivo do plano é estabelecer acordos de gestão do território a partir de princípios e regras comunitárias”, explica Adriana Souza Lima, presidente da União dos Moradores da Jureia. “É um pacto construído a várias mãos para dialogar e reivindicar os direitos das comunidades caiçaras ao território tradicionalmente ocupado, que assumem publicamente esse compromisso, e sem isentar o Estado de suas obrigações”.
Insegurança sobre o futuro ronda as famílias caiçaras na Jureia
Após sucessivas solicitações de resposta por parte do MPF, no fim do ano de 2019, o acordo proposto no plano foi negado, argumentando incompatibilidade técnica e jurídica.
Enquanto isso, os jovens amargam a indefinição. “Desde a hora que eu acordo até a hora que eu vou dormir, esse peso da briga na Justiça está presente em tudo”, relata Daiane.
“A gente passa o dia pensando no que pode acontecer, se daqui uns anos eu vou poder passar a mesma experiência que eu tive pra meu filho, esse contato com a terra, essa sabedoria que a gente tem”, concorda Heber, que acrescenta: “e outra, se a gente vai poder ter uma vida digna, se a gente não vai ser tratado como criminoso por tentar garantir o direito da gente”.
A vontade não falta para o jovem, que recentemente se tornou pai do pequeno Joaquim. A oitava geração vem embalada pela cultura caiçara, como o fandango, considerado patrimônio imaterial da humanidade.
“O Joaquim e o Martim já dançaram fandango na barriga das mães, bastante, escutaram o som da viola. Em breve eles vão estar dançando já por aí, arrastando o pé.”