“Consórcios do engano” viabilizam destruição em unidade de conservação campeã em desmatamento

Cerca de 40% da Área de Proteção Ambiental (APA) Triunfo do Xingu, território-chave no Corredor Xingu de Diversidade Socioambiental situado entre São Félix do Xingu e Altamira, já foram convertidos para outros usos, principalmente para a pecuária. Fazendeiros ludibriam governança e fazem girar a roda da devastação
Por Maurício Hashizume
 10/05/2021

Que a Área de Proteção Ambiental (APA) Triunfo do Xingu, no Sul do Pará, apareça no topo de vários rankings de unidades de conservação (UCs) com maiores índices de desmatamento e queimada não apenas da Amazônia, mas de todo país, não é nenhuma novidade. Ao longo de mais de uma década, essa região tem sido cobiçada, invadida e saqueada por uma quantidade imensa de “rentáveis e lucrativos” empreendimentos pelo domínio do território, geradores de variados conflitos e seguidas denúncias, raras vezes desbaratadas por operações de fiscalização, seja no campo mais ambiental, como também na área de combate a outros crimes como a grilagem de terras ou a exploração do trabalho em condições análogas à escravidão.

Esse vasto território com 1,68 milhão de hectares, em posição estratégica no chamado Corredor Xingu de Diversidade Socioambiental deveria ser, como diz o seu próprio nome, uma área de proteção ambiental. Essa última categoria foi criada pela Lei 6902/1981 e faz parte do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) (Lei 9.985/2000) justamente para, em áreas já com relativo grau de intervenções e presenças vindas de fora, proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso de recursos naturais. Deveria.

Em vez disso, a APA Triunfo do Xingu tem sido invadida, dilacerada e carcomida por atividades de alargados impactos como o garimpo, a extração de madeira e a pecuária. Com cerca de 1,68 milhão de hectares, foi instituída por decreto estadual em 2006, se estende entre os imensos municípios de São Félix do Xingu (onde estão 66% do total da área) e Altamira (34%) e faz parte do Programa de Áreas Protegidas da Amazônia (Arpa), juntamente com áreas vizinhas como a Estação Ecológica da Terra do Meio e o Parque Nacional da Serra do Pardo. A criação de UCs e a demarcação de Terras Indígenas (TIs), entre 2004 e 2008, constou também do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAm) e, segundo estudo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), chegaram a influenciar uma queda de 37% da taxa observada naquele período.

Os dados mais recentes, contudo, são avassaladores. Entre 2018 e 2020, mais de duas mil árvores foram derrubadas por hora apenas dentro dessa UC, conforme levantamento dos três anos de monitoramento do Sirad X , sistema de detecção de desmatamento da Rede Xingu +, articulação da sociedade civil que reúne organizações, associações e instituições atuantes na bacia do Rio Xingu. Aproximadamente 93,3 mil hectares de florestas tombaram nesse mesmo período na APA Triunfo do Xingu, que concentrou praticamente um quinto (18%) da somatória de desflorestamento verificado na bacia, como um todo. 

Desmatamento na APA Triunfo do Xingu entre 2018 e 2020 consumiu 93,3 mil hectares (Fonte: Sirad X)

Dois quintos (40%) do território antes coberto por florestas nativas já foram convertidos para outros usos, em especial pela criação bovina, segundo o mesmo levantamento. Em 2015, esse índice era de 27%; houve, portanto, um incremento de 13% em apenas 5 anos. O município de São Félix do Xingu é conhecido por abrigar o maior número de cabeças de gado – estimativa de 2,3 milhões, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – do país; em Altamira, são mais 700 mil. Passados 15 anos desde a sua criação, a APA Triunfo do Xingu ainda não viu a consolidação nem de um plano de gestão nem de um zoneamento. As reuniões do Conselho Gestor se tornaram praticamente anuais (a última, com ata registrada, foi em maio de 2019, e a penúltima se deu um ano antes, em maio de 2018), segundo página do Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Estado do Pará (Ideflor-Bio).

Em setembro de 2020, o site do governo do Pará divulgou notícia sobre desdobramentos do Programa “Territórios Sustentáveis”, com base em edital para cadastramento de produtores que contarão com assistência governamental especial, apresentado como pilar da estratégia Amazônia Agora, com participação do Ideflor-Bio e da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas), entre outros órgãos, no interior da APA. Também a Prefeitura de São Félix do Xingu divulgou com destaque o lançamento da iniciativa, voltada para cadastramento e apoio de “boas práticas”. As assessorias de imprensa do Ideflor-Bio e da Semas foram contatadas pela reportagem para que pudessem se posicionar tanto sobre o avanço e intensidade da destruição dentro da UC, em seus diversos aspectos, como das ações governamentais em curso, mas não deram retorno.

“A APA Triunfo do Xingu tem uma questão que envolve grilagem muito forte em seu território. Grandes empresas e grandes pecuaristas pressionam por mais terras. Temos conflitos ali por recursos, inclusive por acesso à água, aos rios. E é uma área que nunca teve plano de manejo. Os conflitos nunca foram solucionados”, comenta a advogada Elis Araújo, do Instituto Socioambiental (ISA). Em junho de 2020, por conta da alarmante aceleração nos registros de desmatamento nos diversos sistemas de monitoramento, organizações sociais que atuam na área – ISA, Rede Xingu+, Greenpeace Brasil, Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) e Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) – encaminharam representação ao Ministério Público Federal (MPF), ao Ministério Público do Pará (MP/PA), ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e ao governo estadual pedindo providências urgentes para contar a escalada da destruição. Recomendaram, nesse sentido, que ações fossem tomadas “com presteza” para “combater as organizações criminosas que financiam e que estimulam pessoas a invadir Áreas Protegidas, explorar madeira e abrir garimpos”, mencionando a atuação de “alguns políticos locais que exigem a transferência de títulos eleitorais para as próximas eleições municipais”, expediente retratado pela imprensa, e pedindo o “aperfeiçoamento do trabalho das instituições diretamente envolvidas no combate aos crimes ambientais associados ao desmatamento”.

Mapa mais amplo da APA Triunfo do Xingu com mesmo destaque circular (azul claro) para região de vastos desmatamentos com dados anuais do PRODES/Inpe até 2020 (Fonte: ISA)

“Consórcios do engano”


A partir de apurações próprias e de um amplo cruzamento de dados – considerando diversos mapeamentos por imagens de satélite e por sistemas de monitoramento, seja pela documentação disponível de Cadastro Ambiental Rural (CAR), de registros de ordem fundiária, assim como de ações civis públicas e processos judiciais, seja por informações sobre cadeias produtivas (conexões comerciais) -, destrincha-se aqui o funcionamento de “consórcios do engano”, um conglomerado de agentes por trás desse “rolo compressor” da aniquilação socioambiental que continua a todo vapor. Tomando como base uma degradada área repleta de infrações e embargos ambientais ao norte da APA Triunfo do Xingu (ver mapa acima, com destaque circulado em azul), com especial influência no avanço das frentes de desmatamento e fogo pela área de proteção integral do Parque Nacional da Serra do Pardo, foi possível construir um panorama para a segunda parte da série dos “dribles” que sustentam esquemas de devastação socioambiental na Amazônia (veja a primeira parte da série aqui.)

Nos três primeiros meses de 2021, monitoramentos do Imazon (SAD) e dos Alertas do MapBiomas confirmaram a ocorrência de múltiplos polígonos de desmatamento de corte raso na UC, inclusive na própria área acima destacada, composta por um conjunto de supostas propriedades de grande extensão com limites contíguos e alta concentração de embargos por infrações ambientais determinados pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Também repleta de registros (constantemente retalhados, ou “vazados”) de Cadastro Ambiental Rural (CAR) e também com algumas titulações de terra do Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), desenvolvido e mantido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), esta porção da APA Triunfo do Xingu se situa num vértice estratégico para a consolidação de eixos dentro da área e também para a intensificação de frentes para a invasão de outras áreas de conservação mais preservadas e com maiores restrições, como as já mencionadas ESEC da Terra do Meio e o Parque Nacional da Serra do Pardo.

Reprodução, com destaque, de mapa da parte Norte da APA Triunfo do Xingu pelo PRODES (Fonte: Inpe)

A partir de um histórico de ocorrências e de várias pesquisas cruzadas, foi possível aferir, pela concentração da análise da dinâmica de desmatamentos nesta porção específica da APA, o funcionamento de dinâmicas e processos que se dão na base da destruição de florestas que põe em risco o Corredor Xingu, formado por 9 UCs e 21 Terras Indígenas (TIs) que se estendem por 26 milhões de hectares.

A área de difícil acesso (cerca de 240 km do centro de São Félix do Xingu) fica entre duas vicinais – a da Toca do Sapo e a do Jabá, dentro da APA, ambas com direção ao Rio Pardo e aos limites da Terra do Meio e da Serra do Pardo – e é formada por um conjunto de extensas propriedades, com muitas subdivisões e sobreposições de registros de CAR. Há registros de titulação fundiária no Incra de quatro propriedades (Fazendas Brumado, Brumado I, Colorado do Rio Pardo e Limoeiro) nesse perímetro de alargada devastação em nome de Caio Jerônimo da Silva. Caio é filho de Coriolano Rodrigues da Silva e ambos constam da lista de embargos do Ibama. Coriolano, por sua vez, aparece como proprietário de outras duas áreas na região também conhecida como “Gleba Rio Pardo” pelo CAR: a Fazenda 2 Irmãos e a Fazenda Esplanada, em nome da Agropastoril Três Lagoas, empresa pertencente ao patriarca, registrada como ótica (porém inapta) na cidade de São Miguel do Araguaia, Goiás.

Contraste de imagens entre 2008, marco de anistia do Código Florestal, e 2020; manchas indicam perda de cobertura florestal na região destacada da APA Triunfo do Xingu (Fonte: GlobalForestWatch)

Apenas por uma das autuações, de novembro de 2018, pela destruição de 4,8 mil hectares, na referida região (parte da área quadriculada em lilás no mapa acima, com o CAR em forma mais quadrangular, à direita, justamente na Fazenda Brumado), Caio foi multado em R$ 48,1 milhões. Numa das ações civis públicas (ACPs) – como parte do programa Amazônia Protege, do Ministério Público Federal (MPF) – que tramitam na Justiça Federal contra Coriolano por conta da constatação de um desmatamento em área próxima, o proprietário alegou que já tinha recebido autos de fiscalização anterior da Sema, que não havia sido devidamente citado e, por fim, que as infrações não tinham sido confirmadas e a área em questão não pertencia a ele. Para que houvesse prova da última afirmação, a juíza Maria Carolina Valente do Carmo havia requerido perícia, mas o próprio réu preferiu não depositar os honorários para que o trabalho fosse feito. A sentença, proferida em abril, julgou parcialmente procedente a ACP do MPF, reconhecendo a responsabilidade do réu. Embora não tenha acolhido a proposta de indenização de R$ 19,1 milhões pedida inicialmente, a magistrada acabou condenando Coriolano a reflorestar a área desflorestada com projeto profissional e detalhado, assim como a pagar a quantia R$ 598 mil a título de danos morais coletivos, a ser revertida para o Fundo de Direitos Difusos.

“Furos”, desvios e conexões


Para evitar as restrições e os constrangimentos impostos pelos embargos, infrações e multas ambientais, famílias se valem não só de trocas e revezamentos entre parentes e amigos, mas de uma série de outros colaboradores, que emprestam seus nomes para que os mesmos não apareçam à frente de todo o conjunto de empreendimentos.

Tal procedimento vem sendo denunciado há anos por organizações como o Greenpeace, que deu destaque recente a  outro caso semelhante, com cerca de 5,3 mil hectares de área desmatada no período entre agosto de 2019 e junho de 2020, numa fazenda mais ao Sul na mesma APA Triunfo do Xingu. O “desmembramento” da área total da Fazenda Tiborna em registros fragmentados de CAR, sob o nome de “terceiro”. Pelo intermédio de outra fazenda “limpa”, a propriedade garantia a “regularidade” de sua produção pecuária bovina; o mesmo já havia sido mencionado em relatório sobre grileiros, madeireiros e episódios de violência na Terra do Meio que completou 18 anos (Pará: Estado de Conflito).

No caso da família Rodrigues da Silva, entram nesse bojo pelo menos outras quatro pessoas listadas em documentos de CAR (a maioria deles pendentes, mas com alguns até em condição de “ativos”, isto é, já validados oficialmente pelo órgão estadual). Kaio Fontes Moura aparece como proprietário de uma área mais próxima (Bela Vista Confinamentos) da cidade de São Félix do Xingu utilizada pela família como ponto de apoio no negócio do gado. Na realidade, análises da cadeia mostram que o ponto de referência de onde partem as cabeças de gado é a já mencionada Fazenda Colorado do Rio Pardo, que se situa mesmo no caminho entre a região mais afastada ao norte da área de proteção e o núcleo urbano, onde se encontram abatedouros e a estrada para escoamento.

Também uma outra propriedade (Fazenda São Matheus III) está no nome de Kaio, numa região mais ao Sul do município que concentra outro conglomerado de fazendas próximas pertencentes ao grupo (às bordas da Terra Indígena Menkragnoti), que vêm a se juntar a outras duas principais em termos de comercialização. Por meio das Fazendas São Matheus e São Matheus II, atribuídas pela documentação de CAR a Caio Jerônimo, toda a produção de gado bovino é comercializada. Animais provenientes das áreas distantes da APA Triunfo do Xingu são transferidos (por vezes também há trânsito no sentido inverso para finalidade de engorda) até o “entreposto” das Fazendas São Matheus (I e II) e vendidos para frigoríficos como a unidade da JBS em Tucumã, de acordo com análise de fluxo de cadeia de 2018 feita pela reportagem. Em nota, a JBS informa que a Fazenda São Matheus II possui registro de compras da companhia, mas se encontra bloqueada para vendas ao frigorífico desde 2019; e que a São Matheus I não é fornecedora.

As histórias de Coriolano e Caio contam ainda com a parceria de outro fazendeiro, Manoel Carmo da Silva. Este último aparece como parceiro da família em ações civis públicas protocoladas pelo MPF e mantém laços com empresas dotadas de Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ): uma no próprio nome de Coriolano e outra em nome da Agropastoril, que por vezes aparece também como Agropecuária Três Lagoas.

Conforme apuração da Repórter Brasil, Caio Jerônimo, produtor conhecido em São Félix do Xingu, foi assassinado há poucos meses na própria região. A reportagem tentou contatos com todos os outros proprietários rurais mencionados anteriormente, tanto diretamente com eles quanto com os respectivos advogados, ao longo dos dez primeiros dias de maio, mas não conseguiu. Em caso de se manifestarem, as informação serão publicadas.

Reprodução do mapa (região Norte da APA Triunfo do Xingu em destaque) com intersecções de alertas de desmatamento com registros de CAR e áreas embargadas pelo Ibama (Fonte: MapBiomas)

Pela análise da cadeia produtiva, é possível ainda notar um fluxo entre as fazendas de Coriolano e Caio com outros produtores com presença na região, como Valdiron Aparecido Bueno, que se apresenta como proprietário da Fazenda Três Poderes, na mesma região da Toca do Sapo. Pela Fazenda Sossego, outra das quatro fazendas de Valdiron (nenhuma delas com titulação fundiária, apenas com registros de CAR), há registros tanto de “chegada” como de “saída” de gado em fluxos com a São Mateus II, em 2019. Por telefone, ele alega estar até alugando áreas de pasto na Três Poderes (“porque é mais barato”) para terceiros “vizinhos” e nega que tenha feito essas “circulações” de animais com os fazendeiros acima descrito. Confirma apenas que tinha Caio Jerônimo como seu cliente na loja agropecuária que mantém no centro de São Félix do Xingu. “Você vê o povo falando em desmatamento, mas quando a gente anda na beira das estradas – e eu estive lá há uns quatro meses porque o meu serviço tem sido mais na cidade –não vê nada. Faço divisa com a propriedade da família de Caio Jerônimo, mas nunca fui lá para ver como é. Sei que a minha parte é de mata”.

Valdiron, que além de produtor também é comerciante e organizador de eventos do ramo pecuário em São Félix do Xingu, foi um dos entrevistados acerca do contexto social de reinado da pecuária na cidade no panorama investigativo publicado em julho de 2019 pela Repórter Brasil, em parceria com o jornal inglês “The Guardian” e o “Bureau of Investigative Journalism”, sobre compra reiterada de gado de área desmatada ilegalmente e embargada.

Zona de amortecimento


Um outro fazendeiro associado à mesma região destacada na parte Norte dentro da APA é Wilson José Mendanha, apontado em ação judicial do Ministério Público do Estado do Pará (MP/PA) como responsável pela Fazenda Chopp Dance, que compõe o conglomerado de propriedades destacadas aqui (em círculos em destaque na sequência de mapas acima). Em recurso contra sentença inicial do 1º grau que havia determinado a indisponibilidade de bens do envolvido no montante de R$ 22,7 milhões e a interrupção imediata de qualquer atividade degradadora no local (sob pena de multa diária de R$ 2 mil) pelo desmatamento ilegal de 2 mil hectares aferido por operação do Ibama em junho de 2019, Wilson tentou se justificar dizendo que tinha vendido a propriedade para outra pessoa em 2016 e que os registros de CAR estavam em nome de uma terceira, também desde 2016. Por insuficiência de comprovação documental, nenhuma das justificativas foi aceita pela desembargadora Diracy Nunes Alves, do Tribunal de Justiça (TJ) do Pará em decisão publicada em 13 de abril de 2021.

A sentença diz respeito a uma única propriedade de 4,1 mil hectares que, no Sistema de Cadastro Ambiental Rural (Sicar) do Pará aparece dividida em três (Chopp Dance I, II e III). O que a desembargadora viu, no caso do imenso desmatamento de mais de 2 mil hectares atribuído a Mendanha, foi “o chamado periculum in mora inverso, isto é, o perigo da demora encontra-se no outro polo da relação jurídica/processual”, visto que “a coletividade corre risco de lesão, caso não seja restabelecido o meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da CF)”. “Em relação à multa aplicada, ela tem natureza pessoal, devendo ser imposta ao infrator. Desse modo, diante da ausência de demonstração da ocorrência do fumus boni juris [fumaça do ‘bom direito’]e do periculum in mora em favor do agravante, não há como suspendê-la, dado o fato de inexistirem indícios de que a titularidade do imóvel pertence a um terceiro, assim como não houve a desconstituição do nexo de causalidade”, completa.

O filho de Wilson José, Emerson José, é um dos implicados em outra ação civil pública do MPF, relativa a desmatamento ilegal na mesma área em destaque do Norte da Triunfo do Xingu, confirmado pelos dados do sistema PRODES, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), como parte do Amazônia Protege. Nessa mesma ACP, estão implicados não apenas Caio Jerônimo e Kaio Fontes, mas também outro produtor responsabilizado por mais de 3,2 mil hectares (detectado em 2017) na Fazenda Santa Rosa (com superfície total de 6,8 mil hectares), implicado simultaneamente numa série de outras infrações ambientais pela Sema.

A Repórter Brasil conversou com Wilson e Emerson Mendanha, por telefone. Emerson disse que desconhece a ação do MPF. Já Wilson reforçou o que já havia alegado à Justiça. Explicou que vendeu a terra há anos e que, quando tinha a posse da área, “não retirou uma árvore sequer do local”. A responsabilidade, assim, seria do comprador, chamado Leonardo, e de quem ele não se lembra do sobrenome. Wilson ainda alega que segue tentando, via judicial, transferir a responsabilidade para aquele que seria o atual dono da terra.

O enfrentamento da continuidade e do acúmulo de irregularidades está no centro dos alertas e das recomendações direcionadas pelo grupo de ONGs às autoridades quanto à APA. Além de cobrar ações contínuas de fiscalização e a instalação de duas bases dentro da unidade de conservação pelo governo estadual do Pará, foi dada a sugestão para que se pudesse estabelecer uma “zona de amortecimento” numa faixa de 10 km no entorno dos limites com as áreas protegidas federais. “Os próprios planos de manejo de unidades de conservação federais, como o Parque Nacional da Serra do Pardo e a ESEC da Terra do Meio fazem menção expressa à existência da APA Triunfo do Xingu e que, por isso, não haveria necessidade de se ter uma zona de amortecimento entre aquelas áreas mais restritivas federais e essa área estadual”, relembra Elis Araújo, do ISA. “Mas o que a gente percebe, é que há, sim, necessidade de se restringir atividades que possam ser desenvolvidas nessa faixa mais próxima [entre a UC estadual e as UCs federais]. A APA não é levada a sério, não tem uma gestão efetiva e, então ela acaba não sendo uma unidade de conservação de fato”.

APA Triunfo do Xingu foi a UC com maior incremento de desmatamento na Amazônia; a área devastada em 2020 (436,2 km²) igualou a de 2019 (436,1 km²), bem acima dos anos anteriores (Fonte: Inpe)

Ao menos segundo manifestações de alguns representantes do Ideflor-Bio na interlocução com essas organizações, essa sugestão de iniciativas mais incisivas como o estabelecimento de “zona de amortecimento” parece não encontrar respaldo no governo estadual, que aposta muito mais em iniciativas focalizadas como a dos “Territórios Sustentáveis”. Enquanto isso, reportagens e pesquisas acadêmicas na área da pecuária agregam cada vez mais informações sobre os meios utilizados pelos produtores para continuar fazendo a roda da devastação girar. Em artigo publicado em 2020, pesquisadoras do Imazon, da Universidade da Flórida e de Wisconsin-Madison (ambas nos EUA) destacaram cinco meios pelos quais produtores com fazendas marcadas por problemas socioambientais escoam suas cabeças: a) vendem como “gado em pé”, direcionando animais para áreas específicas em que permanecem em quarentena; b) repassam para estados vizinhos com monitoramento mais frágil ou para frigoríficos sem exigências; c) fazem o transporte para propriedades “limpas” de outros para usá-las como referências de origem; d) arrendam terra “regularizada” para promover eles mesmos a “lavagem” ou e) comercializam com intermediários com fazendas que assumem rebanhos para depois também vendê-los.

A necessidade de se estender os sistemas de monitoramento – como o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) da Carne, puxado pelo MPF – ao menos para um primeiro grau de “fornecedores indiretos” é um dos pontos destacados pela pesquisa, que contou com ampla pesquisa documental e junto a pecuaristas. Mas um aspecto ainda pouco trabalhado nesses levantamentos – e que emergiu do cruzamento de dados e de apurações a partir dessa região devastada no Norte da APA Triunfo do Xingu – é a participação não apenas de alguns técnicos e redes específicas como eixos para o funcionamento desses “consórcio de enganos”, como até a participação de agentes que atuam na estrutura pública estatal.

Esses pontos de contato de ajuntamentos de grandes fazendeiros privados com servidores “infiltrados” nas instituições públicas em seus diversos níveis (que inclusive estarão presentes também na terceira e próxima parte da série dos “dribles”) remetem a processos históricos, de acordo com especialistas entrevistados pela Repórter Brasil, que vem de décadas nessa região que ficou conhecida como Terra do Meio. Ativista ambiental com larga atuação na região do Xingu, Tarcísio Feitosa ressalta que essa lógica dos “consórcios” em torno de vários tipos combinados de irregularidades vem sendo verificada há muito tempo, com fortes conexões políticas e econômicas. As inúmeras denúncias e investigações envolvendo, por exemplo, servidores do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), até com condenações recentes, são demonstrações que vão na mesma linha.

Quando o mosaico de UCs e TIs do Corredor Xingu se forma em meados de 2000, pela pressão social também decorrente do assassinato da freira ambientalista Dorothy Stang em 2005, a APA Triunfo do Xingu passa a concentrar a ação de muitos desses “consórcios” que estavam dispersos em distintas frentes de expansão das fronteiras de extrativismo vegetal e mineral e da agropecuária pela Amazônia. “A APA Triunfo do Xingu foi resultado de uma forte negociação com o governo estadual, naquela linha de pensamento de que ‘a galera está investindo muito dinheiro e não dá pra parar o desmatamento’”, completa Tarcísio, que participou ativamente desses processos na articulação com comunidades locais e foi laureado em 2006 com o Prêmio Goldman de Meio Ambiente para a América do Sul e Central.

“Eles sabiam dessa dinâmica que estava se dando na região, inclusive a intenção de se continuar o avanço do gado. Se você pegar o gráfico do deslocamento do gado e de crescimento de rebanho, isso é muito visível”, adiciona. Para ele, até por força desses “consórcios”, a fiscalização é mínima: da área do combate ao trabalho escravo até a questão ambiental. Crítico de como vem se dando a relação entre os registros de CAR e a legalização da grilagem, Tarcísio, com base em muitos anos e vários projetos pela região, faz uma previsão dura e sombria. “Essa região da APA Triunfo do Xingu vai se consumir no fogo. Talvez o que vai sobrar lá serão as florestas dentro das reservas legais, que são extremamente empobrecidas porque já floram exploradas em anos de extração de madeira, e aquilo que seria a APP [Área de Proteção Ambiental], se tiver e for respeitada a APP. Mas este ano [de 2021] vai queimar muito ainda ali. Pode ficar de olho que vai queimar bastante”.

Nota da redação: A reportagem foi atualizada em 11/05 para inclusão de posicionamento da JBS e de produtores rurais.

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