Cobertura do 29M: ao omitir, imprensa brasileira se revela

Exceto no caso da Folha, cobertura dos impressos ‘foi tragédia’, segundo especialista. Repórter Brasil analisou trabalho de 3 emissoras de TV e de 3 jornais sobre os atos contrários ao governo; Record sequer mencionou o nome do presidente em reportagem
Por Pablo Pires Fernandes
 04/06/2021

Pouco destaque, falta de contextualização, omissões e distorções. A cobertura jornalística dos protestos de 29 de maio contra o governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) foi alvo de críticas ao longo da semana. Nos telejornais, ausência de cobertura ao vivo nas principais emissoras. Nos impressos, chamadas de capa sem foto.

Os protestos do 29M tomaram as ruas das principais cidades brasileiras, reunindo, ao todo, cerca de 400 mil pessoas no país. A dimensão das manifestações, no entanto, não apareceu nos principais veículos brasileiros, com exceção da Folha, que manchetou, no domingo, os atos, com foto grande na avenida Paulista que, segundo organizadores, reuniu 80 mil pessoas.

Contudo, quem viu o jornal noturno da Record no dia do protesto pode não ter entendido que eram atos contrários ao governo de Jair Bolsonaro. O nome do presidente sequer foi mencionado na reportagem de 57 segundos veiculada pela emissora.

O trabalho da imprensa chama ainda mais a atenção porque o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, um negro morto por um policial, recebeu cobertura ao vivo e maior destaque na grande imprensa brasileira do que os atos do 29M. O assassinato de João Alberto no Carrefour de Porto Alegre também teve grande cobertura, a despeito da dimensão política – e histórica – dos atos contra o governo Bolsonaro da última semana.

A pedido da Repórter Brasil, a jornalista e pesquisadora do grupo Multilinguismo e Interculturalidade no Mundo Digital CLE/Unicamp, Eliara Santana, fez uma análise da cobertura das manifestações do 29M por três telejornais da noite de sábado – Jornal da Record, Jornal Nacional e SBT Brasil  – e em três jornais impressos na edição de domingo – Folha de S. Paulo, O Globo e O Estado de S. Paulo.

“Há regras básicas do jornalismo que deixaram de ser cumpridas, apontando para uma deliberada estratégia de silenciamento”, afirma a pesquisadora. A estratégia, segundo Santana, é “bastante utilizada pela mídia, funcionando quase como uma política editorial”, e se mostra presente não apenas quando há omissão sobre um fato, mas quando ele é mostrado sem a relevância que merece. 

Como exemplo, ela cita a ausência da menção no nome de Bolsonaro na Record e a falta de fotos na capa de O Globo e Estadão. “O que justifica essas decisões editoriais, sendo que os protestos foram o acontecimento de destaque do sábado?”, questiona a analista. Além disso, ela afirma que muitos dos veículos se referiram aos atos usando apenas o termo “milhares de pessoas”, sem quantificar o número de manifestantes.  

“O Estadão e O Globo, por exemplo, ignoraram solenemente o fato de que houve uma onda de manifestações que tomaram conta do dia 29 de maio, pedindo vacina, comida no prato e defendendo o impeachment do presidente Jair Bolsonaro, ou seja, optaram por não fazer jornalismo. É estranho, né? Não é uma manifestaçãozinha que acontece todo final de semana, é um fato social importante”, afirma Samuel Lima, jornalista, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pesquisador do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS). No que se refere aos jornais impressos, ele classifica a cobertura como “uma tragédia”, mencionando a exceção da Folha, que deu o devido destaque aos atos.

Os dois impressos não omitiram totalmente o fato na edição de domingo. Sem foto na capa, Estadão colocou uma chamada pequena na parte inferior (e menos lida) do jornal e O Globo fez algo parecido. O problema é que, pelo critério de notícia, os protestos deveriam ter tido maior destaque na página mais nobre do jornal.

Um dos mais renomados cientistas políticos do país, Leonardo Avritzer, escritor, pesquisador e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) vê a cobertura dos protestos feita pela mídia como “muito fraca”, ressalvando a publicação da Folha. 

O professor da Universidade de São Paulo (USP), ex-correspondente e ex-ombudsman da Folha, o experiente jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva avalia que, com a exceção da Folha, “os demais veículos de repercussão nacional deram destaque aos atos menor do que eles mereciam receber”.

Telejornais

Na análise de três telejornais na noite dos protestos de 29M, a pesquisadora Eliara Santana aponta para diversas lacunas. O caso mais evidente de omissões e distorções é o Jornal da Record. Com apenas 57 segundos em uma hora de noticiário, a reportagem sobre as manifestações não menciona o nome de Bolsonaro – apenas cita governo federal na chamada – e dá a entender que as pessoas saíram às ruas para pedir vacina para todos. Outro aspecto é que “as imagens eram mais de perto, com câmera parada, sem dimensionar o tamanho das manifestações”, completa Santana.

No SBT Brasil, foram dados 2m21 na matéria sobre os atos. De acordo com o levantamento, a reportagem mostrou imagens diversificadas, com cenas de cruzes e caixões simbólicos, movimento nas ruas, áudios com gritos de ordem, mas nada que dimensionasse a extensão dos protestos. “A apresentação da manifestação elenca os temas prioritários dos protestos: vacina, auxílio emergencial e emprego. Mas não se refere, em nenhum momento, aos pedidos de impeachment, além de manter um distanciamento em relação ao presidente – os protestos são contra o governo, não contra a figura de Jair Bolsonaro”, analisa a pesquisadora.

Entre os três telejornais, a cobertura feita pelo Jornal Nacional foi a mais longa (3m47) e distinta dos demais, sobretudo por destacar que os protestos eram contra o presidente Jair Bolsonaro. Eliara aponta que, na cobertura do JN, “ocorre um dimensionamento que é positivo – protestos em todas as capitais –, mas que circunscreve os atos a esses locais, o que não basta, pois os protestos ocorreram em muitas cidades do país”. Houve protestos em cerca de 200 cidades brasileiras e em algumas do exterior. A pesquisadora explica ainda que o tom da notícia importa e tem impacto na percepção do espectador, sobretudo em relação à TV. 

O que dizem os veículos

Procurada pela Repórter Brasil, a direção do Jornal da Record não se manifestou, bem como os diretores do Estadão e de O Globo. 

O diretor nacional de jornalismo do SBT, José Occhiuso, disse que “o tempo dedicado ao assunto pelo SBT Brasil, de 2m19, foi adequado à importância do evento”. “Os atos não foram dimensionados em números porque não havia fontes confiáveis disponíveis para isso. As imagens exibidas na matéria, no entanto, davam a dimensão da adesão”, completou.

Atos na avenida Paulista, em São Paulo, reunião 80 mil pessoas, segundo organizadores (Foto: Mídia Ninja)

Sobre a cobertura ao vivo (ou em campo, com repórteres dentro dos atos, entrevistando manifestantes), Occhiuso ponderou que “nenhuma emissora da televisão aberta fez cobertura ao vivo do evento, e não apenas o SBT”. Apontou ainda que o jornalismo do SBT adota “a prática de não entrevistar participantes de manifestações. Os cartazes e as palavras de ordem falam por si”. Quando questionado sobre o tratamento dado a protestos a favor do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e de Bolsonaro, afirmou que “sendo jornalisticamente relevantes, as manifestações a favor e contra o governo têm o mesmo tratamento; inclusive, quanto às observações sobre aglomeração e uso de máscara”.

A comunicação da Rede Globo respondeu à Repórter Brasil que “nunca entrevistamos manifestantes, inclusive nos impeachments”. A nota destacou que, no sábado, “o JN fez a cobertura das manifestações no Brasil, numa reportagem extensa, de 4 minutos, destacada na escalada de notícias [os destaques que aparecem antes do jornal ir ao ar]”, retratando os protestos nas capitais, “inclusive sublinhando a truculência policial contra os manifestantes no Recife”. 

A emissora destaca ainda que, no dia seguinte, o Fantástico “aprofundou a cobertura da truculência policial no Recife e novamente abordou as manifestações do dia anterior, em reportagem de cinco minutos”. Na segunda-feira, “a edição do JN repercutiu o deboche do presidente Bolsonaro diante das manifestações, ouvindo os políticos da CPI e, como era obrigatório, mais uma vez relembrou as manifestações. A cada dia, os fatos (e o tempo dedicado a eles) se avolumaram. Como se vê, as manifestações foram mostradas por três dias consecutivos”. E conclui: “O JN, durante a pandemia, vem informando os brasileiros sem meias palavras. E continuará a fazê-lo.”

Como a própria Rede Globo menciona em sua resposta, a cobertura foi ganhando maior dimensão nos dias seguintes  – após repercussão negativa do trabalho da imprensa brasileira, com milhares de críticas bombando nas redes sociais. 

Sobre a reportagem, de cerca de 5 minutos no Jornal Nacional de segunda (31/05), o professor Samuel Lima destaca que não havia “nenhuma justificativa, em termos de critério de notícia, para voltar a falar no assunto, a não ser a repercussão negativa dessa cobertura pífia”. Ele ressalta ainda que “a rigor, era um assunto que já não era mais assunto, já não era mais notícia, não tinha novidade”. 

Para Santana, o fato novo seria a menção do presidente Bolsonaro aos protestos, o que serviu de mote para a melhor abordagem do JN na segunda. A analista destaca que a matéria de segunda foi melhor do que a de sábado. “A reportagem mostrou novas cenas das manifestações, imagens muito boas, dimensionando o tamanho dos atos. A reportagem destacou com ênfase que as pessoas usavam máscara e que pediram o impeachment de Bolsonaro”, descreve a pesquisadora.

 Jornais impressos

Como ressalta a pesquisadora Eliara Santana, a construção da notícia é composta de vários elementos. No caso dos jornais impressos, o espaço na capa e nas páginas internas dadas ao assunto, a escolha das palavras e dos verbos e o uso ou não de imagens. A pesquisadora chama o conjunto desses elementos de enquadramento. “O enquadramento delimita e direciona o olhar do espectador, do leitor. Se a manifestação é colocada sob o aspecto da ‘aglomeração’, se esse ponto é enfatizado, ele vai sim direcionar a interpretação, a percepção.”

Manifestante em Brasília, no último sábado, criticou a política relacionada aos indígenas do governo Bolsonaro (Foto: Mídia Ninja)

No jornal O Globo, a chamada de capa para as manifestações foi pequena, sem foto e na parte inferior. Destaca a ocorrência dos protestos, os pedidos de vacina e impeachment, mas também a ocorrência de aglomeração. Para Santana, essa escolha “retira o peso das questões positivas (mobilização, pedido de vacinas) e insere um problema que se liga às manifestações a favor de Bolsonaro (a aglomeração), o que contribui para a percepção equivocada de que as manifestações são todas iguais e danosas neste momento”. Na parte interna, O Globo dedicou meia página ao tema..

O Estado de S. Paulo dedicou uma pequena chamada localizada na parte inferior da capa, sem foto e com título que fala das aglomerações, passando, portanto, uma imagem negativa dos atos. O espaço na capa foi menor do que uma chamada com dicas para corredores.  O Estado de S. Paulo também dedica apenas meia página ao tema com fotos de perto, “que não dimensionam extensão do evento”.

A exceção fica para a Folha de S. Paulo, que deu não apenas a manchete e uma imagem grande da Avenida Paulista lotada, mas dedicou duas páginas internas com muitas fotos. “A capa não faz menção a aglomeração no título ou na linha-fina. O texto, em quatro colunas, contextualiza muito bem o acontecimento para o leitor”, avalia a pesquisadora

O fato de os protestos anti-Bolsonaro terem sido os maiores desde o começo da pandemia amplia a dimensão do “silenciamento” de parte da imprensa. De maneira geral, Santana avalia que “há um silenciamento em geral na cobertura da mídia, que retira o protagonismo dos protestos, sua dimensão de enfrentamento ao governo Jair Bolsonaro, sua pluralidade (não é citado que havia muitas famílias e muitos jovens presentes), a ocorrência em várias cidades, não apenas nas capitais”, resume a pesquisadora.

O professor Samuel Lima analisa que a postura dos jornais diante do governo Bolsonaro é “crítica em certos aspectos, mas está muito ligada ao projeto econômico ultraliberal representado pelo ministro Paulo Guedes”. “Ao longo da história política do país, da história recente do suicídio de Getúlio Vargas em 1954 para cá, em todos os episódios históricos a mídia corporativa mostrou um descompromisso histórico em defesa da democracia. Sempre se colocou a favor de grupos conservadores, sempre em defesa de um liberalismo antidemocrático”, contextualiza Lima.

Ao contrário da cobertura dada pela imprensa brasileira, a mídia estrangeira conferiu bastante destaque aos atos que exigiam o impeachment de Bolsonaro, que, no exterior sempre vem acompanhado de “o presidente de extrema-direita do Brasil”, adjetivo jamais utilizado pela mídia nacional. A agência de notícias Reuters fez boa cobertura dos eventos, segundo Santana, e no britânico The Guardian, havia ainda a informação de que 57% dos brasileiros apoiam o impeachment de Bolsonaro.


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