Nem a presença de testemunhas impediu um sargento do Exército de agredir uma indígena venezuelana dentro do abrigo Pintolândia da Operação Acolhida, em Boa Vista (RR), que recebe migrantes e refugiados da Venezuela. Seus braços, coxa e costas ficaram marcados por hematomas. Essa foi a principal denúncia de agressão física – além das psicológicas – ouvida por integrantes do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União em inspeção surpresa feita no abrigo em 9 de agosto.
A Repórter Brasil recebeu imagens da mulher agredida. Um indígena Warao abrigado disse, em condição de anonimato, que a agressão aconteceu em julho. “Ela ficou mancando por uma semana, não conseguia se levantar. O mesmo sargento que golpeou a senhora disse que não se importava com a gente. Conversamos com um coronel, mas não teve mudança no nosso dia a dia.”
A visita não anunciada dos dois órgãos ocorreu três dias depois de a Repórter Brasil ter revelado a existência de um “canto dos maus-tratos”, criado pelo Exército, para confinar os indígenas venezuelanos que chegavam em situação de alcoolismo ao alojamento. Trata-se de um lugar de cerca de 2 metros quadrados, cercado por grades, onde um indígena teria ficado até 18 horas, com os braços amarrados, segundo carta-denúncia elaborada por servidores da saúde ligados aos abrigos.
A reportagem, republicada pela Folha de S.Paulo, estava acompanhada de uma foto e um vídeo que comprovavam o espaço de confinamento instalado na entrada de um dos quatro abrigos da Operação Acolhida destinados exclusivamente aos indígenas do país vizinho.
Na inspeção, os procuradores e defensores públicos confirmaram a existência do “canto dos maus-tratos” (chamado pelos militares de “cantinho da vergonha”) e também coletaram outras denúncias de agressão física e psicológica.
“Recebemos denúncias de maus-tratos e agressões de militares contra indígenas venezuelanos nos abrigos”, afirma Alisson Marugal, procurador da República em Roraima. O caso mais emblemático envolvendo as Forças Armadas, diz, foi o relato da senhora que, supostamente embriagada, apanhou de um sargento dentro do abrigo. “Esse episódio acende uma preocupação de que práticas de maus-tratos sejam recorrentes nos abrigos”, afirmou o procurador.
Atraso no jantar como castigo
No dia em que a mulher foi agredida, diz o indígena Warao que preferiu não se identificar, os militares ordenaram que o jantar de todos no abrigo fosse servido com quase uma hora de atraso – como forma de punição.
“Imagine fazer isso com crianças, idosos, mulheres grávidas. É um absurdo”, diz o advogado Ivo Cípio Aureliano, do Conselho Indígena de Roraima, que se reuniu com indígenas, MPF e DPU naquele mesmo dia. “Agora os indígenas se sentiram mais seguros em denunciar. O ‘canto dos maus-tratos’ e as agressões contra uma senhora não são casos isolados”, diz. Segundo Aureliano escutou dos indígenas Warao, o militar agrediu a mulher indígena porque ela teria se negado a ir ao “canto dos maus-tratos”.
O defensor público federal Rafael Liberato, do Amazonas, também acompanhou a inspeção. “Não foi só um relato de agressão, mas muitos. E não se trata de eventos recentes, mas de episódios que foram se acumulando. Havia uma tensão clara ali [no abrigo].”
Militares e outros atores envolvidos na coordenação dos abrigos indígenas em Boa Vista confirmaram ao MPF e à DPU a existência do “cantinho da vergonha”, segundo o procurador e o defensor, mas negaram práticas de maus-tratos e disseram que os indígenas não eram obrigados a permanecer confinados. No dia da inspeção, após a publicação da reportagem, o “canto” já tinha sido desativado. “Mas a exposição por si só é violadora de direitos, fora os riscos para a saúde. Uma pessoa não poderia ter sido tratada feito coisa”, diz Liberato.
‘Se existe uma denúncia grave de violação de direitos humanos e nada acontece, o ciclo de violência se perpetua’, afirma o defensor público Liberato
Procurado, o Exército pediu que todas demandas fossem encaminhadas à Casa Civil.
A Casa Civil, coordenadora do Comitê Federal de Assistência Emergencial (CFAE) e, assim, da Operação Acolhida, afirmou, em nota, que não tem conhecimento de nenhuma agressão dentro dos abrigos e que, de antemão, repudia qualquer tipo de violência. Diz ainda que a “Casa Civil, bem como a Força-Tarefa Logística Humanitária, não estão cientes de nenhuma punição dentro de abrigos e não há registros de atrasos, recentes, nas entregas e distribuições das alimentações.”
A Casa Civil disse ainda que recebeu informações sobre o autor do vídeo do “cantinho da vergonha” publicado pela Repórter Brasil. “Sobre a pessoa que gravou o vídeo, nos foi informado tratar-se de um funcionário civil da equipe da Fraternidade Federação Humanitária Internacional (FFHI), um dos parceiros implementadores da ONU. A informação passada é de que ele foi afastado das atividades.”
O Acnur, braço da ONU que atua nos abrigos de Roraima em parceria com o Exército, e a organização Fraternidade, que também coordena alguns dos abrigos, enviaram respostas idênticas aos questionamentos, solicitando que as perguntas fossem encaminhadas para a Casa Civil.
Procurado, o Ministério Público Militar (MPM) informou, em nota, que “não há registros de outros casos de maus-tratos e agressões relacionados à Operação Acolhida na Procuradoria de Justiça Militar em Manaus.” Sobre o caso da indígena e o atraso no jantar, o MPM informou que “o Exército instaurou uma sindicância e o Ministério Público Militar requisitou a instauração de um Inquérito Policial Militar para apuração.”
A omissão do Exército
Informações preliminares, afirmam Liberato e Marugal, indicam que o Exército não realizou instauração disciplinar e que não há investigação em curso para apurar a conduta do sargento envolvido no episódio de agressão contra a mulher indígena. O acusado de agredir a abrigada, segundo depoimentos de militares do abrigo, foi transferido e afastado para funções administrativas.
A nota enviada pela Casa Civil diz que “segundo a Coordenação da Operação Acolhida, não há nenhuma Sindicância ou Inquérito Policial Militar (IPM) aberto.”
No que diz respeito “ao canto dos maus-tratos”, o Acnur afirmou à Repórter Brasil, no dia 3 de agosto, que havia sido informado do confinamento e que solicitara à Força-Tarefa Logística e Humanitária da Operação Acolhida a desativação de tais espaços.
“Se existe uma denúncia grave de violação de direitos humanos e nada acontece, o ciclo de violência se perpetua. A certeza da impunidade é um dos fatores que mais coloca em risco os direitos das pessoas”, afirma Liberato.
‘Ineficácia da política de abrigamento’
A apuração do MPF e da DPU confirmou ainda a ausência de uma política de saúde mental para abrigados, como mostrou a Repórter Brasil. “A Operação Acolhida não disponibiliza tratamento. Esse foi um ponto que consegui identificar”, afirma Marugal. Para ele, há uma relação direta entre o uso abusivo de álcool e a política de abrigamento da população indígena. “Eles são submetidos a uma cultura que não é a deles, organizados em moradias não adaptadas, sem renda. Isso é um sintoma da ineficácia da política de abrigamento enquanto mais duradoura para a questão indígena.”
Sobre o atendimento de saúde a indígenas com problemas ligados à saúde mental, a Casa Civil disse que os casos são encaminhados para atendimento com uma equipe psicossocial composta por três psicólogas (uma militar e duas civis) e quatro assistentes sociais (dois militares e dois civis); casos mais graves recebem tratamento na rede pública de saúde, segundo o órgão.
No início do mês, a Justiça de Roraima, a pedido do MPF, condenou a União e a Funai (Fundação Nacional do Índio) a cumprirem um plano de ação de 2018, que deveria ter sido executado integralmente naquele mesmo ano, para garantir “direitos mínimos – como saúde, educação e assistência especializada – a indígenas venezuelanos”. “Sem o atendimento necessário, há o risco de rápida degradação das características culturais e da própria saúde dos grupos.”
Procurada, a Funai não deu retorno.
A Repórter Brasil questionou a Casa Civil, o Acnur e a Fraternidade se a atual política de abrigamento é adequada para a população indígena, mas não recebeu retorno algum sobre essa questão.
Para apurar as denúncias nos abrigos, o defensor Liberato abriu procedimentos de assistência jurídica e disse que vai ouvir os envolvidos, como o Exército e a Força-Tarefa Logística Humanitária, responsáveis pela coordenação operacional da Operação Acolhida; o Acnur; a Fraternidade, também à frente da coordenação do abrigo; e o Ministério Público Militar, responsável por denúncias de crimes praticados por militares.
No MPF, Marugal iniciou uma apuração sobre o “canto dos maus-tratos”, o sargento acusado de agressão e a política de abrigamento. “Existe a possibilidade de o MPF oferecer uma ação de improbidade administrativa a qualquer agente que tenha cometido qualquer ato que não seja compatível com a ordem jurídica”, diz o procurador, que também vai encaminhar a denúncia criminal para um colega do MPF apurar.