Castigos e hematomas: MPF reúne denúncias de abusos contra indígenas em abrigo do Exército em RR

Após Repórter Brasil revelar a existência de um 'canto dos maus-tratos' em alojamento de Boa Vista, Ministério Público e Defensoria visitam alojamento e obtêm mais relatos de violência física e psicológica contra indígenas venezuelanos
Por Thais Lazzeri
 30/08/2021

Nem a presença de testemunhas impediu um sargento do Exército de agredir uma indígena venezuelana dentro do abrigo Pintolândia da Operação Acolhida, em Boa Vista (RR), que recebe migrantes e refugiados da Venezuela. Seus braços, coxa e costas ficaram marcados por hematomas. Essa foi a principal denúncia de agressão física – além das psicológicas – ouvida por integrantes do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União em inspeção surpresa feita no abrigo em 9 de agosto.

A Repórter Brasil recebeu imagens da mulher agredida. Um indígena Warao abrigado disse, em condição de anonimato, que a agressão aconteceu em julho. “Ela ficou mancando por uma semana, não conseguia se levantar. O mesmo sargento que golpeou a senhora disse que não se importava com a gente. Conversamos com um coronel, mas não teve mudança no nosso dia a dia.”

A visita não anunciada dos dois órgãos ocorreu três dias depois de a Repórter Brasil ter revelado a existência de um “canto dos maus-tratos”, criado pelo Exército, para confinar os indígenas venezuelanos que chegavam em situação de alcoolismo ao alojamento. Trata-se de um lugar de cerca de 2 metros quadrados, cercado por grades, onde um indígena teria ficado até 18 horas, com os braços amarrados, segundo carta-denúncia elaborada por servidores da saúde ligados aos abrigos. 

Segundo denúncia colhida pelo MPF, uma indígena venezuelana foi agredida por um sargento no abrigo Pintolândia, da Operação Acolhida, em Boa Vista (Foto: Arquivo Pessoal)

A reportagem, republicada pela Folha de S.Paulo, estava acompanhada de uma foto e um vídeo que comprovavam o espaço de confinamento instalado na entrada de um dos quatro abrigos da Operação Acolhida destinados exclusivamente aos indígenas do país vizinho. 

Na inspeção, os procuradores e defensores públicos confirmaram a existência do “canto dos maus-tratos” (chamado pelos militares de “cantinho da vergonha”) e também coletaram outras denúncias de agressão física e psicológica. 

“Recebemos denúncias de maus-tratos e agressões de militares contra indígenas venezuelanos nos abrigos”, afirma Alisson Marugal, procurador da República em Roraima. O caso mais emblemático envolvendo as Forças Armadas, diz, foi o relato da senhora que, supostamente embriagada, apanhou de um sargento dentro do abrigo. “Esse episódio acende uma preocupação de que práticas de maus-tratos sejam recorrentes nos abrigos”, afirmou o procurador. 

Atraso no jantar como castigo

No dia em que a mulher foi agredida, diz o indígena Warao que preferiu não se identificar, os militares ordenaram que o jantar de todos no abrigo fosse servido com quase uma hora de atraso – como forma de punição. 

“Imagine fazer isso com crianças, idosos, mulheres grávidas. É um absurdo”, diz o advogado Ivo Cípio Aureliano, do Conselho Indígena de Roraima, que se reuniu com indígenas, MPF e DPU naquele mesmo dia. “Agora os indígenas se sentiram mais seguros em denunciar. O ‘canto dos maus-tratos’ e as agressões contra uma senhora não são casos isolados”, diz. Segundo Aureliano escutou dos indígenas Warao, o militar agrediu a mulher indígena porque ela teria se negado a ir ao “canto dos maus-tratos”. 

O defensor público federal Rafael Liberato, do Amazonas, também acompanhou a inspeção. “Não foi só um relato de agressão, mas muitos. E não se trata de eventos recentes, mas de episódios que foram se acumulando. Havia uma tensão clara ali [no abrigo].” 

De acordo com indígena Warao, após agressões, a mulher ficou com hematomas espalhados pelo corpo e passou uma semana mancando (Foto: Arquivo Pessoal)

Militares e outros atores envolvidos na coordenação dos abrigos indígenas em Boa Vista confirmaram ao MPF e à DPU a existência do “cantinho da vergonha”, segundo o procurador e o defensor, mas negaram práticas de maus-tratos e disseram que os indígenas não eram obrigados a permanecer confinados. No dia da inspeção, após a publicação da reportagem, o “canto” já tinha sido desativado. “Mas a exposição por si só é violadora de direitos, fora os riscos para a saúde. Uma pessoa não poderia ter sido tratada feito coisa”, diz Liberato.

‘Se existe uma denúncia grave de violação de direitos humanos e nada acontece, o ciclo de violência se perpetua’, afirma o defensor público Liberato

Procurado, o Exército pediu que todas demandas fossem encaminhadas à Casa Civil. 

A Casa Civil, coordenadora do Comitê Federal de Assistência Emergencial (CFAE) e, assim, da Operação Acolhida, afirmou, em nota, que não tem conhecimento de nenhuma agressão dentro dos abrigos e que, de antemão, repudia qualquer tipo de violência. Diz ainda que a “Casa Civil, bem como a Força-Tarefa Logística Humanitária, não estão cientes de nenhuma punição dentro de abrigos e não há registros de atrasos, recentes, nas entregas e distribuições das alimentações.” 

A Casa Civil disse ainda que recebeu informações sobre o autor do vídeo do “cantinho da vergonha” publicado pela Repórter Brasil. “Sobre a pessoa que gravou o vídeo, nos foi informado tratar-se de um funcionário civil da equipe da Fraternidade Federação Humanitária Internacional (FFHI), um dos parceiros implementadores da ONU. A informação passada é de que ele foi afastado das atividades.” 

O Acnur, braço da ONU que atua nos abrigos de Roraima em parceria com o Exército, e a organização Fraternidade, que também coordena alguns dos abrigos, enviaram respostas idênticas aos questionamentos, solicitando que as perguntas fossem encaminhadas para a Casa Civil. 

Procurado, o Ministério Público Militar (MPM) informou, em nota, que “não há registros de outros casos de maus-tratos e agressões relacionados à Operação Acolhida na Procuradoria de Justiça Militar em Manaus.” Sobre o caso da indígena e o atraso no jantar, o MPM informou que “o Exército instaurou uma sindicância e o Ministério Público Militar requisitou a instauração de um Inquérito Policial Militar para apuração.”

A omissão do Exército

Informações preliminares, afirmam Liberato e Marugal, indicam que o Exército não realizou instauração disciplinar e que não há investigação em curso para apurar a conduta do sargento envolvido no episódio de agressão contra a mulher indígena. O acusado de agredir a abrigada, segundo depoimentos de militares do abrigo, foi transferido e afastado para funções administrativas. 

A nota enviada pela Casa Civil diz que “segundo a Coordenação da Operação Acolhida, não há nenhuma Sindicância ou Inquérito Policial Militar (IPM) aberto.” 

No que diz respeito “ao canto dos maus-tratos”, o Acnur afirmou à Repórter Brasil, no dia 3 de agosto, que havia sido informado do confinamento e que solicitara à Força-Tarefa Logística e Humanitária da Operação Acolhida a desativação de tais espaços.

Conhecido como “cantinho da vergonha” entre os militares, o espaço servia para confinar indígenas venezuelanos em condição de alcoolismo (Foto: arquivo pessoal)

“Se existe uma denúncia grave de violação de direitos humanos e nada acontece, o ciclo de violência se perpetua. A certeza da impunidade é um dos fatores que mais coloca em risco os direitos das pessoas”, afirma Liberato.

‘Ineficácia da política de abrigamento’

A apuração do MPF e da DPU confirmou ainda a ausência de uma política de saúde mental para abrigados, como mostrou a Repórter Brasil. “A Operação Acolhida não disponibiliza tratamento. Esse foi um ponto que consegui identificar”, afirma Marugal. Para ele, há uma relação direta entre o uso abusivo de álcool e a política de abrigamento da população indígena. “Eles são submetidos a uma cultura que não é a deles, organizados em moradias não adaptadas, sem renda. Isso é um sintoma da ineficácia da política de abrigamento enquanto mais duradoura para a questão indígena.” 

Sobre o atendimento de saúde a indígenas com problemas ligados à saúde mental, a Casa Civil disse que os casos são encaminhados para atendimento com uma equipe psicossocial composta por três psicólogas (uma militar e duas civis) e quatro assistentes sociais (dois militares e dois civis); casos mais graves recebem tratamento na rede pública de saúde, segundo o órgão.

No início do mês, a Justiça de Roraima, a pedido do MPF, condenou a União e a Funai (Fundação Nacional do Índio) a cumprirem um plano de ação de 2018, que deveria ter sido executado integralmente naquele mesmo ano, para garantir “direitos mínimos – como saúde, educação e assistência especializada – a indígenas venezuelanos”. “Sem o atendimento necessário, há o risco de rápida degradação das características culturais e da própria saúde dos grupos.” 

Procurada, a Funai não deu retorno. 

A Repórter Brasil questionou a Casa Civil, o Acnur e a Fraternidade se a atual política de abrigamento é adequada para a população indígena, mas não recebeu retorno algum sobre essa questão. 

Para apurar as denúncias nos abrigos, o defensor Liberato abriu procedimentos de assistência jurídica e disse que vai ouvir os envolvidos, como o Exército e a Força-Tarefa Logística Humanitária, responsáveis pela coordenação operacional da Operação Acolhida; o Acnur; a Fraternidade, também à frente da coordenação do abrigo; e o Ministério Público Militar, responsável por denúncias de crimes praticados por militares. 

No MPF, Marugal iniciou uma apuração sobre o “canto dos maus-tratos”, o sargento acusado de agressão e a política de abrigamento. “Existe a possibilidade de o MPF oferecer uma ação de improbidade administrativa a qualquer agente que tenha cometido qualquer ato que não seja compatível com a ordem jurídica”, diz o procurador, que também vai encaminhar a denúncia criminal para um colega do MPF apurar. 


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