O Brasil já possui diversos instrumentos jurídicos de proteção e respeito aos direitos humanos, à dignidade do trabalhador e ao meio ambiente. Mas quais são os meios para torná-los efetivos? Estes mecanismos já são suficientes para responsabilizar empresas pelos problemas em suas cadeias produtivas?
Essas foram as perguntas que nortearam o segundo dia de debates do seminário “Leis de Cadeia Produtiva: rumo à devida diligência?”. Durante o encontro nesta terça-feira (24), autoridades discutiram como o país pode utilizar leis e normas que já estão em vigor, além de práticas adotadas internacionalmente, para punir e prevenir problemas em suas cadeias produtivas.
Ao olhar para infrações aos direitos apenas como episódios eventuais, a interpretação corrente da lei brasileira incentiva a persistência de práticas ilícitas, segundo o procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT), Ilan Fonseca.
“Com o instrumental jurídico que temos hoje, conseguiríamos responsabilizar as empresas por infrações às garantias trabalhistas e ao meio ambiente. Mas precisamos construir mecanismos para incentivar que as infrações não aconteçam”, observou.
Fonseca mencionou que os casos de combate ao trabalho escravo contemporâneo são, de um lado, um bom exemplo de que somente criminalizar o infrator não resolve os problemas em uma cadeia produtiva. “A fiscalização é consistente, mas no longo prazo deveria haver a redução destes indicadores, e parece que isso não está acontecendo. Precisamos ver soluções para que os casos reduzam, e não apenas que o Estado vá atrás para reprimir esse tipo de conduta”, afirmou.
O procurador do MPT mostrou, de outro lado, algumas práticas que têm sido exitosas no sentido de regularizar a atividade econômica. Segundo ele, isso depende de manter o foco em rastrear os responsáveis pelas cadeias produtivas e de utilizar certos mecanismos, amparados em um amplo referencial jurídico, como termos de ajustamento de conduta (TACs) e regras de compliance.
Leis atuais já permitem responsabilizar empresas
Fiscalizar infrações cometidas contra a lei trabalhista deve, necessariamente, levar a encontrar quem são os atores que utilizam aquela atividade econômica, de acordo com o auditor-fiscal do trabalho Thiago Laporte. “A premissa básica é considerar a empresa principal aquela que se beneficia das irregularidades nos processos de produção e distribuição”, declarou.
Para Laporte, a própria Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) traz elementos para responsabilizar empresas em alguns casos, como os de terceirização e de formação de grupos econômicos. “Não há uma norma específica no Brasil de devida diligência, então a gente se vale de outros princípios e normas de direito, como prevê o artigo 8º das regras trabalhistas”, disse.
Segundo Laporte, já é possível utilizar diversos preceitos normativos existentes no país, como o abuso de direito, a função social de contrato, o princípio da boa-fé e a cota de responsabilidade. Até a recente lei brasileira de liberdade econômica —que, em tese, privilegia interesses corporativos— prevê que o desenvolvimento de uma atividade econômica deve observar a legislação trabalhista. Esse pode ser, inclusive, um incentivo para que as empresas adotem práticas de devida diligência voltadas aos direitos humanos, pois elas já executam outros tipos de verificação dos agentes de uma cadeia produtiva.
Peso não deve cair somente sobre o Judiciário
O peso sobre a aplicação da lei não deve recair somente sobre o poder Judiciário. Essa é a avaliação do juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª região (TRT-15) Marcus Barberino. “A responsabilidade da Justiça é patológica. A questão é como a gente vai usar os instrumentos normativos para combater as ações que levam às patologias”, disse o magistrado.
Uma forma eficiente de evitar violações em cadeias produtivas é aperfeiçoar mecanismos de controle à oferta de crédito financeiro, sugeriu o magistrado. Ele citou como exemplo a norma do Banco Central que restringe empréstimos a empresas na “lista suja” do trabalho escravo contemporâneo. Segundo ele, a norma é falha porque a inserção de agentes pontuais na lista não regulariza toda a atividade econômica. Geralmente, um processo produtivo conta com diversos outros atores, além daquele autuado.
“Nenhuma economia do mundo tem um sistema financeiro tão concentrado quanto o Brasil, mas, ainda assim, tão seguro. Esse oligopólio financeiro que o país pratica pode ser usado para estabelecer mecanismos com condicionantes ambientais e de direitos humanos,” disse o magistrado. “Não é só ‘zerar o desmatamento’, mas promover práticas de desenvolvimento ambiental e social junto com as atividades econômicas”.
Segundo ele, a atenuação de riscos nas cadeias produtivas tem que ser uma prática contínua. Para isso, afirmou, é necessário que haja uma mudança de mentalidade cultural e ideológica que oriente a adoção de práticas de devida diligência, e a reparação não fique a cargo exclusivo da Justiça. “Temos uma larga estrada a percorrer, como os ingleses percorreram ao proibir a apreensão e comercialização de escravos séculos atrás”, afirmou o juiz do TRT-15.
O seminário é organizado pelo Centro de Informação sobre Empresas e Direitos Humanos, Conectas Direitos Humanos, Iniciativa Cristã Romero, e Repórter Brasil, com apoio do Ministério Federal da Cooperação Econômica e do Desenvolvimento (BMZ) da Alemanha.
Na próxima semana, terça-feira, 31 agosto, o evento terá sequência com organizações da sociedade civil e de trabalhadores. Elas discutirão de que maneira é possível se mobilizar sobre o assunto, e se há a necessidade de uma legislação específica para o tema dentro do Brasil.