Durante uma vistoria técnica, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais identificou violações no processo de licenciamento ambiental nas obras de uma fábrica da Heineken em Minas Gerais, que poderiam soterrar o sítio arqueológico onde foi encontrado o esqueleto mais antigo das Américas, conhecido como Luzia. O MP já havia decidido instaurar um inquérito civil para investigar o caso, após a Repórter Brasil revelar que o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) havia paralisado a construção da cervejaria, que fica próxima ao complexo de grutas e cavernas no Monumento Natural Estadual da Lapa Vermelha, em Pedro Leopoldo, na região metropolitana de Belo Horizonte.
“A primeira providência foi fazer um pente fino no processo de licenciamento ambiental, e já identificamos possíveis omissões do empreendimento na avaliação dos impactos à arqueologia”, afirmou à reportagem o promotor Marcelo Maffra, que coordena as Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural. A Heineken já havia obtido uma licença prévia, atestando a viabilidade ambiental, e uma licença de instalação.
Na quarta-feira (29), Maffra foi até a região fazer uma vistoria, acompanhado de uma equipe que incluía uma historiadora, uma arqueóloga, um analista, além de profissionais do IEF (Instituto Estadual de Florestas), que gerencia a unidade de conservação.
Entre as violações que o MP encontrou está o fato de o empreendimento estar tão próximo do Monumento Natural Estadual da Lapa Vermelha e mesmo assim não ter uma anuência prévia do gestor da unidade de conservação – no caso, o IEF. Segundo Maffra, “o Instituto Estadual de Florestas não emitiu uma concordância para a implantação da fábrica de cerveja naquele local, o que viola uma exigência legal e nos traz grande preocupação”.
Durante a vistoria, a equipe identificou que a questão hídrica da região também pode ser um problema. Isso porque a grande utilização de água pode trazer impactos para a unidade de conservação e para o abastecimento hídrico de Pedro Leopoldo. De acordo com o ICMBio, uma das fontes de captação para produzir a cerveja é o subsolo, com um volume de 310m³ por hora, o que seria suficiente para abastecer uma cidade de 37 mil habitantes.
Como parte do inquérito, o Ministério Público também constatou que o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) não havia sido instado pela Semad (Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável) a avaliar o impacto da obra, como deve ocorrer nesses casos. Para Maffra, isso seria uma “aparente irregularidade”.
“[Houve] omissão da Semad, que deveria ter envolvido o Iphan no processo de licenciamento, em razão da presença de sítios arqueológicos na área de influência direta do empreendimento”, afirmou Maffra. “O Iphan deveria ter se manifestado durante esse processo exigindo mais estudos, analisando medidas mitigadoras e compensatórias, mas ele não foi instado a participar”.
A superintendência do Iphan confirmou ao Ministério Público que não havia sido ouvido, ao responder a um ofício do promotor questionando se houve anuência do órgão na aprovação das obras. O MP enviou um ofício à Semad, para que sejam apresentadas informações sobre os estudos espeleológicos; e o Iphan também comunicou a secretaria sobre a necessidade de participação do órgão no processo.
‘Grave falha’
Conforme revelou a reportagem, o ICMBio enviou ofício para o governo mineiro, que já havia concedido a licença prévia para a construção, e aplicou duas multas na Heineken, que somam R$ 83 mil. Os fiscais classificaram de “desconhecidos e imprevisíveis” os impactos que as obras poderiam causar e afirmaram que a caverna onde foi encontrado o crânio de Luzia poderia ser “fatalmente afetada”. O órgão ambiental considerou a concessão da licença ambiental do governo mineiro como “uma grave falha”.
Em entrevista à Folha, o presidente da Heineken Brasil, Mauricio Giamellaro, afirmou que a empresa tem preocupação com temas ambientais. “É óbvio que a gente quer gerar lucro, mas através de respeito […] Sustentabilidade é o novo puro malte”. No primeiro posicionamento à Repórter Brasil, a cervejaria disse que havia fornecido todos os documentos necessários para conseguir a licença ambiental. Já na segunda resposta, enviada após o embargo da obra, a empresa afirmou que suspendeu a atividade de terraplanagem depois da ação dos fiscais.
A Secretaria do Meio Ambiente também enviou diferentes posicionamentos à reportagem. Em um deles, comentou a possibilidade de revogar as licenças: “Caso haja impacto negativo confirmado, em contraponto aos estudos apresentados, existe sim a possibilidade de reconsideração e adoção de medidas impeditivas cabíveis”.
A previsão do Ministério Público de Minas Gerais é a de que na primeira semana de outubro o Laudo Técnico da vistoria fique pronto e até o final do mesmo mês o órgão já tenha uma análise técnica para definir quais serão os próximos passos. De acordo com Maffra, é preciso entender “se existem elementos para chamar a empresa para o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), se o caso é de ação civil pública ou se não há elementos para atuação”.
Histórico da região
Não é a primeira vez que o Monumento Natural Estadual Lapa Vermelha passa por vistoria do MPMG. Em 2014, a região passou por análise técnica da historiadora Neise Mendes e por Ação Civil Pública, por não estar cumprindo os objetivos legais, “comprometendo a qualidade do meio ambiente em razão da omissão estatal”.
Na época, Mendes definiu no Laudo Técnico que não são raros os casos em que a destruição dessas áreas “ocorrem em decorrência de interesses econômicos e de atividades turísticas que provocam, além de graves impactos ambientais, a perda irreparável de um patrimônio que abriga importantes vestígios do passado”. Hoje, a ameaça vem da iniciativa privada.