“Matuto” e “esperto” são adjetivos que o empresário José Haroldo de Vasconcelos atribui a si mesmo no site de sua empresa, a Souza Paiol — maior fabricante de cigarros de palha do Brasil. O “matuto” e “esperto”, contudo, foi responsabilizado por manter 116 trabalhadores escravizados na colheita de palha para os cigarros de sua empresa. O flagra ocorreu durante uma fiscalização trabalhista em uma fazenda em Água Fria de Goiás (GO), a 140 quilômetros de Brasília. Foi o maior resgate de trabalhadores em condições análogas à escravidão realizado este ano, considerando o número de envolvidos.
Entre os trabalhadores estavam cinco adolescentes, sendo um de apenas 13 anos. “Não tinham nenhum direito trabalhista, dormiam em alojamentos péssimos, não recebiam equipamentos de proteção individual e o motorista do ônibus que os levava para a colheita não era habilitado”, detalha o auditor-fiscal do trabalho, Marcelo Campos, que coordenou a operação feita pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM). A Constituição proíbe trabalho abaixo de 14 anos, especialmente em atividades exaustivas como a separação de palha.
O grupo relatou que trabalhava com fome, pois a jornada começava às 5h e eles não tinham direito a café da manhã – a primeira marmita chegava apenas às 11h. Devido a essa situação, os trabalhadores temiam sofrer um mal súbito, segundo contaram aos auditores. De acordo com Campos, eles recebiam apenas mais uma marmita no dia, com uma refeição precária.
Para tentar aplacar a fome, improvisaram fogareiros para cozinhar dentro dos alojamentos, que tinham paredes sem revestimento nem vedações e era cheio de goteiras. Em uma das casas, os trabalhadores chegaram a armar barracas para se protegerem da chuva. Porém, a maior parte dormia em redes e colchões no chão.
Os trabalhadores não receberam itens de higiene básicos, como sabão ou papel higiênico. Durante a colheita, em plena pandemia, precisavam beber água da mesma garrafa. Segundo relatam os fiscais, nenhuma medida para prevenir a transmissão da covid-19 foi tomada.
Além de compartilharem a mesma garrafa, os alojamentos eram superlotados e grande parte dos trabalhadores não tinha tomado vacina contra covid. “Se ficassem doentes e não trabalhassem, era descontado R$ 15 pela marmita”, destaca Campos.
Outro agravante era o fato de as facas usadas pelos trabalhadores para separar a palha da espiga eram cobradas pelos contratantes, que também cobravam pelas pedras usadas para amolá-las e até pelas fitas adesivas usadas pelos trabalhadores para protegerem os dedos. Uma norma que rege o trabalho no campo (a NR-31) determina que o empregador deve disponibilizar, gratuitamente, as ferramentas de trabalho aos funcionários
“Eles não recebiam luvas e nenhum equipamento de proteção individual. Como o movimento para separar a palha é muito rápido e repetitivo, os trabalhadores usam fitas nos dedos para diminuir as feridas”, explica Campos. A fiscalização constatou que alguns trabalhadores tinham lesões nas articulações dos dedos.
Contratos informais e ‘gatos’
A operação de resgate começou em 13 de outubro e foi encerrada na quarta-feira (20), quando os 116 trabalhadores receberam as indenizações, pagas pela Souza Paiol, que somadas chegam a R$ 900 mil.
As negociações entre Vasconcelos, o empresário da Souza Paiol, e os contratantes da mão de obra eram totalmente informais, sem documentos assinados e baseada apenas em acordos verbais. Vasconcelos negociou com dois contratantes para que eles montassem uma frente de trabalho e recrutassem os trabalhadores para colher a palha do milho na Fazenda Araçá, em Água Fria de Goiás.
Esses dois contratantes, por sua vez, passaram a tarefa para outros três contratantes, que são chamados de “gatos”. Dois deles recrutaram trabalhadores em Pompéu, na região Centro-Oeste de Minas Gerais. A cidade fica a 90 quilômetros da sede da Souza Paiol, localizada em Pitangui. Outros trabalhadores migraram do Maranhão, Piauí e interior de São Paulo.
A estratégia de não criar vínculos entre os trabalhadores e a empresa foi apontada pelo coordenador da operação como uma forma de ocultar o responsável pela exploração dos trabalhadores. Contudo, um depósito de R$ 600 mil realizado pelo proprietário da Souza Paiol permitiu a identificação do responsável pela contratação dos “gatos”.
Procurado, Vasconcelos disse à Repórter Brasil que os trabalhadores resgatados não trabalhavam para ele e que são terceirizados. “Eles vendem palha para mim como vendem para outras fábricas de cigarro de palha”, disse o empresário. Questionado sobre a transferência de R$ 600 mil que fez para os responsáveis pela contratação da mão de obra, afirmou que foi um adiantamento que fez para pagar a palha do milho. “A responsabilidade é de quem contrata essas pessoas”, entende Vasconcelos.
O Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Defensoria Pública da União (DPU), porém, entenderam diferente e vão propor um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a Souza Paiol.
Vasconcelos disse que também não está pagando as indenizações aos trabalhadores, mas que apenas emprestou o dinheiro para que seus fornecedores pudessem fazer os pagamentos aos resgatados.
Violações em todas as etapas de produção
Não é apenas na colheita no milharal que a cadeia de produção do cigarro de palha é marcada por violações trabalhistas. Quem transita pelas ruas das cidades do Centro-Oeste de Minas Gerais observa várias pessoas sentadas nas calçadas enrolando cigarros de palha. São trabalhadores informais que atuam sem nenhum direito, conforme a Repórter Brasil já denunciou. O tipo de contratação para enrolar os cigarros no interior de Minas Gerais é semelhante ao identificado pela fiscalização trabalhista em Goiás.
Os intermediários que contratam os serviços das famílias para enrolar os cigarros não fornecem equipamentos de segurança, como máscaras, e nem itens básicos, como cadeiras adequadas para a atividade. Os trabalhadores sentam em bancos sem encosto e até no chão ou nas calçadas. Também é comum ver crianças e adolescentes enrolando os cigarros – situação agravada durante a pandemia, pois as aulas presenciais estavam suspensas.
Sem vínculos e sem direitos trabalhistas
José Haroldo de Vasconcelos, teve a ideia de comercializar cigarros de palha, pois tinha dificuldade de enrolar os próprios para fumar e decidiu contratar outras pessoas para a tarefa. O que era apenas a forma de saciar um vício se tornou um negócio que vigora há mais de 20 anos, com histórico de violações trabalhistas e denúncias de sonegação fiscal.
Antes de ser flagrado com trabalho escravo, Vasconcelos foi alvo de uma operação do Ministério Público de Minas Gerais e da Receita Estadual, que o acusou de sonegação fiscal e de não ter pago cerca de R$ 20 milhões em tributos. Segundo as investigações realizadas em 2019, o grande volume de produção e venda não declarados gerou um lucro que pode ter sido usado para a aquisição de mais de uma dezena de imóveis em bairros nobres de Belo Horizonte e Nova Lima (MG).
Vasconcelos disse que assumiu a dívida, negociou com a Receita Estadual e está pagando as parcelas do montante que sonegou.
A sonegação fiscal não é uma exclusividade da Souza Paiol no setor. A operação Porronca (uma das formas que o cigarro de palha é chamado no interior de Minas Gerais), de 2019, mirou oito empresas que fabricam cigarros de palha em Minas Gerais e Goiás. Segundo a força-tarefa, a estimativa é a de que as empresas deixaram de pagar cerca de R$ 100 milhões de impostos. Indícios de lavagem de dinheiro, com carros e imóveis de luxo, foram destacados pelos investigadores.
Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2020 2611 0/DGB0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil