Em abril deste ano, João* se despediu da mulher e dos dois filhos e embarcou numa viagem de mais de 1,6 mil quilômetros entre Utinga, município baiano a 400 km de Salvador, e Heliodora, no Sul de Minas Gerais. Era a primeira vez que trabalharia na colheita do café, e esperava juntar dinheiro para mandar à família.
Ao chegar na propriedade, João e outros 13 trabalhadores foram alojados em uma casa de três quartos. Tiveram que pagar pela máquina usada para colher o café, pelas botas e luvas, pela alimentação, gás e aluguel. Ao final do mês, depois de tantos descontos nos salários, sobrava pouco ou nada. Sem dinheiro para comprar a passagem de volta, ele e outros colegas só puderam retornar às suas casas após a chegada dos auditores fiscais, quatro meses depois do início da colheita.
João é um dos trabalhadores libertados de condições análogas à escravidão, em 2021, nas propriedades de café da região Sul de Minas Gerais. Até 30 de setembro, data da última atualização de dados da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), 1.015 trabalhadores haviam sido resgatados em 234 estabelecimentos fiscalizados em todo o país. No cultivo de café, foram 240 trabalhadores flagrados sendo submetidos ao trabalho escravo, o que representa um aumento de 71,4% no número de resgatados em relação a 2020.
Na Fazenda Floresta, João e outros 19 trabalhadores foram resgatados por auditores fiscais do governo federal. A propriedade pertence ao produtor Guilherme Sodré Alckmin Júnior e era certificada pela Rainforest Alliance, principal certificação socioambiental do setor no mundo. O selo foi concedido em maio de 2019 e estava vigente no momento do resgate. Em resposta à Repórter Brasil, a Rainforest Alliance informou que suspendeu a certificação até que uma nova auditoria seja realizada. Leia a resposta na íntegra.
Em 2020, Alckmin Júnior foi um dos 40 finalistas do 30° Prêmio Ernesto Illy, promovido pela multinacional italiana Illy Caffè. O cafeicultor também foi agraciado, em 2017, com a homenagem de cidadão honorário de Heliodora. O produtor administra, junto com a filha Lara Alckmin, a Floresta Coffees, produtora de cafés especiais que vende sua produção para torrefadoras e cafeterias no Brasil e no exterior.
O cafeicultor também faz parte do Cadastro Nacional de Produtores Orgânicos por sua produção de café em Heliodora. No Brasil, produtores que desejam comercializar seus produtos como orgânicos devem obter uma certificação após auditoria de uma entidade credenciada junto ao Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), responsável pela regularização da produção orgânica do país.
Em resposta à Repórter Brasil, o setor de orgânicos da pasta esclareceu que o produtor descumpriu “uma das diretrizes da agricultura orgânica conforme o Decreto 6.323/2009 que regulamenta a produção orgânica” e que “comprovada a irregularidade de trabalho análogo a escravidão, o organismo certificador deverá suspender ou cancelar o certificado do produtor”. Leia as respostas na íntegra.
Ambas as certificações – Rainforest Alliance e orgânicos – foram emitidas após auditorias da certificadora IBD Certificações, com sede em Botucatu (SP). Em seu site, a empresa “orgulha-se em ser a maior certificadora da América Latina de produtos orgânicos” e a única autorizada a emitir certos tipos de certificação orgânica para a entrada no mercado europeu e estadunidense. Após contato da Repórter Brasil, a IBD Certificações afirmou que “está trabalhando para averiguação e tomada de ações cabíveis”. Leia a resposta na íntegra.
‘Era tanto desconto que teve gente que ficou sem salário’
Mário*, colega de João na Fazenda Floresta, explica que a renda mensal variava, dependendo da quantidade de café colhida. Em abril, o dono da propriedade pagava R$ 12 por balde de café colhido. O recipiente comporta até 70 litros do grão.
“Os descontos eram muito altos. Eles não entregam papel nenhum para gente olhar, só falavam dos descontos e de quanto a gente tinha para receber”, lembra Mário. “Um mês eu recebi R$ 1,8 mil, mas me descontaram R$ 1,2 mil. Teve gente que teve tanto desconto que ficou sem salário e devendo para o patrão”.
Além das despesas com equipamentos de proteção, alimentação, gás e a passagem de ida para Heliodora, paga com um adiantamento do salário, os trabalhadores também eram obrigados a comprar uma derriçadeira, máquina utilizada para puxar os grãos de café do pé. Mário dividia o equipamento com outro colega e ambos tinham descontos mensais de R$ 300 nos salários para pagar o maquinário. O valor total da derriçadeira era de R$ 2.050.
A cobrança é ilegal. A legislação trabalhista determina que equipamentos utilizados no trabalho devem ser fornecidos sem custo pelo empregador. No começo deste mês, a Repórter Brasil mostrou que uma fazenda da família de Carlos Augusto Rodrigues de Melo, presidente da Cooxupé, maior cooperativa de café do país, foi alvo de fiscalização por descontar de forma irregular 30% do salário de 19 trabalhadores para o pagamento da derriçadeira e do combustível utilizado pelo equipamento.
Sem dinheiro para pagar a passagem de R$ 290 de volta para Utinga, João e Mário só saíram da fazenda após a chegada da fiscalização. “Eu e uns colegas não fomos embora antes porque não tinha como. Não tinha dinheiro para pagar a passagem”, explica João. “A gente não sabia da fiscalização. Foi Deus que colocou os fiscais lá, porque se não a gente não ia saber o que fazer sem dinheiro, sem ter como ir embora”.
As denúncias citadas nesta reportagem foram realizadas pela Articulação dos Empregados Rurais do Estado de Minas Gerais (Adere-MG). Na Fazenda Floresta, a organização chegou a comprar cobertas para alguns trabalhadores, pois não havia roupa de cama suficiente para todos. Neste ano, foram mais de 20 de denúncias realizadas pela ADERE, que resultaram em 12 resgates de trabalhadores do café no Sul de Minas.
Selo de café especial
Com a Fazenda Floresta, Guilherme Sodré Alckmin Júnior fazia parte de um grupo seleto propriedades fornecedoras de cafés especiais para a CarmoCoffees, empresa com sede em Carmo de Minas (MG) especializada na exportação do grão. A CarmoCoffees, que possui quatro escritórios no estado, aparece na lista mais recente de fornecedores da multinacional Nestlé por meio da comercialização do produto com a compradora de grãos Ecom Agroindustrial, com sede na Suíça.
Após contato da Repórter Brasil, a CarmoCoffees retirou o produtor do site da empresa e explicou que o recebimento de café da Fazenda Floresta foi interrompido ainda em 2015. “Não comercializamos cafés com o produtor citado desde dezembro de 2015 e a Fazenda não fez parte de nenhuma comercialização de grãos com a Nestlé”. Leia a resposta na íntegra.
A Fazenda Floresta também já recebeu a visita de representantes da Volcafé, conforme fotos disponíveis no site Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA, na sigla em inglês). A propriedade também é certificada pela BSCA, que atesta a qualidade de cafés especiais produzidos no país.
Em resposta à Repórter Brasil, a BSCA afirmou que “não certifica a sustentabilidade de propriedades, mas apenas a qualidade dos cafés, recebendo o café para análise em seu laboratório, utilizando-se de critérios essencialmente técnicos e vinculados ao produto em si”. A organização não esclareceu se retiraria o selo do produtor após o flagrante de trabalho escravo. Leia a resposta na íntegra.
A Volcafé é subsidiária da trading de commodities ED&F Man, com sede nos Estados Unidos. Em resposta à Repórter Brasil, a ED&F Man afirmou que “as pessoas na foto não são empregados ou representantes da Volcafe” e que a Fazenda Floresta foi visitada “há algum tempo atrás para explorar uma potencial relação comercial, mas nenhum negócio se seguiu”. Leia a resposta na íntegra.
A Repórter Brasil também entrou em contato com Lara Alckmin, filha do produtor Guilherme Alckmin Junior e uma das administradoras da Floresta Coffees, mas não obteve respostas aos questionamentos enviados até o fechamento dessa reportagem.
Comercialização para a multinacional Syngenta
A Repórter Brasil também apurou que Guilherme Sodré Alckmin Júnior comercializou café em 2020 e 2021 com a Nutrade Comercial Exportadora, trading de comercialização do grão da multinacional Syngenta.
A Nutrade possui uma plataforma própria de rastreamento e soluções para cafés especiais, a Nucoffee. Em nota, a Nucoffee afirma estar monitorando o caso para “agir conforme os desdobramentos”. Leia a resposta na íntegra.
A Nutrade também era um dos destinos do café produzido por outros dois empregadores flagrados utilizando-se de mão de obra análoga à escravidão em Minas Gerais.
No dia 12 de julho, 24 trabalhadores, entre eles uma adolescente de 16 anos, foram resgatados na Fazenda Laranjeiras, no município de Ilicínea, a 300 km da capital do estado. O dono da propriedade é Job Carvalho de Brito Filho, que em novembro de 2019 foi um dos vencedores do 1° Concurso de Cafés Especiais de Ilicínea.
Job Carvalho faz parte do Cocatrel Direct Trade (CDT), departamento de exportação de cafés especiais da Cooperativa dos Cafeicultores da Zona de Três Pontas (Cocatrel). Após contato da Repórter Brasil, a Cocatrel tirou do ar a página em seu site que contava a história do produtor e da família, e não deu retorno aos questionamentos enviados até o fechamento desta reportagem.
Informações levantadas pela Repórter Brasil também mostram que Job Carvalho mantém histórico de relacionamento comercial com a trading Nutrade, da Syngenta, com intermediação das compradoras Armazéns Gerais Peneira Alta e Coopercitrus.
Comida fria, ratos e morcegos
Os auditores-fiscais que participaram da ação identificaram o aliciamento de trabalhadores recrutados em quatro municípios da Bahia. Diante desse cenário, o dono da propriedade foi também autuado por tráfico de pessoas para fins de exploração de trabalho análogo ao de escravo.
Nas frentes de trabalho, não havia banheiros ou locais para refeição. Os safristas comiam o almoço frio, no chão ou apoiados em tocos de madeira. Nos quatro alojamentos da propriedade, o vento gelado do inverno mineiro entrava pelas frestas das telhas, sem forro para proteção. Era comum a presença de morcegos, além de ratos. O empregador não fornecia roupas de cama, e alguns trabalhadores não tinham nem travesseiro para dormir, precisando improvisar com as próprias roupas.
Em posicionamento enviado à Repórter Brasil, por meio de sua advogada Rayssa Bernardes Teló, o produtor Job Carvalho sustentou que “não confirma os relatos descritos” e que “são descritas apenas algumas situações de não observância às regras trabalhistas que não configuram os tipos penais em comento e que já foram regularizadas”. Leia a resposta na íntegra.
Alambique desativado como alojamento
Nutrade, Coopercitrus e Armazéns Gerais Peneira Alta também já negociaram café do produtor Luiz Sérgio Marques, autuado no dia 27 de agosto por submeter 7 trabalhadores a condições análogas à escravidão na Fazenda Haras July, popularmente conhecida como Fazenda Barro Preto, no município de São Sebastião do Paraíso (MG). O cafeicultor é também o presidente da Cooparaíso, cooperativa de produtores de café de São Sebastião do Paraíso, arrendada à Coopecitrus em 2015 após anos operando no vermelho.
O produtor foi procurado pela Repórter Brasil diretamente e por meio de seu advogado, mas não respondeu aos questionamentos enviados até o fechamento desta reportagem.
Os trabalhadores resgatados estavam alojados num alambique desativo, adaptado com divisórias para receber os safristas. Segundo relatos de auditores-fiscais que participam da ação, as condições de alojamento eram precárias e não havia banheiros ou espaço dedicado à alimentação nas frentes de trabalho. Para chegar aos campos de café, os trabalhadores eram transportados na carroceria de um caminhão, sem qualquer proteção.
Assim como o produtor Job Carvalho, o dono da Fazenda Haras July também foi autuado por tráfico de pessoas para fins de exploração de trabalho análogo ao de escravo. Nesse caso, os safristas foram arregimentados nos municípios de Chapada do Norte e Berilo, no Vale do Jequitinhonha, no Norte de Minas Gerais.
Procurada pela reportagem, a Coopercitrus não deu detalhes sobre o vínculo comercial com os dois produtores citados e afirmou que “realiza inúmeras e frequentes negociações com mais de trinta e sete mil cooperados em várias regiões do Brasil” e que, ao estabelecer contratos com os produtores, inclui uma “declaração do cooperado de que este não se beneficia e nem pratica” irregularidades como trabalho infantil e análogo ao escravo. Leia as respostas na íntegra.
Por telefone, uma representante do Armazéns Gerais Peneira Alta afirmou que não poderia esclarecer qualquer informação usando como justificativa a nova Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que entrou em vigor em setembro de 2020 e regulamenta o uso, compartilhamento e proteção de dados pessoais no Brasil. “Só posso passar com autorização dos produtores”, disse a atendente por telefone. A Repórter Brasil também enviou uma série de questionamentos por e-mail para a empresa, mas não obteve retorno.
*Nomes fictícios para proteger a identidade dos entrevistados.
** Matéria atualizada às 21h20 do dia 22 de outubro de 2021 para acrescentar o posicionamento do setor de orgânicos do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).