Fim do vale-alimentação e do pagamento das horas de deslocamento, falta de equipamentos de proteção individual (EPIs), revista ilegal e demissão de grávidas: as condições de trabalho entre os safristas da Sucocítrico Cutrale pioram a cada ano, conforme relatos de trabalhadores de fazendas da empresa ouvidos pela Repórter Brasil.
Desde 2019, a empresa com sede em Araraquara (SP) cortou o vale-alimentação dos trabalhadores, que garantia um acréscimo de R$ 240 nos rendimentos mensais dos colhedores de laranja. Os trabalhadores temporários, contratados entre maio e fevereiro deste ano, também deixaram de receber pelas horas gastas no deslocamento às fazendas – chamadas de horas in itinere. A obrigatoriedade do pagamento foi extinta pela reforma trabalhista, que entrou em vigor em novembro de 2017.
Daniel*, de 52 anos, trabalha há três em fazendas da empresa na região de Araraquara. Na safra deste ano, relata ter recebido, em média, R$ 1.300 mensais. “Se eles pagassem o vale-alimentação e a hora in itinere, o salário mensal seria em torno R$ 1.800”, explica Aparecido Bisco, secretário de formação da Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo (Feraesp). A diferença nos valores representa uma diminuição de quase 30% nos rendimentos recebidos pelos safristas.
Se a retirada de direitos como vale-alimentação e horas in itinere encontra respaldo nas mudanças recentes na legislação trabalhista brasileira, a falta de EPIs, banheiros nos campos e a demissão de safristas mulheres após a comunicação de uma gravidez continuam caracterizando infrações à lei.
Procurada diversas vezes por e-mail e telefone, a Cutrale confirmou ter recebido as questões da reportagem, mas preferiu não se manifestar sobre as denúncias.
A Cutrale e as indústrias Citrosuco e Louis Dreyfus Company (LDC) dominam a produção e fornecimento de laranja e suco concentrado no mundo. Segundo estimativas da CitrusBR, associação que representa as três companhias, a cada cinco copos de suco de laranja tomados no mundo, três vieram de pomares das empresas no Brasil.
Apesar de condenação na Justiça, empresa continua demitindo grávidas
Mãe de quatro filhos, Maria* não atua mais em fazendas da Cutrale desde agosto deste ano. Após três meses registrada como safrista, a trabalhadora comunicou a empresa que estava grávida. “Eu engravidei trabalhando lá. Mandei o exame, eles mandaram eu ficar em casa por conta da pandemia, e depois eu fui demitida”, conta. Foram mais de 30 dias entre o anúncio da gestação e a demissão pela Cutrale.
Maria afirma não ter sido a única gestante demitida. “Eu conheço outra colega que ficou grávida e foi mandada embora com 7 meses [de gestação]”. Para Aparecido Bisco, da Feraesp, o relato surpreende. “Faz tempo que eu não vejo uma denúncia sobre empresas demitindo trabalhadoras grávidas. É um fato gravíssimo e raro de acontecer”.
Na Cutrale, aparentemente, não é tão raro. Em fevereiro de 2013, a empresa foi condenada em R$ 500 mil, por dano moral coletivo, por discriminar funcionárias gestantes. À época, a empresa negou as acusações e recorreu da decisão.
A legislação brasileira garante estabilidade provisória no emprego por até cinco meses após o parto. A demissão só ocorre legalmente se houver justa causa.
Uma nova lei sancionada em maio deste ano garantiu ainda o afastamento presencial de empregadas grávidas durante o período da pandemia, sem redução de salário. Em casos de atividades essencialmente presenciais, como o trabalho na colheita da laranja, a trabalhadora deve ser afastada e continuar recebendo remuneração. Ou, então, ter a rotina de trabalho adaptada ao trabalho remoto.
‘Uma firma tão rica e não tem nem EPI?’
Em fazendas da Cutrale em ao menos três municípios da região de Araraquara, faltam EPIs em quantidade e tamanho suficientes para todos, relatam trabalhadores à Repórter Brasil.
Daniel trabalha junto com outros 30 safristas, coordenados por um “turmeiro”, responsável por arregimentá-los, garantir o transporte e fiscalizar a pesagem das laranjas colhidas. Apenas as botas e a perneira – proteção usada ao redor das pernas – são fornecidas. Outros materiais, como luvas e chapéus, são levados pelos próprios trabalhadores. “A gente pede o EPI e o turmeiro não dá, diz que não tem. Eu falei para ele uma vez: ‘uma firma tão rica e não tem EPI para dar para o trabalhador?’”.
Maria*, 30 anos, trabalhou em fazendas da Cutrale com Daniel durante nove meses entre 2019 e 2020. Ela lembra que os pedidos para substituição dos EPIs também eram feitos aos gerentes das propriedades. “Não adiantava falar. Ficava por isso mesmo”, completa a ex-safrista, que também ressalta a falta de banheiros nos campos de trabalho: “Tinha que ir para o meio do pomar”.
Revistas ilegais
Segundo os trabalhadores ouvidos pela Repórter Brasil, todos os dias, ao final da jornada, os encarregados da fazenda vistoriam os pertences de cada trabalhador antes de subir no ônibus que levará a turma de volta para casa. “Todo o dia tem que abrir a mochila e mostrar para o encarregado o que tem dentro da nossa sacola”, conta Daniel. “Se um dia o encarregado souber que um trabalhador traz laranja da firma para casa, ele vai dar advertência, e depois pode demitir por justa causa”.
Em 2018, a empresa foi condenada a pagar R$ 2 milhões de indenização por danos morais coletivos por realizar o mesmo tipo de revista. A Cutrale, que recorreu da decisão, disse à época que “em alguns casos, infelizmente faz-se necessária a conferência visual dos pertences dos funcionários ao final do expediente para proteger o patrimônio da empresa”.
Falta de transparência na pesagem
A pesagem das laranjas colhidas é outro momento de tensão relatado pelos trabalhadores. O pagamento é calculado por bag, que equivale a vinte caixas de laranja. Segundo Daniel e Maria, é comum o “turmeiro” receber as vinte caixas colhidas, mas contabilizar apenas 19 ou 18.
“Provavelmente, ele marca [essa diferença nas caixas] para alguém”, explica Aparecido Bispo, da Feraesp. “Às vezes, ele tem um parente, ou a esposa trabalha junto, e ele coloca essa caixa para a mulher. Nós já recebemos esse tipo de denúncia”.
“Os trabalhadores estão perdendo em torno de uma a três caixas por bag. Se o ‘turmeiro’ está medindo errado, está praticamente roubando os trabalhadores na pesagem. Em um mês, dá em torno de 70 caixas. O pagamento vai ter uma redução muito grave. Por que o ‘turmeiro’ não está sendo transparente? A empresa precisa tomar atitude em relação a esse assunto”, pontua Bispo.
Trabalho sob chuva e contracheque virtual
Os trabalhadores também ressaltam que é comum serem obrigados a trabalhar sob chuva forte ou fazer horas extras no sábado para atingir as metas de produção. “Enquanto não carregar, ele [o encarregado] deixa a gente lá até encher o caminhão”, lembra Daniel.
O controle do pagamento de horas extras é prejudicado pela falta de acesso à internet. Nas fazendas onde trabalham os safristas ouvidos pela Repórter Brasil, o holerite é enviado online, e apenas os trabalhadores com acesso à internet podem consultar o documento. “Quando você pede o holerite lá [na fazenda], ela tem a obrigação de dar, mas não dão”, afirma Daniel.
“Nenhum sindicato foi lá onde eu trabalho. E eu tenho certeza que, se o funcionário ficar falando em sindicato, vai ser mandado embora. Mesmo sendo ruim, é o único lugar que tem trabalho”, diz Maria.
Histórico de violações
Desde 2016, já foram realizadas 133 ações de fiscalização em fazendas da Cutrale, segundo levantamento realizado por auditores-fiscais da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia a pedido da Repórter Brasil.
A lista de infrações trabalhistas em propriedades da empresa mostram que, desde 2015, a maior parte das violações ocorre pelo desrespeito à NR-31 – a principal Norma Regulamentadora de Segurança e Saúde no meio rural –, com 71 registros, e às regras de descanso e jornada de trabalho, com 12 e 11 autuações, respectivamente.
A Cutrale já foi alvo de diversas ações movidas pelo MPT. Em uma delas, foi condenada a pagar R$ 300 mil por dano moral coletivo por expor trabalhadores a condições precárias de saúde e segurança, mas recorreu da decisão. A ação foi motivada após 90 autuações registradas por auditores-fiscais em 13 fazendas da empresa entre agosto de 2012 e fevereiro de 2015.
Mais recentemente, em março de 2019, representantes da Feraesp denunciaram à Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) as condições precárias de alojamento e trabalho de safristas da laranja em uma fazenda no município de Ubirajara, a 200 km de Araraquara. A propriedade fazia parte de um consórcio de fazendeiros que fornecia o fruto para a Cutrale. Na visita à propriedade, acompanhada pela Repórter Brasil, foram identificados trabalhadores – inclusive um adolescente – sem EPIs adequados, sem acesso a banheiro ou a água potável. A remuneração mensal era inferior a um salário-mínimo.
Em 2013, a empresa foi alvo de um flagrante de trabalho escravo. A prática foi identificada nas fazendas Vale Verde e Pontal, em municípios do Triângulo Mineiro. Os 23 trabalhadores resgatados estavam alojados em condições precárias, não tinham direito a descanso semanal remunerado e, em alguns casos, precisaram se endividar para comprar alimentos e itens de higiene.
*Nomes fictícios