No site de um dos principais exportadores de frutas do Rio Grande do Norte, a Agrícola Famosa, antes de acessar qualquer informação, o visitante se depara com um vídeo institucional encenado por trabalhadores da empresa durante os mais diversos afazeres. Eles repassam uma mensagem: “Estamos trabalhando para não deixar que falte fruta na sua mesa”. Alguns segundos adiante, um dos operários na linha de produção olha para a câmera e dá o seguinte recado: “Estamos tomando todos os cuidados necessários para garantir a segurança dos nossos funcionários.”
O fato é que o vídeo expressa uma situação bem diferente da realidade enfrentada pelos trabalhadores que atuam nas lavouras de melão, manga, mamão e melancia no Estado. Diante do avanço dos preços no país, atingindo sobretudo as famílias mais pobres, o setor empresarial não cedeu após três rodadas de negociações e se recusa a cobrir sequer a inflação acumulada em doze meses.
O piso setorial em vigor desde setembro do ano passado é de R$ 1.070. Após três rodadas de negociação — nos dias 27 de agosto, 14 e 22 de outubro —, a proposta patronal ficou em R$ 1.131, ou R$ 50,49 a menos que o necessário para repor a inflação, segundo os sindicatos de trabalhadores (valor de R$ 1.181,49). Com o impasse, as negociações foram suspensas.
A maior parte dos trabalhadores da fruticultura, pelo menos 80%, são safristas. Isso significa que eles não têm vínculo (e, portanto, salário) o ano todo: atuam por um período determinado, apenas durante o plantio e a colheita. No caso do setor das frutas potiguares, as contratações têm início entre junho e julho e se estendem até dezembro, ou, no máximo, janeiro, dependendo da duração das chuvas.
Segundo a Federação dos Trabalhadores Rurais (Fetarn), desde a flexibilização das leis trabalhistas aprovada pelo governo de Michel Temer (2016/2018), do MDB, tem aumentado também a quantidade de trabalhadores diaristas nessas lavouras — ou seja, por empreita, como trabalho intermitente, e não mais por safra, por alguns meses.
“A maior parte desses safristas e diaristas atua nas grandes empresas exportadoras de frutas; são, na verdade, agricultores familiares impactados pela forte seca que temos enfrentado, e que ficam sem ter o que o que produzir — e, aí, acabam aceitando o salário que a empresa oferece”, afirma o engenheiro agrônomo Francisco Joseraldo Medeiros do Vale, da Fetarn.
Dieese aponta defasagem salarial
Os índices para negociação calculados à Fetarn a partir da inflação no período foram elaborados pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos). Conforme a análise, embora a inflação de setembro do ano passado a agosto deste ano tenha ficado em 10,42%, na média, alguns grupos tiveram uma inflação ainda maior — caso de alimentação e bebidas (14,81%) e habitação (12,47%). O estudo do Dieese para a federação também contextualiza o Rio Grande do Norte como maior produtor nacional de melão, a ponto de 40% das exportações brasileiras do produto partirem de terras potiguares.
Além disso, há uma expectativa da Abrafrutas (Associação Brasileira dos Produtores Exportadores de Frutas e Derivados) de que, embora o preço dos insumos e das embalagens tenha subido com o câmbio desvalorizado, todo o volume de frutas produzidas no Estado e negociado com a Europa foi vendido, já que a pandemia impactou o deslocamento de imigrantes que eram mão-de-obra nessas produções, no continente europeu, e fez aumentar o consumo de frutas, uma vez que muitas pessoas passaram a ficar mais tempo em suas próprias casas.
A Repórter Brasil tentou durante quase duas semanas ouvir representantes da classe patronal no Estado sobre as negociações com os trabalhadores da fruticultura. Procurada quatro vezes, a Faern (Federação da Agricultura, Pecuária e Pesca do Rio Grande do Norte) não se manifestou sobre o impasse nas negociações, e nem sobre o fato de a postergação ocorrer próxima à dispensa dos safristas.
O Coex (Comitê Executivo de Fruticultura do Rio Grande do Norte) também foi consultado, já que, além de ter entre os sócios mantenedores 35 produtores de frutas da região – 25 deles, exportadores –, também acompanha as rodadas entre trabalhadores e patrões. A assessoria jurídica do órgão informou que ele atuou “apenas como mediador” contratado pela Faern, por meio da participação de um advogado nas rodadas, mas sem poder para ofertar propostas, por exemplo.
Varejistas e certificadoras
A reportagem também tentou ouvir grandes varejistas e certificadoras sobre o impasse. No caso das varejistas, porque são elas que vendem internamente, ao consumidor final, o produto cultivado e colhido por trabalhadores que reivindicam no mínimo a inflação de um ano.
No caso das certificadoras, porque elas conferem aos produtores, em escala global, a garantia de que sua produção é sustentável – e, como tal, merecedora de selos que aferem boa procedência, e, portanto, maior valor agregado. O selo das certificadoras, por sinal, é algo que os próprios produtores exportadores fazem questão de exibir em seus sites, em canais específicos.
Hoje a maior rede de supermercados do Brasil e uma das maiores do mundo, o Carrefour dispõe de iniciativas referentes às cadeias produtivas de alimentos – integra o Instituto do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (InPacto) e firma compromissos de desmatamento zero e com bem-estar animal, por exemplo.
Procurada, a rede informou, em nota, que “assegura os direitos humanos na cadeia produtiva” e combate à informalidade, “estimulando oportunidades justas de trabalho e renda, estando alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) e às principais diretrizes internacionais sobre trabalho decente”.
“Reforçamos, ainda, que temos um comitê interno de direitos humanos que discute as estratégias para garantir a responsabilidade social nas cadeias, buscando acelerar as ações envolvendo as auditorias sociais e acompanhando os avanços. Além disso, contamos com um Código de Conduta Ética e o Código de Conduta para Fornecedores e Parceiros. Para mitigar o risco de transgressões às normas trabalhistas, ambientais e de direitos humanos, 100% dos fornecedores de marca própria passam por auditorias independentes no protocolo social ICS (Iniciativa de Compliance e Sustentabilidade)”, diz trecho da nota.
O Carrefour alega que, no caso dos fornecedores “mais críticos da cadeia de frutas, legumes e verduras”, são realizados acompanhamentos individuais, com oferta de suporte para melhoria de práticas. “Aqueles que desrespeitam os direitos humanos e as condições dignas de trabalho têm seus contratos de fornecimento suspensos até correção das inconformidades, com acompanhamento para reinclusão”, diz a rede. Não houve manifestação específica, no entanto, sobre a questão salarial dos safristas do Rio Grande do Norte.
Em um relatório divulgado em 2019, a Oxfam Brasil, ao tratar dos trabalhadores na agricultura no Nordeste, apontou que o Carrefour não contaria com políticas e dispositivos específicos em relação aos fornecedores de frutas e que incluíssem orientações sobre a condição dos trabalhadores rurais, em especial os safristas.
O Grupo Pão de Açúcar, segunda maior rede de supermercados do país, também foi procurado pela reportagem. A companhia também divulga iniciativas voltadas para a responsabilidade das cadeias produtivas, mas preferiu não responder as perguntas enviadas.
Rainforest Alliance aponta “contrastes” regionais
Certificadora de diversos fruticultores do Rio Grande do Norte que exportam suas produções – entre as quais a Agrícola Famosa, a Mata Fresca e a Fino Agro, entre outros –, a Rainforest Alliance Brasil, questionada sobre a desigualdade econômica reforçada pela defasagem salarial dos safristas, informou, também em nota, entender que esse “é um desafio social nacional com diferentes contrastes e desafios em cada região”, diante de um programa de certificação que busca “gradativamente aumentar a qualidade social e a proteção desses trabalhadores neste contexto.”
“Atualmente, temos 56 produtores de frutas com certificados ativos em todo o Brasil, metade deles na região Nordeste. No entanto, vale notar que muitos destes produtores ainda estão certificados pela norma Rainforest Alliance 2017, que estabelece um mínimo de 105 critérios a serem cumpridos de forma faseada em até 5 anos. Destes, 42 são relacionados a direitos e bem-estar dos trabalhadores. Esta versão da norma, que está vigente até o primeiro semestre do próximo ano, estabelece o pagamento do salário mínimo nacional aos trabalhadores, fixos ou temporários, de fazendas certificadas. Entretanto, o pagamento da inflação é um item de uma lista de 14 critérios de melhoria opcionais a serem realizadas a partir do 6º ano da certificação”, diz a organização, cuja certificação precisa ser renovada a cada cinco anos.
A versão mais recente da norma (RA2020), que precisa ser implementada pelos produtores até, no máximo, 30 de junho de 2022, incorporou como item obrigatório o pagamento da inflação anual – com a data de admissão do trabalhador como referência. A nova norma também estabelece que os produtores realizem uma comparação dos salários pagos com a referência do conceito de salário digno para o país — caso haja diferenças, é necessário estabelecer um plano para equiparar esses salários ao salário digno.
“Queremos reforçar que a Rainforest Alliance está sempre aberta para receber informações e investigar problemas de conformidade com a sua norma e, para tanto, os sindicatos e outras partes interessadas podem utilizar o nosso mecanismo de queixas oficial”, conclui a organização. Outra certificadora procurada pela reportagem foi a Global GAP, que não se manifestou até esta publicação. O espaço permanece aberto para quaisquer manifestações de representantes de certificadores e empresários.