Três adolescentes são resgatadas da escravidão em casa de farinha no Piauí

Com idades entre 13 e 17 anos, garotas passaram cinco meses descascando mandioca, uma atividade que está na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil
Por Leonardo Sakamoto
 19/11/2021

Três adolescentes foram resgatadas de condições análogas às de escravo em uma casa de farinha em Marcolândia, no Piauí, em operação que terminou nesta quarta (17). Elas descascavam a mandioca para ser processada, atividade relacionada na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil. A ação ocorre no momento em que a Câmara dos Deputados discute a redução da idade mínima permitida para o trabalho.

casa de farinha de mandioca no Piauí
Três adolescentes foram resgatadas de condições análogas às de escravo em casa de farinha de mandioca no Piauí (Foto: AFT)

A operação do grupo especial de fiscalização móvel contou com a participação de auditores fiscais do Ministério do Trabalho, procuradores do Ministério Público do Trabalho e do Ministério Público Federal, agentes da Polícia Federal e um membro da Defensoria Pública da União.

Ela verificou a situação de oito farinheiras em Marcolândia (PI) e Ipubi (PE). Em apenas uma delas foi caracterizada escravidão contemporânea devido à degradação do trabalho das adolescentes. Mas sete das oito empresas tiveram seu maquinário interditado por conta da falta de segurança.

As três adolescentes, de 13, 15 e 17 anos, trabalhavam para ajudar a renda da família. De acordo com o auditor fiscal do trabalho Claudio Secchin, que coordenou a operação, cada uma descascava, usando faca e raspador, cerca de quatro tonéis por dia, ajoelhadas, sentadas num toco de madeira ou encostadas na parede. Elas mudavam de posição a cada tanto devido à posição desconfortável e as dores do esforço repetitivo.

Foram cinco meses de trabalho ininterrupto. Não contavam com banheiro, tinham que trazer seus próprios instrumentos de trabalho e não recebiam equipamentos de proteção individual. Vale lembrar que a intensa dispersão de poeira oriunda do processamento da mandioca pode causar problemas respiratórios.

Cada uma das adolescentes recebeu R$ 8620,00 em verbas rescisórias e dano moral individual. E terão direito a três meses do seguro-desemprego especial pago a resgatados do trabalho escravo no Brasil desde 2003. Os empregadores firmaram Termo de Ajuste de Conduta com o Ministério Púbico do Trabalho, comprometendo-se a se adequar à legislação.

A Casa de Farinha São Cristóvão onde foi identificada as condições análogas às de escravo se comprometeu perante ao MPT e à DPU ao pagamento de cestas básicas para as famílias das adolescentes e outras famílias do município onde elas moravam.

A coluna não conseguiu contato com os responsáveis pela empresa até o fechamento deste texto e irá atualizá-lo tão logo isso ocorra.

Trabalho em casa de farinha é proibido para adolescentes

A legislação brasileira proíbe quem tem menos de 18 anos de atuar em atividades relacionadas na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP), de acordo com o decreto 6.481/2008. Ele regulamenta a Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho que trata do tema.

Adolescente resgatada da escravidão
Adolescente resgatada da escravidão em casa de farinha no Piauí (Foto: AFT)

De acordo com a Lista TIP, a atividade da fabricação de farinha de mandioca envolve esforços físicos intensos, acidentes com instrumentos pérfuro-cortantes, movimentos repetitivos, temperaturas altas. Entre os prováveis riscos à saúde estão contusões, cortes, queimaduras, amputações, tendinites, entre outros.

O flagrante de crianças e adolescentes trabalhando nessas condições não é novidade nessa região. Por exemplo, 13 crianças e adolescentes, de três a 17 anos, foram encontrados em três casas de produção de farinha de mandioca no município de Ipubi, sertão de Pernambuco, pelo grupo móvel de fiscalização do governo federal em maio de 2019. Depois disso, a situação melhorou, mas não o suficiente.

A criança começa a trabalhar porque a família não tem com quem deixa-la ou porque precisar de sua ajuda para completar a renda da casa. Ou seja, é um misto de falta de alternativas econômicas para emprego na região aliada à falta de estrutura de assistência social.

Discussão sobre idade mínima permitida

Uma proposta que muda a Constituição para reduzir a idade mínima para o trabalho, de 16 para 14 anos está para ser votada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. Hoje, a lei permite que jovens de 14 e 15 anos atuem apenas na condição de aprendizes. A PEC 18/2011 conta com o apoio da presidente da comissão, Bia Kicis (PSL-DF), fiel aliada de Jair Bolsonaro.

O relator, Paulo Eduardo Martins (PSC-PR), contudo, além de dar parecer favorável à admissão da proposta também recomendou a aprovação de outras seis Propostas de Emenda à Constituição que tramitam apensadas à principal.

Isso pode trazer um problema maior ainda, na avaliação dos críticos do texto. Por exemplo, a PEC 2/2020 reduz a idade mínima de trabalho para 13 anos. E a PEC 274/2013 abre caminho para trabalho em qualquer idade, se houver autorização dos pais.

O Ministério Público do Trabalho, em seu parecer sobre a PEC 18, diz que propostas como essas “reforçam o mito de que crianças e adolescentes pobres têm apenas duas opções de vida: trabalhar ou tornarem-se infratores da lei”.

“No entanto, ao invés de limitar as opções das crianças e adolescentes pobres, a família, a sociedade e o Estado devem garantir a eles o direito a uma educação pública e de qualidade, a espaços de lazer e cultura e o acesso adequado ao sistema de saúde”, avalia.

Duas das adolescentes resgatadas da escravidão
Duas das adolescentes resgatadas da escravidão em casa de farinha no Piauí (Foto: AFT)

Trabalho escravo hoje no Brasil

De 1995, quando o Brasil reconheceu diante das Nações Unidas a persistência do trabalho escravo em seu território e o governo federal criou o sistema nacional de verificação de denúncias, até o final do ano passado, quase 57 mil trabalhadores foram resgatados segundo dados do Radar SIT – Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, ligado ao Ministério do Trabalho.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Trabalhadores têm sido encontrados em fazendas de gado, soja, algodão, cana, café, frutas, erva-mate, batatas, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordéis. A pecuária bovina é a principal atividade econômica flagrada com trabalho escravo desde 1995.

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