João* vivia em um barraco de madeira, palha e lona afastado da sede da fazenda. Sem água potável, ele usava um poço perto do pasto para matar a sede e cozinhar no fogão improvisado com tijolos. Arregimentado para fazer manutenção de cercas, ele não tinha acesso a banheiro, nem chuveiro e, por conta das frestas nas paredes e buracos no teto, dormia exposto à chuva ao risco de ser atacado por ratos e insetos.
Essa era a situação a que João era submetido enquanto trabalhava na Fazenda Jaú, em São Félix do Xingu (PA). Em uma tarde de forte chuva em 2018, ele foi resgatado em condições análogas à escravidão por auditores fiscais do trabalho, do governo federal.
Durante o resgate, os fiscais constataram que a Fazenda Jaú pertencia a Paulo Sampaio do Amaral Carvalho. Mas foi o seu filho, Rodrigo do Amaral Carvalho, quem assumiu a responsabilidade pela contratação de João. Ele foi autuado, obrigado a pagar pelas infrações trabalhistas e incluído na “lista suja” do trabalho escravo em abril de 2020.
Com o nome de Rodrigo no cadastro, grandes frigoríficos deveriam parar de comprar gado do pecuarista. Mesmo assim, a Repórter Brasil teve acesso a documentos que mostram que a família seguiu vendendo animais para a Frigol, o quarto maior frigorífico de carne bovina do país e signatário de compromissos anti-trabalho escravo. As vendas eram feitas em nome de seu pai, o proprietário da Fazenda Jaú.
Casos como esse escancaram a fragilidade do monitoramento da cadeia produtiva do gado e mostram como os frigoríficos poderiam ir muito além na sua responsabilidade de fiscalizar seus fornecedores.
Neste caso, por exemplo, os Carvalho comercializavam com a Frigol o gado vindo de uma fazenda com o nome “limpo” (ou seja, que não constava na “lista suja” do trabalho escravo). Questionado pela reportagem, o frigorífico afirmou que não sabia da relação desta propriedade com Rodrigo, porque seria responsabilidade dos fornecedores passarem a informação de que a gestão era feita de forma conjunta com uma pessoa autuada por escravidão.
“É fácil para um pecuarista apagar muitos crimes para colocar seu produto no mercado”, comenta o Frei Xavier Plassat, coordenador da Campanha contra o Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Por isso, ele é contra deixar na mão do proprietário a prerrogativa de relatar uma informação que pode gerar restrições comerciais.
O esquema da família Amaral Carvalho
No caso da família Carvalho, os documentos obtidos pela Repórter Brasil mostram que a Fazenda Jaú, onde houve o flagrante de trabalho escravo, fica a 2km de uma fazenda ficha-limpa que era a fornecedora direta da Frigol – chamada Lote 39-D. Detalhe: o envio de animais no nome de Paulo ocorreu mesmo após seu falecimento, em maio de 2020.
Rodrigo fez a inscrição da Lote 39-D no Cadastro Ambiental Rural (CAR) colocando como proprietária a empresa Amaral Carvalho Construtora e Comercial, da qual é sócio administrador. O registro no CAR, obrigatório para todos os imóveis rurais, é autodeclaratório.
Durante a operação que flagrou o trabalhador em situação análoga à escravidão, os fiscais entraram em contato tanto com Paulo como com Rodrigo. Além disso, no relatório de fiscalização, eles destacaram que pai e filho foram contactados pela fiscalização conjuntamente, reforçando que a gestão do imóvel seria feita de forma familiar.
A Repórter Brasil entrou em contato com Rodrigo por telefone e e-mails, dele e de suas empresas, mas ele não respondeu.
Já a Frigol afirmou que Paulo Sampaio do Amaral Carvalho foi fornecedor da empresa de 2018 a 2020, “não constando em seu CPF ou no CAR da fazenda informações que o desabonassem como fornecedor durante o período”. Segundo o frigorífico, o contrato de fornecimento foi interrompido assim que Rodrigo do Amaral Carvalho assumiu oficialmente a operação da fazenda. (Leia a resposta na íntegra aqui.)
Ciclo de violações
Desde 2003, mais de 11 mil trabalhadores no setor da pecuária foram resgatados de condições análogas à escravidão por auditores fiscais do governo federal. O número representa 41% dos trabalhadores resgatados no período, em estimativa da CPT. Do total de empregadores incluídos nas “listas sujas” publicadas semestralmente pelo governo desde 2003, 55% exercem a pecuária como atividade principal.
Para Plassat, as práticas de compra que supostamente deveriam bloquear fornecedores envolvidos com crimes diversos deixam muito a desejar. “Se a atividade não for devidamente monitorada por mecanismos que tenham como provar sua eficiência, estamos alimentando esse ciclo [de trabalho escravo] que pretendemos combater”.
Além de liderar o ranking de trabalhadores submetidos à escravidão, a pecuária é um dos principais vetores das queimadas e do desmatamento ilegal no Brasil. Cerca de 75% das áreas públicas desmatadas na Amazônia Legal viraram pasto, segundo levantamento do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM). Já o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) estima que mais de 800 mil quilômetros quadrados da floresta amazônica já foram destruídos para a implantação de lavouras e pastagens, sendo a criação de gado responsável por 70% do desmatamento em países da América Latina e Caribe.
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A inexistência de mecanismos para identificar a origem dos animais desde o nascimento até o abate abre brechas para outras fraudes na cadeia produtiva. A Repórter Brasil revelou diversas manobras no setor. São práticas como a conhecida como “lava-gado”, que consiste em transferir os bois de uma fazenda com desmatamento ilegal ou trabalho escravo para a uma propriedade “ficha-limpa”, o que permite encobrir a origem dos animais para os compradores.
Era o que acontecia com o “boi pirata” criado ilegalmente em uma Terra Indígena no Pará, que tem conexão com os frigoríficos Marfrig, Frigol e Mercúrio.
A Repórter Brasil mostrou também evidências de que a maior produtora de proteínas do mundo, a JBS, transportava gado de fornecedores desmatadores, contrariando sua política de só ter fornecedor que preserva a Amazônia. Depois do transporte dos animais, a JBS comprava e abatia os bois, “limpando” a mancha de desmatamento na cadeia produtiva.
Os problemas na fiscalização do trajeto entre a criação do gado e a prateleira do supermercado também atingem o Pantanal. É o caso de um pecuarista investigado por ter colocado fogo em sua fazenda no Pantanal, para abrir espaço para pastagens. A reportagem mostrou que ele já havia vendido gado para o governador do Mato Grosso do Sul, Reinaldo Azambuja (PSDB).
*Nome fictício para proteger a identidade do trabalhador