Compra de gado de família flagrada com trabalho escravo expõe falhas no controle de frigoríficos

Caso envolvendo um dos maiores frigoríficos do país mostra como empresas poderiam avançar no monitoramento da cadeia produtiva do gado; setor concentra mais de 40% dos resgates de trabalhadores em situação análoga à escravidão
Por Isabel Harari
 23/12/2021

João* vivia em um barraco de madeira, palha e lona afastado da sede da fazenda. Sem água potável, ele usava um poço perto do pasto para matar a sede e cozinhar no fogão improvisado com tijolos. Arregimentado para fazer manutenção de cercas, ele não tinha acesso a banheiro, nem chuveiro e, por conta das frestas nas paredes e buracos no teto, dormia exposto à chuva ao risco de ser atacado por ratos e insetos.

Essa era a situação a que João era submetido enquanto trabalhava na Fazenda Jaú, em São Félix do Xingu (PA). Em uma tarde de forte chuva em 2018, ele foi resgatado em condições análogas à escravidão por auditores fiscais do trabalho, do governo federal.

O monitoramento falho dos frigoríficos abre brecha para violações socioambientais na cadeia produtiva do gado; do total de empregadores incluídos nas “listas sujas” do trabalho escravo, 55% estão ligados à pecuária (Foto: Alberto Cesar Araujo/Amazônia Real)

Durante o resgate, os fiscais constataram que a Fazenda Jaú pertencia a Paulo Sampaio do Amaral Carvalho. Mas foi o seu filho, Rodrigo do Amaral Carvalho, quem assumiu a responsabilidade pela contratação de João. Ele foi autuado, obrigado a pagar pelas infrações trabalhistas e incluído na “lista suja” do trabalho escravo em abril de 2020.

Com o nome de Rodrigo no cadastro, grandes frigoríficos deveriam parar de comprar gado do pecuarista. Mesmo assim, a Repórter Brasil teve acesso a documentos que mostram que a família seguiu vendendo animais para a Frigol, o quarto maior frigorífico de carne bovina do país e signatário de compromissos anti-trabalho escravo. As vendas eram feitas em nome de seu pai, o proprietário da Fazenda Jaú.

Casos como esse escancaram a fragilidade do monitoramento da cadeia produtiva do gado e mostram como os frigoríficos poderiam ir muito além na sua responsabilidade de fiscalizar seus fornecedores.

Neste caso, por exemplo, os Carvalho comercializavam com a Frigol o gado vindo de uma fazenda com o nome “limpo” (ou seja, que não constava na “lista suja” do trabalho escravo). Questionado pela reportagem, o frigorífico afirmou que não sabia da relação desta propriedade com Rodrigo, porque seria responsabilidade dos fornecedores passarem a informação de que a gestão era feita de forma conjunta com uma pessoa autuada por escravidão.

Trabalhador resgatado em São Félix do Xingu não tinha acesso à água potável nem abrigo para se proteger da chuva. (Foto: Subsecretaria de Inspeção do Trabalho/Ministério do Trabalho)

“É fácil para um pecuarista apagar muitos crimes para colocar seu produto no mercado”, comenta o Frei Xavier Plassat, coordenador da Campanha contra o Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Por isso, ele é contra deixar na mão do proprietário a prerrogativa de relatar uma informação que pode gerar restrições comerciais.

O esquema da família Amaral Carvalho

No caso da família Carvalho, os documentos obtidos pela Repórter Brasil mostram que a Fazenda Jaú, onde houve o flagrante de trabalho escravo, fica a 2km de uma fazenda ficha-limpa que era a fornecedora direta da Frigol – chamada Lote 39-D. Detalhe: o envio de animais no nome de Paulo ocorreu mesmo após seu falecimento, em maio de 2020.

Rodrigo fez a inscrição da Lote 39-D no Cadastro Ambiental Rural (CAR) colocando como proprietária a empresa Amaral Carvalho Construtora e Comercial, da qual é sócio administrador. O registro no CAR, obrigatório para todos os imóveis rurais, é autodeclaratório.

Durante a operação que flagrou o trabalhador em situação análoga à escravidão, os fiscais entraram em contato tanto com Paulo como com Rodrigo. Além disso, no relatório de fiscalização, eles destacaram que pai e filho foram contactados pela fiscalização conjuntamente, reforçando que a gestão do imóvel seria feita de forma familiar.

A Repórter Brasil entrou em contato com Rodrigo por telefone e e-mails, dele e de suas empresas, mas ele não respondeu.

Já a Frigol afirmou que Paulo Sampaio do Amaral Carvalho foi fornecedor da empresa de 2018 a 2020, “não constando em seu CPF ou no CAR da fazenda informações que o desabonassem como fornecedor durante o período”. Segundo o frigorífico, o contrato de fornecimento foi interrompido assim que Rodrigo do Amaral Carvalho assumiu oficialmente a operação da fazenda. (Leia a resposta na íntegra aqui.)

Ciclo de violações

Desde 2003, mais de 11 mil trabalhadores no setor da pecuária foram resgatados de condições análogas à escravidão por auditores fiscais do governo federal. O número representa 41% dos trabalhadores resgatados no período, em estimativa da CPT. Do total de empregadores incluídos nas “listas sujas” publicadas semestralmente pelo governo desde 2003, 55% exercem a pecuária como atividade principal.

Para Plassat, as práticas de compra que supostamente deveriam bloquear fornecedores envolvidos com crimes diversos deixam muito a desejar. “Se a atividade não for devidamente monitorada por mecanismos que tenham como provar sua eficiência, estamos alimentando esse ciclo [de trabalho escravo] que pretendemos combater”.

Pecuária lidera ranking de trabalhadores resgatados em condições análogas à escravidão. (Foto: Subsecretaria de Inspeção do Trabalho/Ministério do Trabalho)

Além de liderar o ranking de trabalhadores submetidos à escravidão, a pecuária é um dos principais vetores das queimadas e do desmatamento ilegal no Brasil. Cerca de 75% das áreas públicas desmatadas na Amazônia Legal viraram pasto, segundo levantamento do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM). Já o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) estima que mais de 800 mil quilômetros quadrados da floresta amazônica já foram destruídos para a implantação de lavouras e pastagens, sendo a criação de gado responsável por 70% do desmatamento em países da América Latina e Caribe.

Leia também: Financiamento para desmatar: organizações pedem veto a empréstimo milionário para Marfrig

A inexistência de mecanismos para identificar a origem dos animais desde o nascimento até o abate abre brechas para outras fraudes na cadeia produtiva. A Repórter Brasil revelou diversas manobras no setor. São práticas como a conhecida como “lava-gado”, que consiste em transferir os bois de uma fazenda com desmatamento ilegal ou trabalho escravo para a uma propriedade “ficha-limpa”, o que permite encobrir a origem dos animais para os compradores.

Era o que acontecia com o “boi pirata” criado ilegalmente em uma Terra Indígena no Pará, que tem conexão com os frigoríficos Marfrig, Frigol e Mercúrio.

A Repórter Brasil mostrou também evidências de que a maior produtora de proteínas do mundo, a JBS, transportava gado de fornecedores desmatadores, contrariando sua política de só ter fornecedor que preserva a Amazônia. Depois do transporte dos animais, a JBS comprava e abatia os bois, “limpando” a mancha de desmatamento na cadeia produtiva.

Os problemas na fiscalização do trajeto entre a criação do gado e a prateleira do supermercado também atingem o Pantanal. É o caso de um pecuarista investigado por ter colocado fogo em sua fazenda no Pantanal, para abrir espaço para pastagens. A reportagem mostrou que ele já havia vendido gado para o governador do Mato Grosso do Sul, Reinaldo Azambuja (PSDB).

*Nome fictício para proteger a identidade do trabalhador

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