Exportações de carne conectam desmatamento no Brasil a grandes varejistas globais

Investigação da Repórter Brasil mostra os elos que conectam a pecuária ligada ao desmatamento na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal com supermercados na Europa e Estados Unidos
 10/12/2021

Não raro, bois criados na região amazônica atravessam longas viagens rodoviárias para serem abatidos em frigoríficos localizados a milhares de quilômetros, no Centro-Sul do país. São adquiridos por outras fazendas, que realizam a engorda final dos animais antes de vendê-los para indústrias exportadoras. Através delas, a carne brasileira alcança diversos mercados globais, incluindo grandes centros consumidores de países ricos.

Esta realidade é abordada no décimo segundo número do Monitor, o boletim jornalístico com análises setoriais e de cadeia produtiva da Repórter Brasil. A investigação, realizada em parceria com a organização Mighty Earth, aborda as relações entre a carne vendida por grandes varejistas nos Estados Unidos, Reino Unido e União Europeia com o desmatamento de florestas nativas no Brasil. Foram apurados exemplos de como, através dos chamados “fornecedores indiretos”, mesmo as carnes vendidas por abatedouros distantes das principais fronteiras agrícolas podem estar conectadas a crimes socioambientais não só na Amazônia, mas também no Pantanal e no Cerrado brasileiros.

Lacunas na transparência da cadeia produtiva levam carne produzida ilegalmente às prateleiras dos grandes supermercados. (Foto: Divulgação/Bruno Cecim/Agência Pará)

Os fornecedores indiretos são as fazendas que não comercializam gado diretamente com os frigoríficos. Ao invés disso, criam animais apenas até uma certa idade, de onde eles são transferidos para outras propriedades rurais.

Por questões logísticas e também de regularização ambiental, é comum que as pastagens associadas a crimes como o desmatamento ilegal, a invasão de terras indígenas e o trabalho escravo atuem principalmente nesse nicho de mercado. Devido às lacunas de rastreabilidade do rebanho bovino no Brasil, estes animais, através das fazendas intermediárias, podem chegar até mesmo em indústrias formalmente comprometidas em não adquirir gado associado a este tipo de crime.

Da Amazônia para São Paulo

O risco de contaminação está presente, por exemplo, no caso da Fazenda Santa Lúcia, localizada em Espírito Santo do Turvo (SP). Nos últimos três anos, ela forneceu gado em diferentes ocasiões para o abatedouro da JBS – maior indústria de carne bovina do país – em Lins (SP).

Documentos acessados pela Repórter Brasil mostram que a Fazenda Santa Lúcia adquiriu animais para engorda da Estância Painera, em Altamira (PA) – município que está no coração de uma das regiões de floresta amazônica mais afetadas pelo desmatamento.

A Estância Painera possui registros de desmate da mata nativa após 2008 e déficit nas áreas de Reserva Legal e de Proteção Permanente que deveriam ser mantidas pela propriedade. É o que aponta plataforma SeloVerde, lançada pelo governo do Pará em abril de 2021. Ela disponibiliza dados sobre a produção agropecuária e adequação ambiental por propriedades rurais no estado.

Mas os problemas não param por aí. A Estância Painera pertence a Carlos Antônio Nunes, que também é dono de outra propriedade muito maior em Altamira – a Fazenda Bonanzza, de 2,2 mil hectares –, separada da primeira por apenas 40 quilômetros. Desde 2013, ela possui 330 hectares embargados pelo Ibama devido ao desmate ilegal de floresta amazônica em seu perímetro. A Repórter Brasil apurou que, somente entre 2019 e 2020, a Fazenda Bonanzza encaminhou centenas de animais para serem engordados na Estância Painera. Ou seja, os animais adquiridos desta última por terceiros eventualmente podem ter se originado, em algum momento, na área de pastagem da Fazenda Bonanzza.

Procurada, a JBS ressaltou que “não compactua nem tolera qualquer tipo de desrespeito ao meio ambiente, a comunidades indígenas e à legislação nacional”. E que, no momento das compras, todas as propriedades fornecedoras diretas mencionadas na investigação da Repórter Brasil estavam em conformidade com os protocolos de compra responsável adotados pela empresa. Segundo a JBS, a empresa possui 14 mil produtores bloqueados em sua base de compras.

A multinacional afirmou ainda que adotou uma estratégia inovadora para enfrentar o desafio dos fornecedores indiretos. É a Plataforma Pecuária Transparente, que, segundo o frigorífico, vai avançar na rastreabilidade da cadeia “identificando elos anteriores e possibilitando que seus fornecedores diretos avaliem seus próprios fornecedores de animais com os mesmos critérios socioambientais da Política de Compra Responsável da JBS”.

O posicionamento completo encaminhado pela JBS, bem como pelas demais empresas citadas no relatório, pode ser acessado aqui.

Pantanal e Cerrado

A Repórter Brasil apurou situações semelhantes relacionadas à cadeia produtiva da Marfrig e da Minerva, outras grandes indústrias nacionais com atuação no setor de carnes. Problemas que, como aponta a investigação, também afetam outros biomas – Cerrado e Pantanal – onde a expansão predatória da pecuária afeta a vegetação nativa.

Um dos casos envolve a Fazenda Gera, em Campo Novo dos Parecis (MT) – é fornecedora de gado para a unidade da Marfrig em Tangará da Serra (MT). Trata-se de um confinamento habilitado a exportar carnes para a Europa e pertencente à MFG Agropecuária, empresa cujo dono é Marcos Molina – fundador e presidente do Conselho de Administração da Marfrig.

Em 2016, a Fazenda Onça Parda, propriedade fornecedora da MFG Agropecuária, foi multada pelo Ibama por invadir o território da Terra Indígena Manoki, em Brasnorte (MT), destruindo 230 hectares de florestas no interior do seu território. A área desmatada ilegalmente, utilizada para a formação de pastagens, foi embargada pelo Ibama. Mas, mesmo após isso, a Repórter Brasil identificou, em 2018, o fornecimento de animais da propriedade para a Fazenda Gera.

Sobre o caso, a MFG Agropecuária afirmou que desde 2019 realiza o monitoramento de seus fornecedores por meio de consulta aos dados públicos de áreas embargadas pelo Ibama, tendo encerrado negócios com a fazenda por conta disso. “Em março de 2019 chegamos a negociar com o produtor, processo que não foi concretizado devido à detecção de pendência ambiental, demonstrando a efetividade do nosso protocolo”, afirma a empresa.

A Marfrig, por sua vez, disse não ter informações sobre as fazendas de origem dos animais encaminhados aos confinamentos da empresa fornecedora. Informou que “possui os dados dos fornecedores diretos aderentes aos critérios socioambientais assumidos, e no caso MFG Agropecuária, sem alcance a sua cadeia de fornecimento (fornecedores indiretos)”.

Segundo o frigorífico, os fornecedores indiretos são objeto do Plano Marfrig Verde +, atualmente em desenvolvimento pela empresa. Ele visa ter toda a cadeia de fornecimento mapeada desde a origem até o abate, meta estabelecida para 2030. “Dentro do programa, à medida que vamos obtendo essa identificação de origem de indiretos, a política aplicada ao fornecimento direto da Marfrig é expandida ao longo da cadeia como pré-condição para fornecimento. Regra agora submetida à MFG Agropecuária.”

Já no caso da Minerva, a Repórter Brasil identificou compras de pastagens como a Fazenda Dona Esther, em Jussara (GO), ao longo do primeiro semestre de 2021. Neste mesmo ano, a Fazenda recebeu animais para recria oriundos de outra área neste mesmo município do Cerrado goiano: a Fazenda São Sebastião. Uma fiscalização da secretaria estadual do meio ambiente, realizada em 2015, identificou na propriedade o desmatamento ilegal de 560 hectares de vegetação nativa.

O Minerva afirma que a Fazenda Dona Esther está habilitada para comercialização com suas unidades de abate, de acordo com os critérios estabelecidos pela empresa. Sobre as fazendas fornecedoras de gado para fornecedores diretos, a companhia informou apenas que elas não fazem parte do seu cadastro de fornecedores.

“É importante também destacar que atualmente não há dados e estatísticas acessíveis e confiáveis sobre a cadeia de rastreabilidade completa de gado para determinar o número de fornecedores indiretos no Brasil”, complementa o frigorífico. O Minerva informa ter iniciado testes com a ferramenta Visipec, que avalia os riscos relacionados ao elo da cadeia, e que foi desenvolvida pela Universidade de Wisconsin em parceria com a National Wildlife Federation (NWF). Os resultados preliminares, segundo a empresa, apontaram mais de 99% de conformidade nas fazendas indiretas de nível 1 com os critérios definidos pelas Boas Práticas do Grupo de Trabalho dos Fornecedores Indiretos (GTFI).

Do Brasil para o mundo

As plantas de abate citadas no boletim Monitor são todas importantes unidades exportadoras. Através delas, a carne brasileira chega inclusive às prateleiras de gigantes do varejo internacional. A Repórter Brasil identificou exemplos dessa realidade durante pesquisas realizadas em supermercados dos Estados Unidos e na União Europeia.

Entre os varejistas visitados, o Lidl e o METRO se destacaram no segmento de carnes “in natura”. Durante as pesquisas, foram encontrados cortes nobres de origem brasileira em lojas europeias de ambas as redes.

A rede Lidl está presente em 31 nações europeias, além dos Estados Unidos. O grupo Schwarz, dono da rede e de outras bandeiras de supermercados, é apontado em diversos rankings como a maior corporação varejista da União Europeia.

Procurado pela Repórter Brasil, o grupo ressaltou que mais de 90% do bife vendido pelo Lidl é de origem europeia. Disse, ainda, que a rede está comprometida com a meta de manter cadeias de fornecimento livres de desmatamento. “Nós entendemos a importância de manter florestas e ecossistemas naturais saudáveis, para as pessoas, o planeta, e para os negócios. Nesse contexto, nos comprometemos a atingir o desmatamento zero e nenhuma conversão (de matas nativas) até 2025”, afirma o grupo Schwartz.

Assim como o Lidl, o METRO ressalta que a maior parte dos seus produtos de carne bovina tem origem regional, especialmente na Europa. Mesmo assim, afirma integrar diversas iniciativas – como a Forest Positive Coalition, do Consumer Goods Forum (CGF) – para combater o desmatamento associado ao setor.

A empresa destaca ainda integrar o grupo de apoio do Manifesto do Cerrado, que apela ao governo brasileiro por melhores medidas de proteção às florestas e aos povos indígenas. “Estamos estabelecendo um roteiro e estamos em discussões com grandes frigoríficos e comerciantes de carne para trabalhar em cadeias de abastecimento que sejam livres de desmatamento e violação dos direitos humanos”, afirma a empresa.

Carne enlatada e beef jerky são outros produtos exportados por estas industrias brasileiras. Itens do gênero foram identificados sendo vendidos por diversos varejistas globais, como, por exemplo, a Albert Heijn, maior rede de supermercados da Holanda.

“Albert Heijn está empenhada em prevenir o desmatamento e violações de direitos humanos em nossas cadeias de suprimentos de marca própria. No entanto, o produto ao qual você está se referindo (carne enlatada) não é um produto de marca própria”, diz a empresa. O varejista ressalta, no entanto, que também espera a adoção de boas práticas por fornecedores de produtos de marcas independentes.

Também citada no relatório, a rede britânica Sainsbury’s, uma das maiores cadeias de supermercados do Reino Unido, disse apoiar os acordos setoriais em voga para acabar com o desmatamento na Amazônia e no Cerrado. “Se identificarmos fornecedores que não estão dispostos a reconhecer problemas com sua produção ou a trabalhar juntos para remediá-los, revisaremos nosso relacionamento comercial com eles e romperemos os laços, se necessário”, diz o varejista.

O grupo Carrefour, de origem francesa, afirmou utilizar uma ferramenta de geomonitoramento que verifica se suas compras não são oriundas de fazendas em regiões desmatadas, unidades de conservação ambiental, terras indígenas, áreas embargadas por crimes ambientais ou de áreas com presença de trabalho escravo. “Reuniões regulares são realizadas para engajar os fornecedores nos esforços para o Desmatamento Zero e uma governança interna foi criada para acompanhar a implementação desta política”, diz o grupo. Tais políticas, desenvolvidas originalmente pela subsidiária do Carrefour no Brasil, devem ser, segundo o grupo, aplicadas de forma semelhante em outras regiões de atuação do varejista.

Já o varejista alemão REWE destacou estar há anos comprometido com a proteção da floresta tropical e a defesa dos direitos humanos na Amazônia. Disse, ainda, ser signatária de cartas e manifestos em defesa da região e também do Cerrado, outro bioma brasileiro afetado por altos índices de desmatamento. “O Grupo REWE não comercializa carnes frescas de marca própria do Brasil em suas gamas de produtos“, ressaltou ainda o grupo.

A resposta na íntegra de todos os varejistas que responderam à Repórter Brasil pode ser acessada aqui.

APOIE

A REPÓRTER BRASIL

Sua contribuição permite que a gente continue revelando o que muita gente faz de tudo para esconder

LEIA TAMBÉM