Ao longo de quase todo o mês de setembro, um grave conflito fundiário envolvendo empresários e quilombolas tomou conta dos noticiários do Maranhão – e tudo começou por conta de uma licença ambiental concedida pelo governo do Estado envolta em irregularidades.
No dia 11, quilombolas do território Tanque da Rodagem/São João, zona rural do município de Matões (450 km de São Luís), apreenderam dois tratores e um correntão que estavam sendo usados pelos empresários Eliberto Luiz Stein e Silvano Marcelo de Oliveira, do Paraná, para desmatar grandes áreas do Cerrado maranhense. Para denunciar a devastação e chamar a atenção do poder público, os quilombolas fecharam a rodovia MA-262 em protesto.
Eles tinham certeza de que os empresários não possuíam licença para desmatar a área, que é reivindicada pelos quilombolas em processo de titulação junto ao Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) desde 2013. Estavam enganados. Dois meses antes da devastação, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema) havia reeditado, em favor de Stein e Oliveira, uma licença para cultivo de eucalipto que antes pertencia à Suzano Papel e Celulose, de quem os empresários alegam ter comprado a fazenda em maio.
Essa autorização ambiental usada pelos empresários para a destruição, entretanto, está envolta em mistério, o que levanta suspeita sobre o trabalho da Sema, segundo fontes ouvidas pela Repórter Brasil. A primeira incógnita é: a reportagem teve acesso a duas versões da licença, só que com datas diferentes. Em um dos documentos, consta que a autorização foi concedida em 7 de julho, apenas 24 horas após os empresários terem registrado a fazenda em cartório. Já o segundo documento, entregue a um advogado que representa os quilombolas, mostra a data de 31 de agosto. A Repórter Brasil buscou no Diário Oficial do Estado do Maranhão a publicação da renovação da licença, como obriga a Resolução 6 do Conama (Conselho Nacional de Meio Ambiente), mas não encontrou.
Outra irregularidade desta licença é o fato de as comunidades quilombolas não terem sido ouvidas em nenhum momento antes da reedição do documento, como obriga a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), da qual o Brasil é signatário.
Por conta de conflitos como estes, a Sema e o Estado do Maranhão vêm sendo alvo de ações judiciais – requerendo justamente mais transparência e o cumprimento de normas internacionais. Em uma delas, de 26 de novembro, a Defensoria Pública do Estado, a Fetaema e a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos ajuizaram uma ação contra o Estado do Maranhão pedindo a suspensão dessas autorizações. Na última sexta (10), o juiz Douglas de Melo Martins, titular da Vara de Interesses Difusos e Coletivos de São Luís, acatou o pedido e determinou a suspensão de todas as licenças ambientais que não tenham sido precedidas de consulta aos povos tradicionais afetados. A Justiça também determinou que nos próximos licenciamentos, as comunidades sejam consultadas previamente.
Antes disso, em maio, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação civil pública contra o Estado do Maranhão por conta da falta de transparência sobre informações ambientais no site da Secretaria de Meio Ambiente. Em setembro, uma decisão do juiz da 8ª. Vara Federal Ambiental Agrária determinou que a secretaria disponibilize em seu site, de forma pública, livre e independente de cadastro prévio ou senha, licenças ambientais concedidas e em tramitação, estudos de impacto ambiental, autos de infração e penalidades impostas. Ainda de acordo com a decisão, os dados devem ser atualizados mensalmente.
O que se seguiu ao protesto feito pelos quilombolas em setembro parece filme de ficção. Na mesma noite do bloqueio à rodovia, em 11 de setembro, jagunços armados montaram um bloqueio próximo ao dos quilombolas ameaçando retomar o maquinário alugado pelos empresários. Os dois bloqueios duraram cinco dias, com a constante ameaça dos homens armados e a chegada de mais jagunços, incluindo um guarda municipal à paisana.
Em 14 de setembro, a Polícia Militar recolheu o maquinário, que foi devolvido aos empresários sem qualquer procedimento de investigação. Os jagunços fugiram. Ninguém foi punido e não houve apuração do caso até o momento, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), que acompanha o conflito em defesa dos camponeses.
Na contestação que fazem à ação de reintegração de posse ajuizada pelos quilombolas, os advogados dos empresários afirmam que a polícia “simplesmente providenciou a restituição de todo o maquinário aos requeridos”, já que “não foi encontrada nenhuma irregularidade ou qualquer destruição da vegetação”, e que eles “passaram a explorar a área sob a devida licença ambiental.”
Procurada, a Sema informou que “será feita análise técnica dos processos de licenciamento e, caso seja identificado em alguma área de conflito, a licença será suspensa até ser concedida a autorização prévia de consulta livre”. A secretaria disse ainda que o governador Flávio Dino (PSB) proibiu, em 27 de julho, a concessão de licenças ambientais em áreas de comunidades tradicionais.
A Sema não respondeu aos questionamentos sobre as demais ações judiciais e as violações aos quilombolas. Os empresários foram procurados por meio de seus advogados, sem retorno.
Para Diogo Cabral, advogado da Fetaema (Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras do Estado do Maranhão) e pesquisador da Universidade Estadual do Maranhão, a expedição de licenças a empreendimentos sobrepostos a territórios tradicionais e a falta de fiscalização tem gerado “um verdadeiro desastre ambiental e social”.
“O governo do Estado tem todos os dados relativos a conflitos agrários do Maranhão através da Coecv (Comissão Estadual de Combate à Violência no Campo e na Cidade). Ou seja, a Sema sabe da existência desses conflitos nessas comunidades. Ao meu ver, existe forte indício de ato de improbidade administrativa, inclusive nessas licenças que são expedidas, e que deveria haver uma investigação criminal”, alerta o advogado.
Apesar de a Sema não ter informado quantas serão as licenças afetadas pela decisão judicial da última sexta, a comissão de combate à violência estima que existam cerca de 30 autorizações irregulares concedidas em áreas de comunidades tradicionais. Além disso, a federação dos trabalhadores rurais calcula existirem 70 comunidades rurais, localizadas em 13 municípios maranhenses, em situação de conflito.
Violência sistêmica
Esta não é a primeira vez que uma licença expedida pela Secretaria de Meio Ambiente do Maranhão agrava conflitos e violações em territórios tradicionais.
Em abril de 2018, a pasta concedeu autorização para que a então Companhia Energética do Maranhão (Cemar), hoje Equatorial, instalasse linhas de transmissão de energia dentro do território indígena do povo Akroá-Gamella, na zona rural do município de Viana. O território está em processo de demarcação junto à Funai (Fundação Nacional do Índio) desde 2014.
Além de o governo do Maranhão não ter consultado a comunidade sobre o empreendimento, a atribuição de licenciar empreendimentos sobrepostos a territórios indígenas é do Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente). Em janeiro de 2019, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou à Sema que se abstivesse do licenciamento em favor do órgão federal. O governo maranhense ainda não acatou a recomendação, segundo a assessoria jurídica do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que acompanha o caso.
Em abril deste ano, a Funai (Fundação Nacional do Índio), que deveria proteger os indígenas brasileiros, enviou um ofício à Sema recomendando o andamento do licenciamento ambiental e a finalização da obra. Na manhã do último dia 18 de novembro, a Equatorial invadiu o território Akroá-Gamella em companhia de jagunços armados e de cerca de 30 policiais militares para dar sequência ao ofício da Funai. Segundo uma testemunha Akroá-Gamella, houve muita violência por parte da polícia contra os indígenas. “Entraram na casa dos nossos parentes sem mandado de busca e apreensão, ofenderam e machucaram nossos parentes com chutes na cara, com pisões nas costas. Tinha parente que não estava nem com dois meses de operado e foi arrastado no chão, no piche quente”.
Naquele dia, celulares e máquinas fotográficas dos indígenas foram tomados pela polícia, e 16 Akroá-Gamella foram presos – 12 homens, um jovem menor de idade e três mulheres. Todos foram colocados à força em camburões superlotados, segundo relatos dos indígenas, e levados para a delegacia. Oito deles foram liberados, mas os demais foram autuados por roubo qualificado e dano ao patrimônio. Foram enviados à Unidade Prisional de Ressocialização de Viana, onde tiveram a cabeça raspada. À noite, após audiência de custódia, o juízo de Viana decidiu pela liberdade provisória de todos eles. A saída da unidade prisional aconteceu apenas na tarde do dia 20.
A reportagem pediu informações à Sema e à Secretaria de Segurança Pública sobre este caso, mas ainda não teve retorno.
As violações do governo maranhense, da Funai e da Equatorial contra os Akroá-Gamella foram denunciadas dia 20 de novembro ao Representante Regional para o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) na América do Sul, Jan Jarab. Acompanhado de Yuri Costa, presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), Jarab ouviu, por videochamada, duas representantes do povo Akroá-Gamella.
Jarab e Costa estavam em missão no Território Quilombola Santa Rosa dos Pretos, na zona rural de Itapecuru-Mirim, ouvindo lideranças sobre a situação de direitos humanos de comunidades e povos tradicionais no Maranhão. Desde 2017, Santa Rosa dos Pretos também tem vivenciado violações de direitos agravadas pela concessão de licença ambiental a um empreendimento irregular.
Trata-se da duplicação da rodovia BR 135, que liga São Luís (MA) a Belo Horizonte (MG). A obra atravessa mais de 20 comunidades quilombolas, mas as autorizações foram concedidas pelo governo do Maranhão, mais uma vez, sem a consulta prévia aos afetados.
Em outubro de 2017, lideranças quilombolas conseguiram paralisar máquinas a serviço do Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Trânsito) que desmatavam áreas dentro do território (em processo de titulação na fase final parado há mais de seis anos no Incra). Graças a denúncias feitas pelos moradores, as obras foram suspensas ainda em 2017, e uma ação civil pública foi ajuizada pelo MPF em 2019.
“Santa Rosa dos Pretos é um dos quilombos mais antigos do Maranhão e tem empreendido uma resistência histórica face aos grandes empreendimentos que atravessam [o território], como a Estrada de Ferro Carajás [da mineradora Vale] e fazendas. O núcleo do quilombo pode desaparecer por conta da duplicação da BR 135, que passa exatamente sobre as casas, templos religiosos e um conjunto de sítios da comunidade”, informou o advogado Diogo Cabral, que assessora os quilombolas neste caso.
As obras de duplicação seguem avançando em trecho de 18 km entre os municípios de Bacabeira e Santa Rita, distante 30 km do quilombo, com desmatamento, soterramento de igarapés e destruição de casas.
Desaparecimento dos peixes
Vizinhos a Santa Rosa dos Pretos, outros territórios quilombolas também vêm sofrendo os impactos causados pela Sema com licenças expedidas à empresa EDP Brasil para a instalação de linha de transmissão de energia elétrica. As torres ligam São Luís aos municípios de Bacabeira, Santa Rita, Anajatuba, Itapecuru-Mirim e Miranda do Norte, e serão usadas, segundo a EDP, para fornecer energia para a região portuária e industrial da capital maranhense.
“Houve uma devastação de campos inundáveis de centenas de comunidades tradicionais. O impacto sobre a natureza e as comunidades foi tão grande que essas pessoas passaram a ser submetidas a uma pressão nutricional, tendo em vista que o peixe, que era o alimento fundamental, simplesmente desapareceu por conta da instalação da linha de transmissão sobre o campo inundável, numa área de preservação ambiental”, informa Cabral. “Não houve, no licenciamento ambiental expedido pela Sema, a identificação de moradores quilombolas e pescadores. Nesse processo, eles também não foram ouvidos”.
Questionada pela DPU sobre a ausência de consulta prévia aos povos tradicionais afetados pelo empreendimento, a Sema respondeu, em 2019, que a EDP não realizou o procedimento porque não identificou comunidades tradicionais no traçado da área diretamente afetada.
Ou seja, além de não ouvir os povos tradicionais antes de conceder a licença ambiental, a Sema tem negado a existência de povos tradicionais no Estado.
Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2020 2611 0/DGB0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil