Maior marca plus size do Brasil perde na Justiça mas não paga trabalhadores escravizados

Program foi condenada por impor jornadas de 16 horas em oficina de costura e descontar alimentação, água e luz de imigrantes bolivianos, mas recorreu; gestante chegou a ficar sem comida como represália por buscar atendimento médico
Por France Júnior
 18/01/2022

Enquanto os estilistas da Program, que diz ser a “maior rede plus size do Brasil”, viajavam para os maiores centros de moda mundiais “em busca de inspiração e novas ideias”, os costureiros bolivianos que produziam peças para a marca eram submetidos a tratamento desumano. A empresa foi condenada pela Justiça em março do ano passado, mas o cativeiro dos trabalhadores resgatados não acabou: vítimas de possível servidão por dívidas, jornadas diárias de 16 horas de trabalho e até privação de alimentos, eles ainda não receberam nenhuma indenização.

O resgate aconteceu em setembro de 2020, em uma oficina de costura no bairro Casa Verde Alta, em São Paulo, quando fiscais encontraram três trabalhadores em condições análogas à escravidão. Entre eles estava uma mulher, no sétimo mês de gestação, impedida de acessar serviços de saúde. “Quando os patrões descobriram que ela estava grávida, não queriam deixar ela parar de trabalhar”, revelou à Repórter Brasil um dos bolivianos resgatados, que é o pai da criança.

Segundo o relatório de fiscalização, a família precisava compensar aos finais de semana as horas em que a grávida saía da oficina para fazer o pré-natal. Em uma ocasião em que precisou ser atendida na emergência de uma maternidade e, com dores, não pôde trabalhar, a mulher foi penalizada com restrição de alimentação: ela e suas três filhas receberam apenas chá como jantar em uma noite, somente o café da manhã no dia seguinte e, no terceiro dia, o jejum foi total.

Program tem 33 lojas físicas em São Paulo, uma delas no Brooklin (Foto: Reprodução/ Google Maps)

Apesar de dramático, esse relato não foi incluído entre os agravantes que levaram a juíza do Trabalho Cristina de Carvalho Santos a condenar a empresa por trabalho escravo, por falta de provas. Mas nem foi preciso: a sentença obriga a Anfa Indústria e Comércio de Confecções, detentora da marca Program, a pagar indenizações no valor máximo legal aos imigrantes dada “a intensidade do sofrimento ou da humilhação”.

Os trabalhadores precisavam cumprir jornadas ilegais de 16 horas ao dia e não estavam registrados formalmente como empregados. O salário médio era de R$ 800 – bem abaixo do piso da categoria, de R$1.508,20 – e havia descontos para pagar as contas de água e luz do local, o aluguel do espaço e até a comida que recebiam – forte indício de que estavam submetidos a um regime de servidão por dívidas.

“Quando era necessário, trabalhávamos até as 3h da madrugada. E os patrões não pagavam os salários. Eu fiquei 3 meses sem receber”, confirmou à Repórter Brasil um dos bolivianos resgatados. Quando os prazos de entrega das encomendas era curto, também eram obrigados a costurar aos domingos.

Na sentença, a juíza Santos também determinou o ressarcimento de todos os direitos trabalhistas que foram negados ao grupo, como remuneração proporcional ao piso da categoria e às horas efetivamente trabalhadas, 13º salários, férias, recolhimento do FGTS e do INSS, e benefícios como o auxílio-creche. O valor total da condenação chega a R$367.083,44.

Na oficina, janelas permaneciam trancadas e cobertas com pano, para obstruir a visão externa do local de trabalho (Foto: Secretaria de Inspeção do Trabalho/Ministério do Trabalho)

Entretanto, passados quase um ano e meio do resgate por trabalho escravo e dez meses desde a condenação, os três bolivianos ainda esperam o pagamento de seus direitos trabalhistas e uma indenização por danos morais, pois a empresa recorreu da decisão. “A Anfa alegou que apenas terceirizava o serviço de costura e que não tinha responsabilidade pela contratação dos três trabalhadores resgatados”, afirma o defensor público federal João Paulo Dorini, que representa os trabalhadores na ação. Mas os próprios gestores da oficina, contratados pela Program, confirmaram que o local trabalhava de maneira exclusiva para confecção de peças da marca.

Voltada ao público feminino, a Program está presente em mais de dez estados brasileiros, tendo 33 lojas físicas só em São Paulo. A marca também opera no e-commerceno site da marca, os shorts que eram costurados pelos bolivianos submetidos a trabalho escravo custam entre R$ 80 e R$ 175, a peça.

A Repórter Brasil entrou em contato por e-mail e por telefone com a Anfa, mas não obteve retorno.

Indícios de tráfico de pessoas

Todas as situações descritas no relatório de fiscalização na oficina da Program se enquadram nas definições dadas pelo Protocolo de Palermo (Decreto 5.017 de 12 de março de 2004) para tráfico de pessoas, prática que consiste em recrutar, transportar e alojar pessoas de forma fraudulenta, enganosa e abusiva visando a exploração de sua mão de obra em regime de trabalho análogo ao de escravo.

Os três trabalhadores viviam no mesmo endereço da oficina, no bairro Casa Verde Alta, em São Paulo. Foram recrutados pelo Facebook e sequer tinham documentos nacionais. Só descobriram as condições de trabalho e moradia ao chegarem ao Brasil. Eram duas mulheres e um homem, casado com uma delas. Quatro crianças, suas filhas, dividiam com os trabalhadores quartos com instalações insalubres, segundo a avaliação do Ministério da Economia, na época responsável pela fiscalização.

As chaves do prédio ficavam sob a guarda do gestor da oficina e os bolivianos não tinham permissão para sair do local. Como as mães cumpriam jornadas exaustivas de trabalho, uma menina de 12 anos ficava responsável por tomar conta das outras crianças, e um bebê de sete meses era amamentado no meio da oficina.

‘Salta aos olhos que a demandada era sabedora da situação irregular da oficina’, defende, em sua sentença, a juíza Santos.

Ela cita o depoimento da encarregada da fiscalização das oficinas terceirizadas da Program, no qual admite que há costureiros sem carteira assinada trabalhando em outras oficinas da empresa. O testemunho também sugere falhas no controle da marca sobre suas fornecedoras: a funcionária que deveria averiguar as condições de trabalho diz nunca ter visitado a oficina flagrada com costureiros em situação análoga à escravidão, embora o espaço funcionasse havia mais de três anos quando foi fechado.

De fato, a fiscalização também identificou mais cinco oficinas ligadas à Program, localizadas em zonas periféricas da cidade de São Paulo, que mantinham trabalhadores na informalidade. A descoberta foi feita cruzando dados disponíveis nos sistemas públicos: apesar de haver registro de recebimento de cortes de tecido, as unidades não tinham costureiros registrados.

Fiscalização provou que oficina trabalhava de forma exclusiva para marca Program, maior rede plus size do Brasil (Foto: Secretaria de Inspeção do Trabalho/Ministério do Trabalho)

Segundo os auditores, apesar de a Program ser uma marca consolidada, “de grande valor comercial”, as oficinas responsáveis pela costura são “na verdade, meros intermediadores de mão de obra barata e precarizada”. 

Não é o único caso de violação de direitos dos trabalhadores na indústria da moda: o aplicativo Moda Livre elabora um ranking e expõe as marcas que exploram mão de obra escrava em suas operações.

Como a marca de roupas plus size recorreu, ainda não há condenação definitiva. O julgamento em segunda instância estava marcado para setembro, mas foi adiado e ainda não há nova data para ocorrer.

Nesse meio tempo, uma das bolivianas voltou ao seu país. Já o casal com as quatro filhas (três que moravam na oficina mais a recém-nascida, da qual a mãe estava grávida no dia da fiscalização) continuam no Brasil, sem renda formal, vivendo com o auxílio do Sistema de Assistência Social do município de São Paulo. A defensoria pede que a Justiça conceda a eles o adiantamento das verbas rescisórias.


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