Ministério da Saúde cancelou compra de 14 milhões de testes de antígeno em 2021; exame está em falta hoje no país

Tribunal de Contas da União afirma que pasta demorou cinco meses entre idas e vindas para abrir um pregão eletrônico, que acabou cancelado. Órgão de controle critica a não implementação da testagem em massa no combate à Covid
Por Diego Junqueira
 17/01/2022

A oferta de testes rápidos de antígeno para Covid no SUS poderia ter sido maior caso o Ministério da Saúde tivesse efetivado a compra de 14 milhões de exames em 2021, cujo processo começou em março e se arrastou por mais de cinco meses até ser cancelado. Com o surto da variante ômicron, algumas cidades enfrentam hoje escassez de testes – tanto nos postos de saúde como em farmácias e laboratórios.

O processo de aquisição destes exames foi marcado por falhas internas e “idas e vindas” entre dois departamentos do ministério na elaboração dos documentos para o pregão eletrônico, que nunca chegou a ser aberto. O caso foi investigado pelo TCU (Tribunal de Contas da União), que verificou “lentidão” neste e em outros processos de compra de insumos urgentes para o combate à Covid (como medicamentos e ventiladores pulmonares). 

Artigo de luxo: país recebeu cerca de 115 milhões de testes rápidos de antígeno até o final de 2021, sendo a maior parte para serviços privados de saúde (Foto: Breno Esaki/Agência Saúde DF)

O órgão de controle também afirmou haver desconhecimento dos servidores da pasta em relação aos procedimentos internos para a realização de pregões eletrônicos, segundo relatório da área técnica publicado em dezembro. 

No caso dos 14 milhões de testes rápidos de antígeno, o ministério informou ao tribunal que a compra foi suspensa pois um outro processo de aquisição fora iniciado, desta vez com a Fiocruz, para adquirir 60 milhões de unidades. No entanto, para especialistas ouvidos pela Repórter Brasil, o país deveria ter adquirido mais exames para executar um plano de testagem em massa. 

O Ministério da Saúde chegou a prometer em maio do ano passado que enviaria entre 10 e 26 milhões de testes de antígenos mensalmente aos estados, com a finalidade de implementar um programa de testagem em massa, previsto para iniciar em setembro. Mas sem realizar o pregão e dependendo unicamente da Fiocruz, a meta não foi atingida. A pasta só conseguiu distribuir cerca de 30 milhões de unidades ao longo de todo o ano – o suficiente para testar apenas 14% da população uma única vez. 

No relatório, a área técnica do TCU destacou ainda que o Ministério da Saúde levou 11 meses até apresentar à corte um plano de testagem em massa, o que ocorreu apenas em setembro. “O ritmo para aprovação do programa de testagem, bem como das aquisições dos testes, caracteriza-se por ser moroso, o que acaba por fragilizar a prioridade que a ação necessita ter dentro de um cenário pandêmico”, diz o documento.

O ministro Vital do Rêgo, relator do processo, destacou em seu voto “a necessidade de se promover a testagem em massa da população, com ênfase no incremento do número de testes aplicados” e na vigilância genômica para identificação de novas variantes. Tais medidas seriam pilares, juntamente com a vacinação, para o retorno à vida social, na avaliação do ministro.

“O Brasil, apesar de ocupar a terceira posição no ranking de infecções por covid-19, é apenas o 125º colocado quando se trata de proporção de testes por milhão de habitante”, disse o ministro em dezembro, quando tínhamos a marca de 615 mil mortos pela doença. 

Até hoje o país não conseguiu implementar um programa de testagem adequado, segundo especialistas. “A todo momento o governo achava que não ia precisar investir em testes, que a pandemia ia acabar logo. Subestimaram a importância de fazer diagnóstico. Isso só poderia ser feito com uma quantidade muito maior de testes distribuídos”, diz o médico e advogado sanitarista Daniel Dourado, pesquisador do Cepedisa/USP e da Universidade de Paris.

TCU vê “lentidão” na compra de insumos para o combate à covid-19 e critica a não implementação de testagem em massa (Foto: Breno Esaki/Agência Saúde DF)

“O Ministério da Saúde não investe em testagem, nem de antígeno nem de nenhum outro. Usa o teste apenas de forma assistencial, sem compreender o papel da testagem no controle da pandemia. Dizer que começaram tarde [a enviar testes de antígeno] seria um elogio. A verdade é que nunca começaram”, critica o epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas.

Artigo de luxo 

Por serem mais baratos que os testes do tipo RT-PCR (padrão-ouro para detectar a Covid), fáceis de usar e com resultados confiáveis em 15 minutos, os testes de antígeno se tornaram uma ferramenta importante para o diagnóstico inicial dos casos suspeitos, permitindo rapidamente o isolamento dos contaminados, reduzindo a transmissão do coronavírus

A oferta desses testes, porém, está concentrada nos serviços privados, com oferta maior para quem tem condições de pagar cerca de R$ 100 (ou mais) por um exame. “O Brasil nunca teve uma política decente de testagem, capaz de desacelerar a pandemia. Nesse cenário, os testes de antígeno viraram sim um luxo de quem pode pagar”, afirma Hallal.

Desde o segundo semestre de 2020, quando surgiu a tecnologia, até o final de 2021, as fabricantes privadas comercializaram 69 milhões de unidades no país, segundo a CBDL (Câmara Brasileira de Diagnóstico Laboratorial) à Repórter Brasil. Os principais clientes foram do mercado privado, como farmácias, laboratórios e hospitais, além de governos estaduais e municipais. 

O Ministério da Saúde, principal comprador para a rede pública, só começou a adquirir os testes em 2021. Ao todo, a pasta recebeu cerca de 44 milhões de unidades ao longo do ano passado – 3,2 milhões por meio da OPAS (Organização Panamericana de Saúde) e 41 milhões da Fiocruz, segundo as instituições. Do total, em torno de 30 milhões foram distribuídos em 2021.

Ministério da Saúde prometeu enviar aos estados até 26 milhões de testes de antígeno mensalmente, mas em 2021 as entregas totalizaram cerca de 30 milhões (Foto: Breno Esaki/Agência Saúde DF)

“A oferta [dos testes] atende mais a uma regra de mercado do que ao interesse público”, diz Claudio Maierovitch, médico sanitarista da Fiocruz Brasília e ex-presidente da Anvisa, a respeito da baixa oferta no SUS. 

A alta demanda na rede privada fez com que farmácias paulistanas suspendessem o agendamento para realização de testes de Covid por falta de estoque. A Abramed (Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica) passou a recomendar a realização de exames apenas em pacientes mais graves, assim como hospitais e laboratórios da capital.

Porém, neste momento, os testes deveriam estar amplamente disponíveis não apenas para quem tem sintomas, mas para todos que suspeitam estar infectados, diz Maierovitch. “A melhor coisa que os serviços de saúde têm a fazer é identificar quem tem o vírus e adotar as medidas preventivas”.

Em meio ao risco de desabastecimento, o governo agora corre para enviar mais exames aos estados. Na sexta-feira (14), iniciou a distribuição de 15 milhões de testes de antígeno – outros 13 milhões devem ser remetidos até o fim do mês. Após a publicação da reportagem, o Ministério da Saúde enviou nota informando que está negociando com a Fiocruz a aquisição de novos exames, que executa a estratégia de rastreamento e monitoramento dos contatos dos casos positivos desde o início da pandemia e que realizou a capacitação de profissionais, em novembro e dezembro, para expandir essa estratégia.

O ministro da Saúde Marcelo Queiroga afirmou na terça (11) que só irá adquirir novos testes quando houver garantia de que os atuais estoques sejam utilizados. “Não posso chegar e comprar 300 milhões de testes sem que haja a garantia que esses exames serão realizados lá na ponta”, disse em entrevista à CNN Brasil.

Outra crítica que especialistas fazem é referente ao fato de o governo não ter liberado os autotestes, tipo de exame que é feito pelo próprio paciente, sem a necessidade de um profissional. O autoteste é vetado hoje por regulamentação da Anvisa, mas a norma contém uma brecha que permite a liberação desse exame, desde que o Ministério da Saúde elabore uma política pública de uso – o que nunca aconteceu desde o início da pandemia, há quase dois anos. Este pedido foi feito apenas na última quinta-feira (13).

“O autoteste poderia ter sido pensado antes, pois já é adotado em outros países há muito tempo”, diz Dourado, sugerindo que os exames fossem distribuídos diretamente à população, como acontece na França e no Reino Unido.


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