Polícia do Pará ignora conflitos por terra e investiga passado de vítima para explicar chacina

Com dificuldades de obter informações, MPF cogita federalizar investigação e apura a falta de respostas das autoridades aos questionamentos de entidades de direitos humanos; família de ‘Zé do Lago’ foi encontrada morta em 9 de janeiro, em São Félix do Xingu (PA)
Por Pablo Pires Fernandes
 24/02/2022

Grilagem, desmatamento ilegal, invasão de terras indígenas, garimpos: a quantidade de ilegalidades em São Félix do Xingu (PA) é tanta que o assassinato da família de José Gomes, ambientalista conhecido como “Zé do Lago”, no último dia 9 de janeiro, não pode ser considerado caso isolado. Mas, apesar da violência presente na cidade, a polícia parece estar mais interessada em investigar o passado da vítima – de duas décadas atrás.

“A informação que chegou é a de que a vítima tinha um passado, há 20 anos, que estaria relacionado a crimes fundiários. Agora, pistolagem ou qualquer outra atividade, ainda não temos conclusões específicas sobre isso”, afirmou o delegado Cláudio Galeno, da Divisão de Homicídios de Belém, em declarações publicadas pelo site DOL.

O interesse da polícia em vasculhar o passado longínquo do ambientalista contrasta com as suspeitas que circulam pela região. “As pessoas dizem que os mandantes são aqueles cujo nome não se pode falar”, declarou uma fonte local à Repórter Brasil sob a condição de anonimato. À boca pequena, moradores de São Félix relatam que, ali, uma mera oferta por uma terra pode vir acompanhada do recado: “ou compro de você ou da sua viúva”. Com medo, são poucos os que se dispõem a comentar o crime.

Além de José Gomes, morreram na chacina sua mulher, Márcia Nunes Lisboa, e a filha dela, Joane; família atuava na preservação de tartarugas (Foto: Reprodução/Redes sociais)

O ambientalista vinha sendo pressionado para vender a terra onde vivia havia 20 anos, segundo a Folha de S.Paulo. De acordo com a reportagem, a pressão viria de Francisco Torres de Paula Filho. “Torrinho”, como é conhecido o presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de São Félix do Xingu, é irmão do prefeito da cidade, João Cleber de Souza Torres (MDB) – um aliado do governador do Pará, Helder Barbalho. À Folha, Torrinho disse que o ambientalista morava dentro de sua área, mas que concordava com sua presença e nunca tentou expulsá-lo.

A terra onde Zé do Lago vivia é parte da Fazenda Baú, área reivindicada por Francisco Torres. Tanto Torrinho como João Cleber possuem histórico de acusações de grilagem (roubo de terra) e de serem mandantes de crimes em conflitos agrários no sul do Pará (leia mais abaixo).

A Repórter Brasil enviou questionamentos à Divisão de Homicídios de Belém, que conduz o inquérito, e não obteve retorno. Em nota, a Polícia Civil do Pará informou apenas que “o triplo homicídio ocorrido em São Félix do Xingu está sendo investigado” e que “diligências estão sendo feitas para que o inquérito seja concluído dentro do prazo necessário para a elucidação do fato”. A polícia não informa se há outra linha de investigação além do passado distante da vítima, mas chama a atenção o fato de que nem o Ministério Público Federal (MPF) está conseguindo acesso a informações sobre o inquérito.

Em nota, a Procuradoria afirma que, em 14 de janeiro, pediu dados sobre o andamento do inquérito ao Núcleo de Apoio a Investigações da Polícia Civil, à Delegacia de Homicídios e à Polícia Militar do Pará, mas “apenas a PM respondeu aos ofícios, informando que ofereceu proteção policial aos familiares das vítimas da chacina. Sobre as investigações, o silêncio permanece”. Apontando para uma possível omissão por parte da Polícia Civil do Pará no caso da chacina, o MPF anunciou que cogita pedir a federalização da investigação e que abriu procedimento para apurar a falta de resposta aos pedidos de informação feitos por entidades defensoras dos direitos humanos. Questionada pela Repórter Brasil, a Polícia Civil do Pará não respondeu às críticas do MPF.

Vizinhos poderosos

A terra onde Zé do Lago vivia fica na Fazenda Baú. Com 4.996,84 hectares (o equivalente a 30 parques do Ibirapuera), essa fazenda é reivindicada pela Agropecuária Barra do Baú, uma das empresas de Torrinho, e consta como pendente no Cadastro Ambiental Rural (CAR) – ou seja, ainda falta documentação que comprove o direito à propriedade. O sistema é auto-declaratório e comumente utilizado por grileiros para se apossar de terras públicas. A fazenda de Torrinho acumula sete denúncias no MPF, por crimes ambientais e descumprimento de embargos do Ibama.

No entanto, seus interesses não se limitam à pecuária e à extração de madeira: dados da Agência Nacional de Mineração revelam suas pretensões de explorar o garimpo na região, sendo autor de 18 requerimentos de lavras em 2020. Destes, cinco foram indeferidos pela agência por se sobreporem a assentamentos e pelo menos 11 estão localizados em terras públicas.

Ao lado de seu irmão João Cleber, Torrinho aparece em um relatório de 2019 do MPF, que os aponta como comandantes do crime organizado na região de São Félix do Xingu. “À frente da cúpula agem e promovem a invasão, ocupação e grilagem de terras públicas; são donos da madeireira Impanguçu Madeira e Maginga. Pelo perigo que representam, são muito temidos na região”, diz o documento.

Francisco Torres de Paula Filho, conhecido como “Torrinho” (de vermelho), é proprietário da Fazenda Baú, onde fica a terra da família de Zé de Lago (Foto: João Laet/Repórter Brasil)

Assim como Torrinho, também o prefeito de São Félix do Xingu está entre os nomes mais citados quando se trata da grilagem no Pará. Dono de quase 12 mil cabeças e de uma fortuna acumulada de mais de R$ 15 milhões, João Cleber é proprietário da Fazenda Bom Jardim, localizada na margem esquerda do rio Xingu, bem em frente à área onde Zé do Lago vivia. Com 12.589,72 hectares, a terra do político registra pendências de regularização, por estar sobreposta com uma floresta pública, segundo levantamento do Greenpeace.

João Cleber também é citado pelo MPF, com base no depoimento de uma testemunha, por suposto envolvimento com a negociação de terras para terceiros no sul do Pará, ganhando a fama de “pessoa temida na região pela forma agressiva com que resolvia problemas”. 

Além da suspeita de grilagem de terras públicas e desmatamento ilegal, o político já foi citado em uma delação premiada como sendo o mandante da chacina que matou sete trabalhadores rurais e um comerciante em Vila Taboca, distrito de São Félix do Xingu, em 2003, segundo publicou a Folha de S.Paulo na época, com base no relatório do MPF. O crime estaria relacionado a uma disputa de terras envolvendo a Fazenda Ouro Verde, antiga propriedade do prefeito. Esse processo tramita na Justiça Federal em Tocantins, está sob sigilo, não inclui João Cleber como réu e ainda não foi concluído.

Em junho de 2016, João Cleber também foi denunciado pelo MPF pelo crime de exploração de trabalho escravo contra três trabalhadores na Fazenda Bom Jardim. Segundo o relatório, foram encontradas diversas irregularidades na propriedade, como ausência de pagamento de salário, alojamento em péssimas condições (sem energia elétrica, sanitários ou geladeira) e acesso a água passível de contaminação. Os trabalhadores ainda tinham que se deslocar 13 km para ir do local do trabalho até o alojamento. A Procuradoria pediu sua condenação, e o julgamento ainda não ocorreu.

O advogado Walteir Gomes Rezende, falando em nome de João Cleber e Torrinho, afirmou à Repórter Brasil que não há qualquer relação entre os dois empresários e a vítima. Rezende também criticou a atuação da “mídia do Sul” e o uso político de um “fato trágico” em ano eleitoral, pedindo cautela “para não prejudicar uma pessoa que é inocente”. “A polícia está trabalhando para esclarecer qual foi a motivação, o que ocorreu e o porquê”, declarou o advogado, detalhando um suposto passado criminal de Zé do Lago.

No caso da denúncia de trabalho escravo, o advogado disse que é apenas “uma acusação”. “Houve fiscalização em uma propriedade, houve algumas irregularidades administrativas, de ordem contratual, que foram todas sanadas.” Sobre o suposto envolvimento com a chacina de 2003, o advogado declarou que, “se é coisa do passado”, deveria existir uma ação penal. Sobre as pendências das fazendas no CAR, Rezende afirmou que a situação é comum no Pará, problema que atribui a uma “inconsistência do sistema”. “Os produtores rurais sofrem um grande problema de regularização do CAR”, disse o advogado, argumentando que, no passado, era preciso cortar a floresta para conseguir a titulação da terra, mas uma mudança na legislação em 2008, exigindo a preservação, dificultou a regularização fundiária de quem havia desmatado anteriormente. 

A chacina

A família de Zé do Lago foi encontrada cerca de três dias após a execução, em 9 de janeiro. Os corpos jaziam a menos de 20 metros um do outro, e no local foram recolhidas 18 cápsulas de arma de fogo. Além de José Gomes, de 61 anos, morreram no ataque sua mulher, Márcia Nunes Lisboa, de 39, e a filha dela, Joane Nunes Lisboa, de 17. 

Até o momento, a Polícia Civil do Pará interrogou familiares e amigos das vítimas, e a Justiça autorizou a exumação dos corpos. Ninguém foi preso ainda.

“A chacina se inscreve num padrão de violência no campo. Às vezes muda de forma, mas os assassinatos continuam”, afirmou uma fonte local, que não se identifica por temer retaliações.

Zé do Lago vivia em uma área bastante isolada, inserida na APA (Área de Proteção Ambiental) Triunfo do Xingu, que possui mais de 1,5 milhões de hectares e foi a mais desmatada em toda a Amazônia Legal nos últimos dois anos. “É uma região bastante crítica”, afirma Larissa Amorim, do programa de monitoramento do Imazon. “O desmatamento está desenfreado ali, sem qualquer planejamento.”

É a conservação da floresta que tornava a terra de Zé do Lago cobiçada: proprietários de fazendas desmatadas costumam procurar por áreas ainda preservadas para transformá-las em reserva legal e regularizar suas terras. Além de manter a floresta em pé, a família assassinada trabalhava voluntariamente na conservação da população de tartarugas e tracajás no rio Xingu.

Em São Félix do Xingu (PA), a violência e o desmatamento da Amazônia são impulsionados pelo avanço da pecuária e do garimpo ilegal (Foto: João Laet/Repórter Brasil)

Segundo Paulo Barreto, também do Imazon, o ciclo do desmatamento em São Félix do Xingu começa com a exploração ilegal do mogno, que estimula a abertura de estradas e, na sequência, a grilagem de terras – sobretudo públicas e indígenas. A pecuária é o passo seguinte, permitindo ocupar áreas mais distantes por causa da mobilidade do gado – São Félix abriga hoje o maior rebanho bovino do país, com 2,4 milhões de cabeças em 2020, segundo o IBGE. 

Ao ciclo da pecuária de São Félix do Xingu, tem se somado o garimpo ilegal, que nos últimos anos acelerou seu avanço sobre a floresta, com maquinário pesado e sob a proteção de armamento e apoios políticos. “O dinheiro ilegal do garimpo é lavado com a pecuária, criando um sistema em que a madeira, o garimpo e a pecuária alimentam um ao outro e, onde há esses três recursos, a violência aumenta”, aponta Barreto. 

A relação entre a expansão das atividades predatórias no município e violência no campo se reflete em números. Segundo dados da CPT, nos últimos 40 anos, 62 trabalhadores rurais e lideranças foram assassinados em São Félix do Xingu em conflitos agrários. “Em nenhum dos casos houve julgamento de algum responsável pelos crimes, portanto, a taxa de impunidade é de 100%”, diz nota da entidade.

“O índice de impunidade é muito alto, muito maior do que em outras regiões do país”, afirma José Batista Afonso, advogado da CPT na região. Ele explica que, mesmo quando chegam à Justiça, os processos acabam não sendo concluídos, por prescreverem antes. Nos raros casos de condenação, é comum que os autores não cumpram as penas.“Se fizer a pergunta [para as autoridades responsáveis por punir os crimes], vão alegar problemas geográficos, problemas financeiros, falta de pessoal. Mas, a nosso ver, isso está relacionado aos poderes econômico e político muito fortes. [Os criminosos] são pessoas que têm poder forte dentro da polícia e do Judiciário.”  


Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2020 2611 0/DGB0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil


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