De um local estratégico na aldeia Tekoa Ytu, Sonia Barbosa tem uma visão privilegiada do Pico do Jaraguá, o ponto mais alto da cidade de São Paulo. É dali que a indígena do povo Guarani observa se há indícios de fogo na mata. A qualquer sinal de fumaça, ela corre para pegar sua roupa antifogo, seus equipamentos e somar forças à brigada indígena do Jaraguá para proteger suas comunidades das queimadas que destroem a mata e assolam os moradores.
Um risco que se repete em dezenas de territórios indígenas Brasil afora: encurralados pelo fogo e desmatamento recorde, pelos cortes em série no orçamento para combate aos crimes ambientais e por um Estado que deveria prevenir os incêndios florestais e formar brigadas indígenas, mas que não investe para ampliar o contingente de brigadistas contratados. E é nesse cenário de salve-se quem puder que Sonia e outras mulheres indígenas vêm abrindo espaço nos ambientes majoritariamente masculinos. Elas demandam integrar esse time que tem como missão, segundo Sonia, de “acalmar o fogo”, seja na maior floresta tropical do mundo, seja no que restou de Mata Atlântica em São Paulo.
“Não adianta só a gente falar que protege a floresta, tem que atuar. E o melhor jeito pra isso é sendo brigadista. Na mata em fogo, a gente entra sem saber como vai sair. São muitos os riscos pois estamos na linha de frente, mas é gratificante”, diz a indígena Guarani. “Nosso pensamento é um só: o de acalmar o fogo. É como se a gente chegasse na queimada e falasse pro fogo: ‘calma, a gente vai te acalmar’, como um psicólogo. É com essa sabedoria que temos da natureza que combatemos o fogo.”
Relatório da Global Forest Watch (GFW) , produzido com exclusividade para a Repórter Brasil, mostra o tamanho do problema com as queimadas em territórios indígenas: até novembro de 2021 foram detectados 78.278 alertas de focos de incêndio. Na temporada anterior, foram 81.566 alertas. Apesar da aparente redução, o número continua alarmante quando considerada a quantidade de brigadistas que atuam nesses focos. Segundo estudo da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), em nota sobre a insuficiência das brigadas indígenas para conter a “temporada do fogo”, apenas 9 dos 25 territórios com as taxas mais elevadas de área queimada na Amazônia tinham brigadas formados e em atuação em 2021.
O levantamento, realizado em parceria com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), mostra que a quantidade de brigadistas passou de 630 em 2018 para 654 em 2021, número considerado irrisório pela instituição diante das ameaças contra os territórios em ascensão devido às políticas anti-indígenas do governo Jair Bolsonaro. Há dois anos, o Brasil protagonizou o “Dia do Fogo”, quando fazendeiros e empresários do sudoeste do Pará se articularam para queimar a floresta amazônica em áreas onde hoje há plantações de soja, conforme revelou a Repórter Brasil.
Os dados da GFW revelam também que a tragédia estava anunciada – e localizada. Isso porque das dez terras indígenas com mais focos de incêndio em 2021, oito já constavam no mesmo ranking feito no ano anterior: Araguaia, Kadiwéu, Pimentel Barbosa, Parabubure, Areões, Xingu, Raposa Serra do Sol e Apyterewa.
A situação vem se agravando desde 2020, quando instituições ligadas ao meio ambiente denunciam os cortes orçamentários, inclusive com os gastos na contratação de brigadistas temporários, numa redução de 58% em relação a 2019, caindo de R$ 23,78 milhões para R$10 milhões. Para este ano a situação tende a continuar crítica, pois o presidente Jair Bolsonaro cortou R$ 8,6 milhões em verbas para combate ao desmatamento que seriam utilizadas na prevenção e no controle de incêndios florestais.
E foi justamente 2020, quando os cortes começaram a chegar, um dos anos mais catastróficos na Terra Indígena Krikati, no Maranhão. De acordo com o levantamento da GFW, a TI Krikati integrou o ranking dos territórios mais afetados pelo fogo, com 1482 focos de incêndio, num crescimento de 290% em relação a 2019. Já em 2021, os registros caíram para 228 alertas.
Resultado alcançado graças ao trabalho da brigada, que é comandada por Celiana Krikati, de 24 anos, que vendo seu território em chamas, animais queimados e peixes mortos por não suportarem a temperatura da água, decidiu agir. Desde 2018 é a chefe dos brigadistas do território, um time composto por 17 pessoas, sendo ela a única mulher.
Celiana explica que os resultados do último ano são fruto do trabalho dos brigadistas não apenas pela função que têm de combate ao fogo, mas também pela: prevenção, monitoramento e educação ambiental – tarefas realizadas durante o ano todo. No entanto, é nos períodos de seca severa que toda a equipe é contratada como brigadistas temporários pelo Prevfogo (Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais), que é braço do Ibama responsável pela capacitação de brigadistas em áreas protegidas da Amazônia. Alguns dos indígenas são contratados temporariamente pela instituição durante a temporada do fogo, que pode durar até seis meses. Em outros períodos, eles seguem atuando como voluntários, ou seja, sem salário.
Tanto Celiana como Sonia e outras indígenas ouvidas pela reportagem afirmam que ainda há muito espaço a ser ocupado pelas mulheres nessas equipes de brigadistas. Mesmo sem qualquer levantamento oficial sobre a quantidade de mulheres indígenas nas brigadas, é possível se ter uma ideia diante do fato que o Prevfogo formou a sua primeira turma exclusiva para mulheres apenas em novembro do ano passado, quando 29 mulheres Xavante foram capacitadas para participar da brigada voluntária e atuar em aldeias do Tocantins.
Segundo Ane Alencar, diretora de Ciência do Ipam, os territórios dos povos originários são muito afetados pelo fogo porque muitas vezes estão em regiões que sofrem muita pressão pelo desmatamento externo, vindo de fazendas do entorno, por exemplo. Isso acontece porque o fogo é uma das principais ferramentas utilizadas para o desmatamento, especialmente por grileiros que se aproveitam do período da seca para queimarem e depois invadirem as terras públicas da Amazônia. Esse fogo entra na floresta e se espalha rapidamente nos territórios indígenas.
“É muito difícil para os indígenas terem uma resposta ou um socorro rápido, por isso é fundamental que eles estejam organizados e capacitados para combater o fogo. Eles são o contingente que pode dar uma resposta mais rápida aos incêndios nos próprios territórios. Esses cortes nos recursos, tanto para as brigadas como para a Prevfogo, deixa a situação ainda mais crítica”, afirma Ane.
E foi com a responsabilidade de atenuar essa situação crítica que Lewaiki Suya, de 26 anos, do povo Kisêdjê, se tornou a primeira mulher chefe de brigada no Território Indígena no Xingu (TIX), no Mato Grosso. Capacitada pela Prevfogo, assim como Celiana, ela foi selecionada pela comunidade não só para apagar o fogo, mas também para defender a floresta, liderando uma equipe de 14 homens. “Sou de uma família que sempre foi engajada pela defesa da floresta e do território. E foi isso, cuidar da natureza, que me levou a ser brigadista. Nossa luta é pela preservação, por isso que ver a floresta queimando é muito triste”, conta.
De acordo com o levantamento da GFW, a TI Wawi, onde Lewaiki mora, na região leste do TIX, registrou 175 focos de incêndio em 2021. Em 2020, apesar de terem sido nove pontos de alerta, foi o ano em que foram captadas imagens de densas nuvens negras de fumaça encobrindo as aldeias, oriundas das muitas queimadas realizadas para limpar terrenos particulares no entorno do território para o cultivo da soja. Foi a primeira vez que o rio Wawi secou.
Mesmo com as mulheres somando forças ao contingente das brigadas indígenas, a quantidade de pessoas contratadas no ano passado pelo Prevfogo foi avaliada como insuficiente pela Coiab. De acordo com o relatório, foram calculados em torno de 224 quilômetros quadrados de área de atuação por cada brigadista, mais ou menos, um brigadista para 1245 campos de futebol. Isso quando eles possuem veículos para percorrer toda essa extensão. Um trecho do documento joga luz nas dificuldades enfrentadas: “Apesar do importante papel que desenvolvem, as brigadas, em sua grande maioria, atuaram no limite dos seus recursos humanos, psicológicos, materiais, operacionais e financeiros.”
São muitas as histórias contadas por Sonia e Celiana sobre precisarem emprestar carros e camionetes para conseguirem chegar até a área atingida ou sobre a ausência de equipamentos de proteção fundamentais para atuar no combate. Celiana lembra bem do primeiro ano da brigada, em 2018, e o que significa operar no limite dos recursos. “A gente levava de casa alguns materiais, como enxada, foice, facão. O abafador a gente usava palha e enfrentava o fogo assim, sem saber como ia voltar para casa.”
Com Sonia – que recebeu capacitação por meio do programa Corta-Fogo, vinculado ao governo estadual de São Paulo – não foi diferente: quando começou, não tinha nem mesmo as botas apropriadas para entrar nas áreas afetadas e apagava o fogo do jeito que dava.
Até hoje, a brigada não possui um carro apropriado para os combates e um binóculo mais potente para avistar os indícios de fogo é um dos objetos mais desejados por Sonia. Mas, missão é missão. “O fogo é como um parente nosso, é um elemento importante para nós indígenas, tem que ser tratado com respeito”, afirma Sonia. “O que nós brigadistas fazemos não é para qualquer um. A sensação que eu tenho é que o fogo está com raiva. Medo não dá, mas tristeza dá sim. E muita.”
Edição: Mariana Della Barba
Foto em destaque: brigada de incêndio na Terra Indígena Krikati, no Maranhão. Crédito: Fernando Martinho/ISA/Greenpeace
Nota: Essa reportagem foi realizada com financiamento concedido pela Global Forest Watch, que tem o apoio do Ministério Norueguês do Clima e do Meio Ambiente (KDL). A Repórter Brasil mantém total independência editorial.