Com a pensão de duas filhas pequenas para pagar e dificuldades para encontrar empregos na sua cidade no interior do Maranhão, o trabalhador quilombola Leandro*, 29 anos, aceitou uma oferta que, a princípio, parecia tentadora. Uma vizinha lhe ofereceu um emprego como trabalhador temporário para colheita de maçãs em Monte Carlo, no interior de Santa Catarina. Era a primeira vez que ele recebia uma proposta do tipo. Aceitou, seduzido pela promessa de R$ 1.600 mensais, sem despesas com alojamento e alimentação, até o fim da safra, em maio.
Leandro se reuniu com ao menos outros 40 maranhenses que, arregimentados, viajaram quatro dias de ônibus para trabalhar em pomares de maçãs da Fischer S/A Agroindústria, do Grupo Fischer. Com fazendas e unidades industriais no interior de São Paulo e em Santa Catarina, o grupo é dono de duas das maiores produtoras e exportadoras de frutas e sucos da América Latina: a Citrosuco (controlada em parceria com o Grupo Votorantim) e a própria Fischer S/A Agroindústria. A empresa produz as maçãs da Turma da Mônica, vendida nos principais supermercados do país.
Quando o grupo chegou ao pomar da empresa em Monte Carlo, em janeiro deste ano, o cenário encontrado era muito diferente do prometido, afirmam trabalhadores ouvidos pela Repórter Brasil. A comida oferecida tinha “qualidade duvidosa”, os alojamentos estavam lotados, mesmo durante um novo pico de casos de Covid-19 no estado, e o salário era menor que o combinado durante a contratação. Leandro conta que, ao chegar em Santa Catarina, assinou um termo que prometia um salário bruto de R$ 1.282 – apenas R$ 70 acima do mínimo nacional –, que poderia ser complementado com outros prêmios e gratificações, além do tempo de repouso remunerado.
As irregularidades trabalhistas, segundo relatos à reportagem, não pararam por aí: duas semanas depois, cerca de 200 trabalhadores foram demitidos em massa pela empresa, após uma paralisação das atividades de colheita para exigir o atendimento médico de colegas doentes – dos quais um acabou por morrer. Ao questionarem o valor das verbas rescisórias pagas antes do retorno aos seus municípios de origem, os safristas foram recebidos por agentes da polícia militar do município de Fraiburgo, acionada por funcionários da Fischer.
A situação enfrentada pelos safristas os levaram a processar a empresa na Justiça. Leandro e mais 26 colegas ingressaram, em 4 de abril, no Tribunal Regional do Trabalho da 16ª região (TRT-16), nas Varas de Pinheiro, Santa Inês e Bacabal, no Maranhão, com ações judiciais contra a Fischer S/A Agroindústria. Até o momento, 17 processos foram protocolados, e o primeiro deles já foi aceito pelo Judiciário. Os trabalhadores pedem indenização por danos morais, acusando a empresa do não pagamento de verbas rescisórias e de não reconhecer o vínculo empregatício, além de submetê-los à escravidão contemporânea, impondo jornadas exaustivas e condições degradantes de trabalho.
“Essa foi a primeira vez em que fui trabalhar na colheita. Na verdade, era a primeira vez também de todos os outros meninos. Falaram para a gente que o serviço era bom, que ia dar para ganhar dinheiro. A gente foi e se iludiu. Nessas de querer ganhar a vida, deu nisso”, afirma Leandro.
Noel*, outro safrista que processa a companhia, afirma que nunca tinha ouvido falar em trabalho escravo até chegar à fazenda da Fischer. “A gente se meteu numa fria sem perceber. A carga horária era puxada demais. Entrávamos às 6h30 e saíamos às 17h40, sendo que a gente só parava para almoçar por meia hora”, declara.
O trabalhador relata que a empresa não oferecia Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) em quantidades suficientes e afirma que o trabalho era “cansativo” e “perigoso”. “Tínhamos um bag que era muito pesado para subir na escada e alcançar as frutas nas árvores. Devia ter uns 20 quilos. E o cara tem que ficar em cima de uma escada de dois metros de altura para fazer a colheita”, acrescenta.
Procurado, o Grupo Fischer não respondeu aos mais de dez questionamentos enviados Repórter Brasil, e afirmou apenas que “se ocupa com afinco no cumprimento e respeito à legislação trabalhista, encontrando-se em conformidade perante os órgãos públicos de fiscalização” e que “eventuais questionamentos porventura existentes em âmbito judicial serão devidamente respondidos pela empresa”. A resposta na íntegra, assim como os questionamentos enviados pela reportagem, podem ser acessados aqui.
A Repórter Brasil também procurou a Maurício de Sousa Produções (MSP) para comentar as acusações que envolvem a empresa que produz a maçã com a marca Turma da Mônica. A MSP não respondeu aos questionamentos da reportagem, declarando apenas que “não iria se manifestar”.
Trabalhadores doentes
O contrato firmado com a Fischer S/A Agroindústria deveria durar de 19 de janeiro até o final da safra da maçã, mas foi interrompido apenas duas semanas depois, no dia 2 de fevereiro, quando Leandro e outros safristas protestaram contra a falta de atendimento médico para dois trabalhadores que adoeceram durante o serviço no pomar da empresa.
O primeiro foi diagnosticado com pneumonia, sob suspeita de ter contraído Covid-19. A hipótese foi descartada após realização de um teste, segundo relatos dos colegas ouvidos pela Repórter Brasil. Familiares de Jackson Marcos Correa dos Santos, 34 anos, afirmam que ele contraiu uma infecção bacteriana e reclamam do tratamento dado pela empresa, contou à reportagem o advogado Edilson Pinho de Freitas Filho, sócio-proprietário do escritório Lira & Freitas Advocacia Consultoria Jurídica, que representa os 27 trabalhadores maranhenses que entraram com processo contra a Fischer.
Debilitado, o safrista ficou seis dias internado e morreu no hospital, ainda em Santa Catarina. A despesa com os custos funerários e o traslado de volta à cidade de origem, no Maranhão, foram pagas pela produtora de maçãs. Os pais do safrista se queixam do baixo valor pago como verbas rescisórias, de R$ 1.419, dado à família, que também estuda acionar a empresa na Justiça.
Outro trabalhador teve uma infecção no ouvido causada por um inseto e reclamava de dores fortes, muitas vezes gritando, ao ponto de acordar os colegas durante a noite. Safristas que dividiam o alojamento com o trabalhador fizeram vídeos para denunciar a gravidade do seu estado de saúde.
Um manual entregue pela empresa aos trabalhadores diz que a Fischer não se compromete com o encaminhamento médico e recomenda que, em caso de problemas de saúde, o safrista procure “atendimento nos postos de saúde de sua cidade, ou postos de saúde próximos aos alojamentos”.
O material também informa que há um médico que atua para a empresa, mas “somente em casos emergenciais e neste caso será cobrado R$ 46 por consulta”. O Grupo Fischer não respondeu aos questionamentos da reportagem sobre o motivo de cobrar pelo atendimento médico, nem detalhou as ações tomadas após ter conhecimento do estado de saúde dos trabalhadores safristas.
Demissão em massa após protesto
Os safristas organizaram uma paralisação, iniciada em 29 de janeiro, para exigir que a companhia amparasse os colegas doentes. Pressionada, a Fischer encaminhou os dois homens adoecidos para atendimento médico. Quatro dias depois, no entanto, a empresa decidiu que parte considerável dos trabalhadores safristas seriam dispensados.
A Fischer não informou o total de dispensas ocorridas à época, mas cerca de 200 pessoas foram demitidas de uma só vez, segundo informações do Ministério Público do Trabalho (MPT), do advogado dos safristas e de empregados ouvidos pela Repórter Brasil. Pelo menos dois ônibus de viagem com até 48 lugares e um ônibus grande, com 60 poltronas, foram custeados pela companhia para levar os trabalhadores de volta aos seus estados de origem após o desligamento. A reportagem também apurou que, além do Maranhão, um grupo vinha da Bahia.
Um grupo de oito policiais militares em três viaturas acompanhou a demissão em massa. De acordo com um boletim de ocorrência lavrado no dia 2 de fevereiro, o qual a Repórter Brasil teve acesso, as forças de segurança foram chamadas pela própria Fischer após trabalhadores cercarem um dos prédios administrativos da empresa em Fraiburgo, município vizinho a Monte Carlo e sede da companhia no estado, para questionarem o valor pago na rescisão contratual.
Safristas ouvidos pela Repórter Brasil afirmam que não receberam as verbas rescisórias totais devidas pela Fischer ao serem dispensados. Alguns reclamam que tampouco tiveram o tempo de serviço anotado na carteira de trabalho. “Pagaram uma parte quando fomos admitidos e depois só um valor menor quando fomos demitidos. Aí, eles sumiram e falaram que o restante do dinheiro seria depositado”, afirma Leandro.
Os trabalhadores que processam a Fischer pedem R$ 14 mil em indenização por danos morais, referentes à quebra do contrato antes do prazo estabelecido, à não assinatura da carteira de trabalho, ao não depósito do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e ao reconhecimento da submissão à condição análoga à de escravo, bem como ao pagamento dos honorários advocatícios.
Edilson de Freitas Filho, advogado que representa os safristas, afirma que a Fischer se aproveita da vulnerabilidade social dos trabalhadores maranhenses, muitos deles pobres e com baixa escolaridade, para contratar mão de obra sem observar os direitos previstos em lei. “Sempre que chega neste período de dezembro a maio, época de colheita no Sul do Brasil, temos várias empresas que procedem com essa prática de aliciamento.”
MPT investiga conduta da empresa
Paralelamente aos processos que correm no Tribunal de Justiça do Maranhão, o MPT em Santa Catarina também apura, desde 8 de abril, a conduta da Fischer com uma notícia de fato. O processo foi originalmente instaurado em 16 de março no MPT no Maranhão, depois de uma denúncia da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular, que repassou à procuradoria local informações de que trabalhadores maranhenses poderiam ter sido vítimas de trabalho escravo em Santa Catarina, originando a investigação.
A notícia de fato é um procedimento no qual se verifica suspeitas de infrações trabalhistas que, se confirmadas, podem levar à abertura de um inquérito civil. O MPT investiga quatro irregularidades por parte da empresa produtora da maçã da Turma da Mônica: a submissão de trabalhadores à condições análogas à escravidão; o atraso ou não pagamento de verbas rescisórias; a demissão em massa, sem notificação às autoridades; e o descumprimento de regras para prevenção à Covid-19.
“Mesmo no caso de pagar as verbas rescisórias, o fato de haver uma demissão em massa precisa ter a supervisão do MPT”, explica Elizabeth Pacheco, procuradora do MPT em Santa Catarina à frente do caso. “Há casos de cidades que sobrevivem da renda dos trabalhadores das empresas, então, quando há demissão em massa, isso lesa a coletividade. Por isso, deve ser notificada”, complementa.
A procuradora disse que não há previsão para concluir a investigação da notícia de fato, já que ela depende do recebimento de documentos por parte da Fischer.
A Repórter Brasil também procurou o Ministério do Trabalho e Previdência para saber se existem investigações em aberto para apurar as irregularidades trabalhistas denunciadas pelos safristas. Via assessoria de imprensa, a pasta afirmou que “não comenta ações em andamento”, sem dar mais detalhes.
*Nomes fictícios para proteger a identidade dos trabalhadores