Ninguém mais anda sozinho, circula pelas estradas à noite ou se pinta de jenipapo para ir às cidades. Nos municípios de Acará e Tomé Açu, no nordeste do Pará, indígenas e quilombolas se revezam em vigília na entrada de seus territórios.
Cercados por plantações de dendê, moradores dos quilombos Nova Betel, Alto Acará Amarqualta e da terra indígena Turé Mariquita vivem um cenário de terror desde que a produtora de óleo de palma Brasil BioFuels (BBF), que afirma ser a maior da América Latina, se instalou na região, a 200 km de Belém.
Os dendezais, comprados pela BBF em 2020, cobrem os dois lados da estrada de terra que leva às comunidades tradicionais. As delimitações dos três territórios estão em disputa na Justiça. As famílias quilombolas aguardam há mais de 10 anos pela titulação das duas áreas. Já os Tembé requerem, desde 2016, a ampliação da terra indígena de 147 hectares, demarcada há 30 anos.
Enquanto as comunidades lutam pela regularização de seus territórios, a BBF afirma ser dona de fazendas sobrepostas às terras reivindicadas. Em meio ao caos fundiário, um clima de ameaças e violência se intensifica na região. “É a guerra do dendê”, afirmam os povos.
Voando alto
A BBF entrou no mercado paraense ao adquirir a Biopalma, então subsidiária da mineradora Vale, e hoje controla 56 mil hectares no estado. A área de cultivo da empresa, equivalente a 78 mil campos de futebol, está localizada nas regiões do Vale do Acará e no Baixo Tocantins, maior região produtora de óleo de palma do Brasil.
A companhia sonha alto: em abril, fechou um acordo de comercialização exclusiva com a maior distribuidora de combustível para avião no país, a Vibra Energia, que atende 90 aeroportos e responde por 70% do mercado nacional. As empresas anunciaram um investimento de R$ 2 bilhões para a produção de biodiesel feito a partir do óleo de palma.
A parceria comercial ocorre em um contexto de incentivos à redução da emissão de carbono na aviação, por isso, Gol, Latam e Azul “e se mostraram interessados” no combustível.
Longe dos escritórios, a realidade é diferente.
Indígenas e quilombolas afirmam que a BBF rompeu unilateralmente acordos firmados com as comunidades tradicionais que vivem no entorno das plantações de dendê, que previam apoio às roças e construção de poços artesianos. As ações eram mantidas pela Biopalma, uma das primeiras empresas a se instalar na região, em 2007. “Eles compraram as fazendas ‘com porteira fechada’, com os bois dentro. Só que não era boi, era a gente”, diz Emídio Tembé.
Em novembro, cansados de esperar o cumprimento dos acordos, os indígenas ocuparam áreas de dendezais nas partes do território que reivindicam como ampliação da terra indígena Turé Mariquita, criando pequenos acampamentos. Em janeiro, foi a vez dos quilombolas de Nova Betel ocuparem áreas de dendê e no mês seguinte, os quilombolas do Acará Alto Amarqualta tomaram parte da plantação. Como reação às ocupações, uma escalada da violência ocorreu na região.
No início de julho, por volta da meia-noite, um carro avançou sobre o acampamento conhecido como Solimões, formado por indígenas que se autorreconhecem como Turiuara e localizado no limite da área reivindicada como ampliação da terra indígena Turé Mariquita. Tiros foram disparados e um morador foi atingido no peito, mas sobreviveu. Testemunhas reconheceram a farda dos atiradores: eram da Stive Segurança e Vigilância, que presta serviços à BBF.
“Infelizmente já começou o derramamento de sangue”, comenta uma vítima que prefere não ser identificada.
Esse não foi um fato isolado. Em abril, um quilombola foi preso após ser agredido por seguranças da empresa. Na ocasião, um grupo de indígenas e quilombolas ocupou a sede da BBF em Acará em protesto contra violações ambientais e de direitos humanos praticadas pela empresa. No final de 2021, indígenas relataram que foram xingados e espancados por funcionários ligados à BBF. Quilombolas afirmam que cinco casas foram queimadas em seus territórios.
As ações não se restringem a agressões físicas. Duas grandes valas foram abertas na estrada que liga a terra indígena e a reserva indígena Turé Mariquita II – área de 587 hectares criada em 1996 – ao quilombo Alto Acará Amarqualta, impedindo a circulação de mais de 700 famílias. As lideranças acreditam que a empresa está por trás da violência e denunciam o uso de milícias. “Não vai demorar para velar os corpos dos nossos parentes”, comenta Adenísio Portilho, liderança dos Turiuara.
Em resposta à Repórter Brasil, a BBF afirmou que “não existe sobreposição de áreas com os territórios das comunidades tradicionais” e que “exerce a posse pacífica, justa e ininterrupta de suas áreas”.
A empresa nega qualquer episódio de espancamento, ameaças ou queima de casas por agentes de segurança, e classificou o ataque ao acampamento Solimões como uma “situação fantasiosa”. Disse, ainda, que existe uma “inversão da narrativa que busca transformar a empresa em a grande vilã”.
A BBF diz ainda que os indígenas e quilombolas invadiram as terras da empresa após a alta no preço do óleo de palma com o objetivo de roubar os frutos e vendê-los a concorrentes da região. (Leia as respostas da empresa na íntegra aqui).
Mário Gonçalves Trindade, presidente da Amarqualta, associação que representa o quilombo do Alto Acará, reitera que a ocupação ocorreu por conta da quebra dos acordos e conta que tentou dialogar com a empresa “até onde foi possível”.
Por telefone, um funcionário da Stive Segurança, que se identificou apenas como Andrade, afirmou que os representantes da empresa receberam as perguntas enviadas pela Repórter Brasil, mas que só responderiam “se existirem fotos que comprovem que a empresa atirou ou agrediu”.
O estímulo à violência ganha apoio de políticos locais. “Onde a justiça não alcança, a pólvora tem que alcançar”, afirmou o deputado Delegado Caveira (PL), em uma manifestação de trabalhadores da BBF em Belém, em abril, contra as ações dos indígenas e quilombolas.
Dois meses depois, foi a vez do senador e pré-candidato a governador do Pará, Zequinha Marinho (PL), sair em defesa da empresa. Em audiência em Tomé Açu, Marinho disse que buscaria o Ministério da Justiça para pedir providências contra o roubo dos frutos denunciado pela BBF.
Procurado pela reportagem, a assessoria de Zequinha Marinho disse que o senador buscou apoio do Ministério da Justiça “para pôr fim às tensões sociais decorrentes de conflito agrário”, mas não detalhou quais foram os encaminhamentos tomados junto ao órgão federal. (Leia na íntegra)
O deputado Delegado Caveira não se manifestou.
Dendê para abastecer aviões
Signatário do Acordo de Paris, o Brasil está em uma corrida para zerar as emissões de gases do efeito estufa até 2050 e conter o aquecimento global.
O setor da aviação é responsável por 2% dos lançamentos globais de CO2 na atmosfera e estuda alternativas. Uma das principais medidas é a substituição do diesel por combustíveis sustentáveis de aviação, conhecido pela sigla SAF, do termo em inglês “Sustainable Aviation Fuels”. O evento de abril celebrou a parceria bilionária da BBF para a comercialização exclusiva de SAFs, a partir de 2025, com a Vibra Energia.
“Não é possível considerar esse produto sustentável enquanto tem populações tradicionais reivindicando seus territórios e sendo afetadas com veneno”, afirma Rômulo Batista, da campanha Amazônia do Greenpeace.
“É falso o que as empresas de palma estão dizendo sobre energia limpa sustentável. Estão matando o meio ambiente, os povos tradicionais e vão acabar com o planeta”, alerta Josias dos Santos, coordenador de relações públicas da Associação de Moradores e Agricultores Remanescentes de Quilombolas do Alto Acará (Amarqualta).
Em resposta à Repórter Brasil, a Vibra Energia afirmou que o contrato com a BBF se restringe à aquisição de palma plantada no estado de Roraima e que iniciou uma diligência interna para avaliar os conflitos agrários, “atendida integralmente”. A Vibra afirmou seguir monitorando o caso. (Leia as respostas aqui).
Em nota, as companhias aéreas Gol, Latam e Azul afirmaram não ter nenhum vínculo comercial com a BBF e que a ida ao evento aconteceu apenas para conhecer o projeto. O Ministério de Minas Energia, que também foi convidado ao encontro, respondeu que a visita “teve caráter eminentemente técnico”. Já o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) disse que participou “a fim de verificar a possibilidade de financiar investimentos voltados à produção de energia renovável” e que, após tomar conhecimento do conflito, solicitou esclarecimentos à empresa. (Leia as respostas aqui).
650 BOs
Além da violência física, a BBF tem apostado em outra estratégia: o registro de Boletins de Ocorrências (BOs) contra os comunitários, com denúncias de furto de dendê e agressão a funcionários da empresa. Já foram mais de 650 registrados. A Repórter Brasil teve acesso a um ofício da polícia civil, de janeiro deste ano, que diz que a demanda da empresa “travou totalmente o trabalho” da corporação em Quatro Bocas e Tomé-Açú, levando os funcionários da delegacia “à exaustão”.
Apesar dos numerosos registros, de acordo com a polícia, a empresa não colabora com o encaminhamento dos processos, deixando, inclusive, de prestar depoimentos, além de registrar informações falsas.
Para tentar tirar o foco dos problemas fundiários, a BBF age de forma estratégica para criminalizar integrantes das comunidades tradicionais e cria um clima de insegurança para as famílias, avalia Andreia Barreto, da Defensoria Pública do Estado do Pará. “Uma empresa que age dessa forma é comparável com pistolagem”.
Caos fundiário estimula violência
Quatro quilombolas foram assassinados no território Alto Acará Amarqualta desde que começou a demanda por reconhecimento do território, em 2010. “Perdemos pessoas porque começamos a entender o que é ser quilombola, e começamos a lutar. Eu temo ser o próximo”, admite Josias dos Santos.
A Repórter Brasil teve acesso a um relatório de abril deste ano de uma comissão que analisa questões ligadas à grilagem, ligada ao Tribunal de Justiça do Pará, que reconhece existir “sobreposições a glebas federais e estaduais, ocupadas atualmente pela empresa e pelas comunidades”, mas que não conseguiu “dar melhor efetividade ao conflito” pois nem a BBF nem os órgãos fundiários responsáveis pela regularização dos territórios quilombolas apresentaram a documentação.
Jorde Tembé, advogado que representa os indígenas, também a ausência de licenciamento ambiental e de consulta aos povos indígenas no período de instalação das empresas na região – à época, o plantio de palma era considerado de baixo impacto e estava dispensado de autorizações especiais. Em junho, em meio às discussões para ampliação da terra indígena Turé Mariquita, o Ministério Público Federal pediu uma perícia para análise antropológica das ocupações indígenas na região. Um mês depois, a BBF se comprometeu com a justiça paraense a financiar estudos de componente indígena do território reivindicado pelos Tembé.
“Nós somos os primeiros habitantes daqui e fomos roubados pelos fazendeiros, depois pela Biopalma [antiga exploradora de dendê na região] e agora pela BBF”, ressalta Emídio Tembé, cacique da aldeia Tekna’i. “Por isso lutamos pela ampliação, porque é preciso reconhecer o nosso território tradicional”.
Procurada pela Repórter Brasil para esclarecer a falta de estudos ambientais na ocasião da instalação da Biopalma, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas-PA) se limitou a responder que o empreendimento possui licença de operação vigente. (Leia a íntegra aqui).
Ao ser questionado pela reportagem sobre o processo de regularização fundiária dos territórios quilombolas, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) afirmou que deslocará um grupo para iniciar a identificação e delimitação das áreas em agosto, mas que não há prazo para finalização do trabalho. O órgão afirma que somente após o levantamento fundiário completo poderá afirmar se existe sobreposição com as fazendas da BBF. O Iterpa (Instituto de Terras do Pará) informou que os trabalhos estão “sob análise nos órgãos competentes”. (Leia as respostas na íntegra aqui).
A Funai não se manifestou.
‘Território onde a morte está à espreita’
Sem uma área que divide os cultivos e os territórios tradicionais, as comunidades convivem com os impactos da monocultura de dendê, como o uso de agrotóxicos, o desaparecimento de caça e o aumento de insetos que acabam com as plantações.
Emídio Tembé não toma mais xibé – uma mistura de água com farinha – na beira do igarapé. Desde que as plantações se instalaram no entorno da terra indígena, o ancião não consegue tomar a água do rio sem ter diarréia e dor de estômago. Sua esposa, Elisa, deixou de tomar banho no rio por conta da coceira e alergia.
Adelina de Souza, a dona Dadá, conta que nasceu “na boca” do igarapé Karuara, no quilombo Alto Acará Amarqualta. “Criei meus filhos nesta terra. Estamos aqui muito antes da empresa chegar”. Sem outras alternativas de abastecimento, ela e os outros moradores ainda usam a água do igarapé, que temem estar contaminada.
Além da contaminação das águas, os quilombolas relataram a diminuição de peixes e da caça. A carne de anta, caititu e veado, que fazia parte da dieta das comunidades, está cada vez mais difícil de encontrar. “Agora é frango, mortadela. Antes era difícil meus avós adoecerem. Isso mudou”, afirma Xandir Tembé, técnica de enfermagem e neta de Emídio e Elisa.
Relatos como dor de cabeça, coceiras e dificuldade de respirar são comuns entre as populações que vivem em meio ao dendê, mas os casos dificilmente são notificados devido à falta de preparo das equipes médicas locais de classificá-los como intoxicação.
“A maior exposição aos agrotóxicos das populações relacionadas ao dendê é a ambiental, ou seja, as pessoas moravam naquele território e o dendê chegou até eles”, afirma Antonio Mota, do Instituto Evandro Evandro Chagas (IEC), vinculado ao Ministério da Saúde. De acordo com o pesquisador, há um aumento significativo de pessoas que vivem cercadas pelos dendezais que apresentam problemas dermatológicos e respiratórios devido à exposição aos pesticidas.
Um estudo publicado em 2017 identificou resíduos de endosulfan – proibido desde 2010 – e glifosato nos cursos d’água que cortam as terras dos Tembé em Tomé Açu. Amplamente utilizado na agricultura brasileira, o glifosato é classificado como provavelmente cancerígeno para humanos pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC), órgão da Organização Mundial da Saúde.
“Esse é um modelo de extração que tem a ver com a privação de direitos básicos. É um território onde a morte está à espreita: você não pode tomar banho no rio, não pode beber água, não pode mais comer peixe”, afirma Elielson Pereira, pesquisador da Universidade Federal do Pará.
Em nota, a BBF afirmou que “segue as melhores práticas internacionais para o manejo sustentável da palma” e nega que utilize agrotóxicos em regiões próximas às terras indígenas e quilombolas. (Leia na íntegra).