Os Junqueira Vilela entraram para os anais do crime ambiental ao longo das últimas décadas. Primeiro foi o pai, Antônio José Rossi Junqueira Vilela, que em 2006, recebeu a maior multa aplicada pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Mato Grosso até então, no valor de R$ 60 milhões.
Uma década depois, seu herdeiro – e quase homônimo – Antônio José Junqueira Vilela Filho foi preso preventivamente por desmatamento ilegal e grilagem de terras depois que o Ibama desarticulou sua quadrilha, que contava ainda com a participação de duas irmãs e um cunhado. A soma das multas aplicadas em seu nome supera, e muito, a dívida ambiental do pai: R$ 163 milhões, um novo recorde.
O Ministério Público Federal atribui ao bando a responsabilidade pelo desmate de uma área maior que Belo Horizonte (330 km²) na floresta amazônica, em Altamira, no Pará. Segundo a acusação, a derrubada era feita com mão de obra escrava, crime pelo qual eles também respondem na Justiça.
As multas de pai e filho aconteceram no centro nevrálgico do arco do desmatamento da Amazônia, na divisa entre Pará e Mato Grosso – onde a floresta já emite mais gases de efeito estufa do que é capaz de absorver, conforme revelaram cientistas na revista Nature, no ano passado. O mesmo lugar onde agora, graças a uma ação judicial movida pela família, uma unidade de conservação ambiental pode deixar de existir.
Desde o dia 10 de junho, há uma ordem sobre a mesa da secretária de Meio Ambiente do Mato Grosso (Sema-MT), Mauren Lazzaretti, para que “atualize o banco de dados de Unidades de Conservação”, excluindo dessa lista o Parque Estadual Cristalino II, área de 118 mil hectares cujo decreto de criação foi considerado inválido pela Justiça. A Sema-MT disse que isso ainda não foi feito, mas que “a decisão judicial será cumprida pelo Estado com a revogação do decreto” que criou a UC.
O acórdão do Tribunal de Justiça do Mato Grosso atendeu a um pedido da Sociedade Comercial do Triângulo Ltda – que tem entre seus sócios Douglas Dalberto Naves, qualificado pelo MPF do Pará como “laranja da família Junqueira-Viacava” (“Viacava” é o sobrenome do genro do patriarca dos Vilela, também acusado de envolvimento com os crimes ambientais). Antônio José Rossi Junqueira Vilela aparece nos autos do processo como procurador da Sociedade Triângulo.
Em um parecer dado no início do processo, em outubro de 2012, o promotor de Justiça Domingo Sávio de Barros Arruda considerou que “a presente ação é mais uma tentativa do Sr. Antônio José Rossi Junqueira Vilela de tentar desenvolver na área do Parque Estadual Cristalino II as mais variadas atividades econômicas em detrimento da exuberante riqueza biológica da região e do interesse de todos os mato-grossenses em manter protegido e preservado aquele espaço”.
Considerado o “mais rico em biodiversidade da Amazônia brasileira”, Cristalino II abriga 850 espécies de aves, 43 de répteis, 36 de mamíferos, 29 anfíbios e 16 diferentes tipos de peixe. A UC tem esse nome em referência às nascentes translúcidas que abriga. “Como é possível que a família de um dos maiores desmatadores do Brasil tenha influência a ponto de ameaçar um parque dessa importância?”, protesta Angela Kuczach, diretora da Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação, uma coalizão de entidades ambientalistas que monitora áreas protegidas brasileiras.
A família Junqueira Vilela foi contatada através de seu advogado Renato Maurílio Lopes, mas informou que não vai se manifestar.
Inércia
Nesta segunda-feira (8), a Justiça do Mato Grosso admitiu que “houve uma certidão equivocada de trânsito em julgado” e que “o processo ainda está em aberto” e portanto, é possível recorrer da decisão. A Sema-MT e a Procuradoria Geral do Estado (PGE) davam o caso como encerrado.
O Ministério Público do Mato Grosso havia questionado o fim do processo, defendendo que não tinha sido intimado e que, por isso, ainda havia prazo para recurso. “A instituição está pensando em alternativas e lutará até o fim para impedir a extinção do Cristalino II”, informou a assessoria de imprensa da promotoria, que pretende recorrer. As manifestações dos órgãos podem ser lidas na íntegra aqui.
O governo de Mato Grosso está sendo acusado por ambientalistas de ter agido com “inércia” por ter deixado passar o prazo legal para questionar a decisão. “Caberia à PGE levar o processo para uma instância superior, mas isso precisa ser feito dentro de um rito que não aconteceu”, lamenta Edilene Fernandes do Amaral, consultora jurídica e de articulação do Observa-MT, um observatório socioambiental integrado por entidades da sociedade civil.
Um manifesto assinado por dezenas de entidades alerta que a decisão “abre um precedente para outras 18 Unidades de Conservação estaduais” que estão tendo sua existência questionada “por interesses privados”. “Com isso, o Estado de Mato Grosso perderia 1,38 milhões de hectares de áreas protegidas, colocando em xeque os seus compromissos internacionais de redução de emissão de carbono, a credibilidade dos seus posicionamentos quanto à sustentabilidade do estado e os fluxos de recursos para o desenvolvimento de baixo carbono e a modernização das práticas agropecuárias”, criticam as organizações.
Pecuária, soja e energia
Quando abriu o processo, a Sociedade Comercial do Triângulo Ltda dizia que a criação do parque, ocorrida em maio de 2001, atingiu três propriedades rurais onde criava gado desde 1994.
Em 2012, o Ministério Público disse que Rossi Junqueira Vilela pretendia, “a todo custo, implantar, no coração daquela Unidade de Conservação uma Pequena Central Hidrelétrica (PCH) e, além disso, insiste em desenvolver atividades agropecuárias em terras do Parque Estadual”. A Sema-MT diz que os projetos de duas hidrelétricas na área de influência do parque nunca foram adiante e que não há nenhum licenciamento ativo neste sentido.
Quatro anos depois, em 2016, a família já plantava soja, milho e arroz na área.
Os Junqueira Vilela decidiram ingressar na Justiça em 2011 – uma década depois da criação do parque, justamente quando a Sociedade Comercial do Triângulo teve um licenciamento negado pela Sema-MT na Fazenda Bela Vista, “100% inserida no perímetro do Parque Estadual Cristalino II, Unidade de Conservação de proteção integral”.
No parecer, os técnicos anotaram que a propriedade havia sido multada por desmatamento ilegal em 2005 e que, na análise do pedido de licenciamento, verificaram que houve “reincidencia no crime contra a unidade de conservação” em 2006 – pedindo, então que a fiscalização da secretaria autuasse novamente a empresa. A multa milionária que Vilela pai recebeu em 2006 também ocorreu dentro da área do parque.
Em 2020 a Sema identificou um novo desmatamento na área ligado à família, dessa vez pelo corte raso de 3,63 hectares, registrado no nome de Antonio José Junqueira Vilela Filho. Ele não pagou os R$ 18 mil decorrentes da infração e terá seu nome inscrito no cadastro de dívida ativa do Estado. “As autuações dos órgãos ambientais não podem se sobrepor na mesma área, e há outros autos de infração lavrados pelo Ibama”, completa a pasta.
O lapso de tempo entre a criação do parque e a sua contestação foram o principal argumento da Justiça ao negar, em primeira e segunda instância, o pedido de extinção do parque feito pela Sociedade Comercial Triângulo. Esse direito estaria prescrito segundo essas avaliações.
O MP também coloca em dúvida os títulos de propriedade que a empresa diz ter na área da Unidade de Conservação. “As terras sempre pertenceram à União e, somente recentemente, foram doadas ao Estado de Mato Grosso. Logo é por demais estranho que a autora ostente título naquela área.”
Após os primeiros revezes na Justiça, a família Junqueira Vilela fez nova investida em 2016, abrindo um novo processo, mas também pedindo a anulação da criação do parque – dessa vez, abrigada sob o CNPJ da Sociedade Comercial AJJ Ltda.
Os processos acabaram unificados, e a família conseguiu no Supremo Tribunal de Justiça derrubar as decisões que diziam que a queixa contra o parque estava prescrita, abrindo caminho para o processo voltar a andar na Justiça mato-grossense.
“O Parque Cristalino forma um mosaico de áreas protegidas junto com uma terra indígena, algumas reservas naturais privadas e uma área militar. É um cinturão verde que segura o avanço do arco do desmatamento do Mato Grosso para o Pará. Mas, se o decreto for mesmo anulado, não sobra nada. Em pouquíssimos dias, o desmatamento vai ser irreversível”, conclui Kuczach, agora animada com a possibilidade de seguir lutando pela manutenção da unidade de conservação.