Agronegócio financia bancada da bala, que elege meio ambiente e povos do campo como alvos

Herdeiros do pensamento da ditadura sobre a Amazônia e beneficiados por dinheiro do agro, policiais e militares estão na linha de frente do desmonte socioambiental na Câmara; agenda armamentista tem agravado violência no campo
Por Pedro Rocha Franco
 29/09/2022

Com a pistola apontada para a Amazônia, policiais e militares buscam a reeleição financiados por grandes fazendeiros. O apoio pode ser explicado pela atuação majoritariamente antiambiental dos integrantes da chamada “bancada da bala”, que estão na linha de frente da defesa dos interesses do agronegócio.

É o que revela o Ruralômetro 2022, ferramenta desenvolvida pela Repórter Brasil que avalia o desempenho dos parlamentares nas questões socioambientais. Dos 25 deputados mais mal pontuados no ranking, 23 são membros da Frente Parlamentar da Segurança Pública (o que inclui 11 policiais e militares reformados do Exército). Se considerarmos todos os 91 deputados que mais votaram e propuseram projetos contrários ao meio ambiente e povos do campo, 74 são da bancada da bala.

Destes 74, 30% (ou 22 parlamentares) receberam R$ 20 mil ou mais de empresários ligados ao agronegócio para financiar sua campanha em 2018. Quanto mais negativa foi a atuação de um deputado com relação à agenda socioambiental, maior a possibilidade de ele ter contado com dinheiro do agro para se eleger.

Deputado Major Vitor Hugo (PL-GO), que disputa o governo de Goiás, participa de ato com o ruralista e candidato a senador Wilder Morais (PL-GO), seu financiador (Foto: Reprodução/Facebook)

Os dados mostram que os interesses da bancada da bala se misturam com os da bancada ruralista. Isso se deve, em parte, à herança do pensamento da ditadura militar e de teorias conspiratórias, mas não só: através dos financiamentos de campanha, o agronegócio vem conseguindo conquistar o apoio desses parlamentares para suas causas.

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A frente da segurança pública tem hoje 306 deputados federais, de 22 partidos. Tradicionalmente, o grupo se propõe a acompanhar a agenda da segurança no Brasil, defender os profissionais da área e trabalhar em prol das vítimas de violência. Na prática, porém, a maioria conservadora de seus membros têm reforçado a agenda armamentista. Vem daí o apelido de “bancada da bala” – que não pode, contudo, ser estendido a todos os políticos da frente, já que uma pequena parcela se opõe à facilitação do porte de armas. 

“Essa bancada é formada por militares, mas a gente não vê projetos para garantir uma segurança pública de qualidade. O que a gente vê é a aprovação de propostas no sentido de garantir patrimônio para quem já tem, para os ricos”, avalia Carlos Lima, coordenador nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT). 

Dos 25 deputados mais mal pontuados no Ruralômetro 2022, 23 são membros da Frente Parlamentar da Segurança Pública (Foto: Roque de Sá/Agência Senado)

A atuação do grupo, continua Lima, dialoga com as posições do presidente Jair Bolsonaro (PL) – que foi membro da bancada da bala antes de ser eleito ao Planalto e se posiciona “contra as resistências das comunidades e das famílias sem terra, ao mesmo tempo em que arma os fazendeiros”. 

“A gente sempre classificou os governos como coniventes ou omissos diante da violência no campo, mas o governo atual é protagonista”, diz Lima.

Uma das principais pautas da bancada da bala, o maior acesso a armas, é apontado como uma das razões para o aumento de 75% dos assassinatos no campo entre 2020 e 2021, segundo relatório da CPT.

Tropa de choque do agronegócio

O caso do deputado bolsonarista José Medeiros (PL-MT), um ex-policial rodoviário, é emblemático para entender as estreitas relações entre a bancada da bala e o agronegócio. Além de ter campanhas financiadas por empresários do agro, Medeiros já apresentou projetos favoráveis a infratores ambientais.

Em 2018, o político recebeu R$ 150 mil de Elizeu Zulmar Maggi Scheffer, primo de Blairo Maggi, o “rei da soja” e ex-governador do Mato Grosso. Na campanha atual, Carolina Scheffer – mulher de Elizeu – doou R$ 200 mil ao ex-policial. O casal é também o principal doador da campanha de Jair Bolsonaro à reeleição.

Ex-policial rodoviário, José Medeiros (PL-MT) recebe doações de ruralistas e apresentou projetos que beneficiam infratores ambientais (Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados)

Elizeu é sócio da Scheffer Agropecuária, companhia com capital social declarado de R$ 450 milhões. O empresário e sua família têm vasto histórico de infrações ambientais. Em 2010, um incêndio destruiu 104 hectares de fazenda da sua empresa, o que rendeu uma multa da Secretaria de Meio Ambiente do Mato Grosso – a punição é questionada na Justiça. 

Seu irmão Eraque Maggi Scheffer já foi multado por destruição da flora na Fazenda Iguaçu, em Rondonópolis (MT), e teve a propriedade embargada. Outro irmão, Eraí, foi alvo de dois embargos na Fazenda Cachoeira em 2008 – um deles por “impedir a regeneração natural da vegetação”, segundo o Ibama.

A Repórter Brasil procurou Elizeu por meio da Scheffer Agropecuária, que disse que não se posicionaria porque o tema da reportagem “não trata de um assunto corporativo”. A empresa não respondeu sobre a multa da fazenda. A reportagem também procurou um advogado do empresário, que disse que ele estava “incomunicável”. Já a assessoria do Grupo Bom Futuro, de Eraí, afirmou que nem a empresa nem seus sócios iriam se manifestar. A reportagem contatou um advogado de Eraque, que declarou que não poderia responder pelo cliente, mas não localizou outro representante do fazendeiro. O espaço segue aberto para esclarecimentos. 

Eleito para seu primeiro mandato com a ajuda dessas doações dos barões da soja, Medeiros apresentou na Câmara projetos de lei que beneficiam infratores ambientais, incluindo um que visa impedir a destruição de maquinário usado na destruição da floresta, como tratores e retroescavadeiras. Em outro texto, o político propõe alterar a Lei de Crimes Ambientais, estabelecendo que os flagrantes de infração precisam estar acompanhados de fotografias e vídeos.

O político também votou desfavoravelmente à agenda socioambiental 21 vezes ao longo da legislatura, o que lhe rendeu febre ruralista de 40,1°C no Ruralômetro 2022. O desempenho do parlamentar parece ter agradado o mundo rural, já que no pleito deste ano a arrecadação de sua campanha registra também uma doação de R$ 500 mil do empresário do ramo de sementes Odilio Balbinotti Filho. Procurada, a assessoria de Medeiros não retornou aos pedidos de posicionamento.

Outro deputado da bancada da bala que também teve sua campanha financiada por um megaempresário do agronegócio é o coronel João Chrisóstomo de Moura (PL-RO). No pleito de 2018, o coronel recebeu R$ 45 mil – 90% de toda sua verba – da campanha do candidato a senador Jaime Maximino Bagattoli (PL-RO), um dos maiores produtores de soja de Rondônia. 

Deputado Coronel Chrisóstomo (PL-RO), que tenta a reeleição, votou 21 vezes de forma desfavorável à agenda socioambiental ao longo da legislatura (Foto: Reprodução/Facebook)

Bolsonarista que tenta novamente uma vaga no Senado nas eleições deste ano, Bagattoli já teve suas propriedades autuadas pelo Ibama quatro vezes por infrações ambientais e, em duas ocasiões, foi alvo de embargos – em um dos casos, por desmatamento ilegal. À Repórter Brasil, o candidato disse que sempre agiu “dentro da legalidade” (leia a íntegra da resposta).

Bagattoli tem presença constante em reuniões e audiências públicas para discutir a regularização fundiária em Rondônia, pauta que ele e Chrisóstomo compartilham. O deputado chegou a intermediar encontros de produtores investigados por invasões da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, com órgãos ambientais do governo para defender a regularização das áreas invadidas, denunciou documentário da BBC Brasil

“Eu não sabia que os indivíduos tinham invadido terras indígenas com o intuito de regularizá-las. Se eu soubesse, não teria intermediado nenhuma reunião com órgãos federais”, declarou o deputado à Repórter Brasil (leia a íntegra da resposta).

Procurado, Chrisóstomo afirma que “sempre trabalhou pela regularização fundiária de pequenos agricultores”, que “respeita as leis ambientais”, que é “totalmente contra a grilagem de terras” e que acredita que “o desenvolvimento econômico e a proteção da natureza podem e devem caminhar juntos”. Sobre o fato de ter recebido financiamento de um doador com infrações ambientais, disse que “cabe a ele se defender das acusações nas instâncias adequadas” (íntegra).

Chrisóstomo intermediou encontros de produtores investigados por invasão de terra indígena em Rondônia com órgãos do governo, mas disse não saber de grilagem (Foto: Reprodução/Facebook)

Também financiado pelo agronegócio, o deputado Major Vitor Hugo (PL-GO) agora disputa o governo de Goiás. 

Até o momento, o principal doador individual de Vitor Hugo é o candidato a senador Wilder Morais (PL-GO), proprietário da Girassol Agropecuária e de três mineradoras, que doou R$ 95 mil. Na sequência aparece Maycon Henrique Tombini, dono de uma fazenda de soja e de armazéns, que destinou cerca de R$ 67 mil à campanha do bolsonarista.

Procurado, Vitor Hugo não respondeu.

Amazônia armada

Nos últimos anos, ruralistas e membros da bancada da bala se uniram em torno de um interesse em comum, inflado por Bolsonaro: a facilitação do porte de armas no campo. Além dos decretos assinados pelo presidente, a Câmara aprovou nesta legislatura o projeto de lei 3.715/19, que autoriza a posse de arma em toda a extensão dos imóveis rurais – em vez de apenas na sede da fazenda, como dizia a regra anterior.

“O armamento serve para que eles possam se defender dos crimes que cometem. Eles invadem as áreas e precisam estar armados para se garantir”, avalia Nascimento, do Cimi.

Outro sintoma do aumento no acesso a armas na Amazônia Legal é a proliferação dos clubes de tiro. Hoje, os estados da região somam 231 dessas entidades, o equivalente a 1 para cada 3,3 cidades.

Carlos Lima, coordenador nacional da CPT, testemunhou essa realidade em uma viagem recente entre Goiânia (GO) e Ribeirão Cascalheira (MT). “A quantidade de clubes de tiros nas entradas das fazendas me assustou. É um recado muito claro para uma parte da sociedade”. 

Os estados da Amazônia Legal também estão entre os que tiveram o maior crescimento dos registros por caçadores, atiradores e colecionadores (CACs), ficando atrás apenas da região militar que engloba o Rio de Janeiro e o Espírito Santo. 

A principal consequência do armamentismo somado ao desmonte da fiscalização ambiental é o aumento da violência. No ano passado, 10 das 30 cidades com maiores taxas de mortes violentas intencionais do país estão na Amazônia Legal, quase todas nas cercanias de terras indígenas. “Em todas as regiões do Brasil, a letalidade diminuiu, mas na Amazônia aumentou”, completa Aiala Colares, pesquisador da Universidade Estadual do Pará.

Colabora para o cenário a ideia predominante dos militares de que a Amazônia “segura” é uma floresta “ocupada”. “Eles acham que é preciso grilar, que tem que ter garimpo, porque é isso que vai povoar a região e deixá-la protegida”, afirma a professora de política internacional da UFRJ Adriana Marques.

A “ameaça” de invasão da Amazônia – que justificaria a necessidade de “protegê-la” por meio da ocupação – já foi representada pelos Estados Unidos, que no século 19 se expandiu e incorporou um pedaço do México. Já na época da ditadura militar, o principal temor era de que a região servisse de abrigo para guerrilheiros comunistas. Com o fim da União Soviética, o foco foi transferido para uma suposta cobiça estrangeira camuflada no ambientalismo de ONGs e países europeus. Servindo aos interesses das elites locais, o “inimigo” mudou, mas o discurso não.

“O governo Bolsonaro se apropria dessas teorias conspiratórias que já circulavam para dizer que a Amazônia é cobiçada e ele vai defendê-la. Na verdade, a bancada ruralista, a bancada da bala e os militares já eram bolsonaristas muito antes do Bolsonaro”, considera a professora da UFRJ.

Consulte o Ruralômetro, ferramenta que monitora como a ação dos deputados federais afeta o meio ambiente e os povos do campo.


Edição: Gisele Lobato

Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2020 2611 0/DGB0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil


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