Em uma decisão inédita, a Justiça do Trabalho condenou uma produtora de sisal na Bahia por ter comprado matéria-prima produzida com trabalho escravo. Como foi a primeira vez nesse setor que uma empresa é responsabilizada por usar mão de obra escrava em sua cadeia produtiva, a expectativa é a de que a decisão ajude a coibir as históricas violações trabalhistas na produção do sisal, um mercado que faturou mais de 282 milhões em 2020.
A Sisalândia Fios Naturais foi condenada após o resgate de trabalhadores escravizados nas instalações de um de seus fornecedores. O grupo – com 12 pessoas – trabalhava em condições degradantes em Várzea Nova, na Chapada Diamantina (BA), e foi resgatado em outubro de 2020.
Ainda que a Sisalândia não tenha contratado diretamente os trabalhadores, ela deve ser responsabilizada por se beneficiar da situação, segundo o procurador Ilan Fonseca, do Ministério Público do Trabalho. Para ele, a decisão tem um efeito “pedagógico” e pode gerar consequências positivas na ponta da cadeia. “O recado está dado para as grandes marcas e redes de supermercado: é preciso ficar atento porque a responsabilidade é de cada um que se beneficia em setores onde há violações de direitos humanos”.
Na sentença, o juiz do Trabalho Carlos José de Souza Costa reiterou que a empresa é responsável por possuir em sua cadeia produtiva pessoas que exploram trabalho escravo e que “consciente e de forma reiterada” optaram por comprar de fornecedores que deixam de cumprir direitos trabalhistas para de “diminuir os custos com a produção”. De acordo com a decisão, a Sisalândia terá de pagar uma indenização de R$ 1 milhão (a ser destinado a entidades escolhidas pelo MPT) e promover mecanismos de controle permanente em sua cadeia produtiva para evitar que haja trabalho escravo em sua cadeia produtiva novamente.
Procurada pela Repórter Brasil, a Sisalândia afirmou que a condenação é “injusta” e que entrou com um recurso para reverter a decisão. A empresa nega que tenha comprado matéria-prima do produtor autuado. (Leia a nota na íntegra)
Com mais de 50 anos no ramo e sede em Retirolândia (BA), a Sisalândia promete em seu site fornecer produtos que “valorizam o meio ambiente, a segurança e a saúde no trabalho”. Do sertão da Bahia, a produção chega até os Estados Unidos, Europa, África e Ásia.
Mas se no exterior o produto é valorizado – o Brasil é o maior produtor do mundo – , no interior do país a realidade é diferente. A fibra do sisal é feita a partir de um cacto, em um processo artesanal e não raro, perigoso: é comum ver trabalhadores com dedos e mãos mutilados pelo chamado “motor paraibano”, máquina que tira as fibras da planta. Utilizado para produção de cordas, tapetes e outros produtos têxteis, o sisal tem grande aceitação no mercado internacional por concorrer com outras fibras sintéticas.
O ‘dono do motor’
A operação de resgate culminou na condenação da Sisalândia ocorreu em outubro de 2020, quando fiscais do trabalho percorreram a Chapada Diamantina e resgataram 37 trabalhadores em condições análogas à de escravizados. Destes, 12 viviam na Fazenda Ouro Verde,, fornecedora da Sisalândia. Jean Clebson Araújo Magalhães, conhecido comerciante de fibras da região, foi identificado como o empregador.
Os trabalhadores viviam em condições precárias, sem água potável para beber ou tomar banho. A água era armazenada em galões que já haviam sido utilizados para guardar óleo para motores. Nenhum dos funcionários tinha carteira assinada, e todos ganhavam menos de um salário mínimo – em alguns casos o valor não chegava a R$ 400 reais por mês.
Uma das quatro mulheres resgatadas relatou que teve que comprar seu próprio equipamento de segurança e que a alimentação era “arroz e feijão, às vezes carne”. Além disso, em pleno auge da pandemia de Covid-19, os trabalhadores tinham que dividir um único copo plástico para beber água. A fiscalização também encontrou um dos trabalhadores passando mal, com tosse e dificuldade para respirar.
As condições precárias são comuns na primeira fase do beneficiamento do sisal: colheita, retirada das fibras no “motor paraibano” – a etapa mais perigosa do processo –, secagem e armazenamento. Depois disso, as fibras são levadas para a cidade e de lá vendidas para as indústrias, que finalizam o processo.
Magalhães fazia a ponte entre a etapa rural e urbana do beneficiamento do sisal. Após retirar a fibra seca da Fazenda Ouro Verde, em Várzea Nova, a estocava e depois enviava para indústrias como a Sisalândia, em Retirolândia.
Os trabalhadores atuavam na completa informalidade, o que se estendia para as vendas – realizadas sem emissão de nota fiscal. Magalhães era o dono da máquina de processamento do sisal e exigia o fornecimento exclusivo da produção, o que, na avaliação da Justiça do Trabalho, configura numa relação trabalhista.
O vínculo foi reforçado por Pedro*, que trabalhava na Fazenda Ouro Verde desde 2016. Naquele ano, contou Pedro aos fiscais, Magalhães emprestou seu motor e combinou que o trabalhador ficaria responsável por organizar a atividade e arregimentar mais pessoas para beneficiar o sisal. Todas as tratativas foram feitas “de boca”.
Ainda que detivesse a totalidade da produção, Magalhães, pelo menos no papel, não era o dono da terra. O real proprietário, sobre o qual poucos trabalhadores tinham ouvido falar, recebia 30% do valor produzido da fibra seca. Esse tipo de acordo é comum no trabalho com o sisal, explica o professor Onildo Araújo da Silva, da Universidade Estadual de Feira de Santana. “É uma espécie de arrendamento. Os trabalhadores retiram a fibra do campo e o proprietário fica com um percentual, mas sem se envolver com a contratação”.Em nota, a Sisalândia destacou que possui uma série de certificações, que incluem medidas contra o trabalho infantil e que sempre teve “um certo nível de controle” com os fornecedores, estimados em mais de 50. No entanto, a Repórter Brasil entrou em contato com o Inmetro, que afirmou que “não há fiscalização por parte do Inmetro em relação aos sistemas de gestão das empresas certificadas ISO 9001. À reportagem, o Instituto Baiano De Metrologia E Qualidade (Ibametro) disse que não certifica mais o produto da Sisalândia (Leia na íntegra)
Desde que a ação entrou em curso, a empresa tomou medidas para monitorar os produtores de sisal, adotando critérios para avaliar as condições de trabalho, como qualidade da alimentação, moradia e higiene. Um relatório de março de 2022 afirma que um funcionário visitou “cada uma das bases físicas dos produtores”, mas o documento lista apenas 17 fazendas – entre os “mais de 50” informados pela empresa em nota. Durante a visita, de acordo com o relatório, “não houve registro de não conformidades”.
Por telefone, André Martins, advogado e sócio da Sisalândia, admitiu que fazer o controle de todos os fornecedores é “desafiador”.
Justiça rebate empresa
Em 2020, durante audiência administrativa, Magalhães admitiu que já havia vendido sisal para a Sisalândia e que a produção de outubro, quando ocorreu a fiscalização, seria negociada com a empresa. Procurado pela reportagem, ele confirmou o vínculo com a Sisalândia, mas negou qualquer relação com os trabalhadores resgatados: “só fazia comprar a produção e vender, não tinha vínculo trabalhista”.
À Repórter Brasil, a Sisalândia afirma que jamais adquiriu “sequer 1 kg” de matéria-prima de Magalhães e que o “único ‘elo de ligação’ do produtor fiscalizado e a empresa foi sua palavra”.
Mas para a Justiça do Trabalho, a relação entre o empregador e a empresa é clara. Além do depoimento de Magalhães, a sentença resgatou uma postagem no Facebook, feita após a fiscalização, em que a empresa afirma ter suspendido as compras do produtor fiscalizado. O post, na avaliação do juiz, pode ser lido como uma confirmação da relação entre as partes. A empresa diz que referia-se a outros vendedores, o que foi contestado na decisão.
“[A empresa] escolheu por firmar contratos comerciais com empresas que não obedeciam à legislação trabalhista vigente para, assim, diminuir seus custos de produção”, avalia o juiz.
Além disso, quando foi ouvido pelos fiscais, ainda em 2020, Magalhães foi junto com o advogado André Martins, um dos sócios da Sisalândia e ex-prefeito de Retirolândia. Por telefone, Martins disse que foi contratado para acompanhar o empregador pontualmente na audiência, e que “não teve nenhuma ligação com a empresa”. Hoje ele representa a Sisalândia no processo movido pelo Ministério Público do Trabalho.
Ouro verde do sertão
Estima-se que a indústria do sisal na Bahia é composta por 14 a 15 empresas concentradas nas mãos de poucas famílias. A maioria enriqueceu nos anos 60 e 70, quando o sisal ficou conhecido como “ouro verde do sertão”.
“Existe uma concentração extrema de renda no processo na cadeia produtiva de sisal. O trabalho ocupa uma mão de obra imensa, mas o valor pago pelo trabalho sempre foi muito baixo. A informalidade é a regra”, explica Onildo Silva, da Universidade da Bahia.
O próprio presidente do Sindifibras, entidade que representa o setor na Bahia, compartilha dessa avaliação. Em entrevista à Record, após afirmar que a situação não era grave, ele esqueceu de encerrar a videochamada e comentou que “o esquema é completamente irregular”. A Repórter Brasil procurou Andrade por meio da Sindifibras, mas não houve resposta.
Mesmo há dez anos atuando no combate ao trabalho escravo, André Wagner, da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), se espantou com a situação no sertão baiano. “Ficamos chocados com a pobreza e com a dependência da atividade do sisal, as pessoas ficam reféns”. Para ele, a responsabilização da empresa é importante para gerar mudanças na base da cadeia, onde as violações acontecem. “A empresa lucra com base no trabalho exploratório”.
A operação, pioneira no setor do sisal, não foi uma ação isolada. De acordo com Wagner, a Detrae criou um projeto de fiscalização com ações a longo prazo, que deve ser retomado.
Decisões como a da Sisalândia já haviam acontecido na indústria têxtil, como no caso da marca de roupas Zara, condenada em 2017 por irregularidades em um de seus fornecedores.
*Nome fictício para proteger a identidade do trabalhador