Flagrada sete vezes com trabalhadores em situação análoga à escravidão em suas obras, a última delas no ano passado, a construtora MRV assinou em agosto um acordo com o governo federal que a deixa de fora da “lista suja” do trabalho escravo. Com isso, a empresa garante acesso a crédito e evita constrangimentos que poderiam dificultar novos negócios.
Pelo texto negociado com a Advocacia Geral da União e o Ministério do Trabalho desde 2018, homologado neste mês, a MRV se compromete a pagar débitos e direitos trabalhistas dos resgatados, além de uma indenização por dano moral individual de R$ 10 mil – exceto nos casos em que houve negociação com trabalhadores.
A construtora terá ainda que pagar uma multa por dano moral coletivo de R$ 7 milhões – que corresponde a apenas 0,7% do lucro líquido da empresa em 2021. O valor também chama a atenção considerando que, só nas últimas três eleições, Menin e seus dois filhos que ocupam cargos executivos na construtora, Rafael e Maria Fernanda, destinaram R$ 3,6 milhões para o financiamento de campanhas políticas – mais da metade da multa estipulada.
A empresa também terá que pagar R$ 1 milhão para ressarcir a União dos custos das operações de resgate.
Devido à “vigorosa reincidência do grupo empresarial” na prática de trabalho escravo, servidores do Ministério do Trabalho enviaram nota técnica à AGU criticando os termos do acordo. Desde 2011, auditores fiscais do Ministério do Trabalho já resgataram 230 trabalhadores dos canteiros da companhia fundada e administrada pelo empresário Rubens Menin.
O acordo é um “prejuízo imenso” para o país, avalia a procuradora do Trabalho Lys Sobral Cardoso, que coordena a Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Ela diz que a medida enfraquece a “lista suja”, que é um dos principais instrumentos para a erradicação do trabalho escravo no Brasil e tornou o país “referência mundial” no assunto. A homologação do acordo é definitiva, uma vez que já transitou em julgado, mas o MPT estuda uma maneira de pedir sua anulação.
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Além dos valores a pagar, o documento estabelece que a MRV precisa criar um programa de monitoramento sobre violações trabalhistas e canais internos de denúncias, além de informar às empresas terceirizadas que elas devem respeitar os direitos humanos e dos trabalhadores. Prevê também que empregados que foram vítimas ou fizeram denúncias não podem ser discriminados. O texto determina ainda a criação de oito projetos sociais e a promoção de campanhas educativas, dentre outras medidas.
Caso descumpra os itens previstos, deverá pagar uma multa de R$ 5 milhões. Se a empresa voltar a ser flagrada com trabalho escravo, entrará na lista suja pelo novo caso, mas o texto atual não veda que um segundo acordo possa ser firmado no futuro.
Questionada sobre as quantias negociadas com a MRV, a AGU disse que as tratativas não visaram arrecadar valores para a União nem têm caráter punitivo. “O propósito do acordo é atacar o ciclo vicioso do trabalho análogo à de escravo”, disse em nota.
Já a MRV disse que o acordo judicial é uma possibilidade regular e legítima e que as condições, obrigações e responsabilidades previstas no instrumento são adequadas e proporcionais. “A MRV nunca reconheceu – porque nunca praticou – as condições lançadas pela fiscalização [trabalho escravo]. O acordo possibilita encerrar os processos sem discutir o mérito da controvérsia. A empresa não está na lista. Todos os seus casos ainda estão em discussão”, afirmou em nota (leia a íntegra das respostas).
Guerra contra a “lista suja”
A MRV possui longo histórico de atuação contra a “lista suja”. Por duas vezes, a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) questionou o cadastro de empregadores autuados pelo crime no Supremo Tribunal Federal (STF). Rubens Menin presidia a entidade, representando a MRV, nas duas ocasiões.
A primeira ação levou à suspensão da relação pelo STF, do final de 2014 até maio de 2016. Depois disso, o governo Michel Temer manteve a lista fora do ar até ser obrigado pelo Ministério Público do Trabalho a publicá-la em março de 2017. Em setembro de 2020, em resposta à segunda das ações movidas pela associação, o STF confirmou, por unanimidade, a constitucionalidade da “lista suja” e destacando sua importância como instrumento de transparência pública.
A MRV também esteve envolvida indiretamente em outra tentativa de enfraquecimento da fiscalização trabalhista. Em outubro de 2017, o governo federal publicou uma portaria que dificultava a libertação de escravizados e que alterava a definição do crime. Para justificar a medida, o então presidente Temer divulgou quatro autos de infração de irregularidades banais, afirmando que elas haviam levado os auditores fiscais a considerarem um caso como “condições degradantes” – um dos elementos que caracterizam trabalho escravo segundo o artigo 149 do Código Penal.
Temer, contudo, não divulgou à imprensa os outros 40 autos de infração lavrados na mesma fiscalização, conforme a Repórter Brasil revelou à época. As omissões incluíam problemas graves, como o não pagamento de salários, alojamentos superlotados e condições inadequadas de higiene. O então presidente também ignorou que aquela fiscalização já havia sido julgada pela Justiça do Trabalho, que condenou o empregador. A obra era em um condomínio sob responsabilidade da MRV, em Americana (SP).
A ministra Rosa Weber, do STF, suspendeu a portaria. Sob pressão de parlamentares, magistrados, procuradores, sociedade civil, empresários brasileiros e investidores estrangeiros, o governo Temer voltou atrás e revogou a medida no final daquele ano.
11 anos de escravidão
Os problemas da MRV com a fiscalização começaram em 2011, quando trabalhadores em condições análogas à escravidão foram resgatados em canteiros de obras da empresa em Goiânia (GO), Curitiba (PR) e em Bauru e Americana, no interior paulista. Após os flagrantes, a construtora conseguiu liminares judiciais para ficar de fora da “lista suja”, que depois foram revogadas, o que a fez ser incluída no cadastro duas vezes, em 2012.
Em 2013, ela chegou a firmar um acordo com o Ministério Público do Trabalho, mas no mesmo ano voltou a ser flagrada com trabalho escravo em um canteiro de obras em Contagem (MG). No ano seguinte, mais um resgate, dessa vez em Macaé (RJ).
“A moradia era ruim. Os sanitários, péssimos, com fezes escorrendo. Os trabalhadores tinham de tomar banho usando botas. O refeitório ficava em cima dos sanitários. O cheiro era insuportável. Ninguém consegue fazer sua refeição em um local cheirando a urina”, relata Márcia Albernaz, auditora-fiscal que comandou a fiscalização em Macaé.
O flagrante mais recente aconteceu em maio do ano passado, quando a minuta do acordo já estava quase finalizada. Uma operação realizada em Porto Alegre e São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, resgatou 16 trabalhadores de canteiros da empresa. As vítimas haviam sido aliciadas em cidades do interior do Maranhão por uma intermediadora de mão de obra, tiveram que pagar até R$ 500 pela vaga – o que é proibido por lei – e receberam promessas enganosas de salários e condições de trabalho.
O cadastro de empregadores responsabilizados por mão de obra análoga à de escravo, ou “lista suja”, é uma base de dados publicada semestralmente, desde novembro de 2003, pelo Ministério do Trabalho. Os empregadores flagrados têm direito à defesa administrativa em primeira e segunda instâncias e permanecem no cadastro por dois anos, a menos que façam um acordo com o governo. Nesse caso, seguem para uma lista de observação e podem sair após um ano caso cumpram as condicionantes.
O cadastro é citado por agências das Nacões Unidas, como a Organizacão Internacional do Trabalho e o Alto Comissariado das Nacões Unidas para os Direitos Humanos, como um dos mais importantes instrumentos para o combate à escravidão contemporânea em todo o mundo. Empresas do Brasil e do exterior consultam o cadastro para fazer gerenciamento de risco de seus negócios, o que pode levar os listados a terem dificuldades em obter empréstimos, fechar investimentos ou fazer negócios de venda e compra.