Quando chegam ao consumidor brasileiro ou mesmo aos do exterior, os cafés tipo premium vindos de duas fazendas de Minas Gerais estão embalados em pacotes gourmet, com selos de qualidade, certificados de origem e slogans de sustentabilidade. Mas na outra ponta do processo, nos cafezais, equipes de fiscalização encontraram uma realidade bem diferente: trabalho escravo.
Ao todo, 27 trabalhadores foram submetidos a condições análogas à escravidão nas fazendas Olhos D’Água e Klem, nas cidades mineiras de Campos Altos e Manhumirim, respectivamente. As duas propriedades contam com a certificação da Rainforest Alliance, principal organização internacional que fiscaliza cadeias produtivas de alimentos e atesta que o café é cultivado sob boas práticas socioambientais.
Em um dos flagrantes, na Fazenda Klem, a fiscalização trabalhista encontrou parte do grupo resgatado colhendo café de meias e descalços, pois não havia oferta de equipamentos de segurança, como botas. Aliciados na Bahia, os safristas atuavam na informalidade, sem registro em carteira ou garantia de direitos trabalhistas.
Procurada, a Rainforest Alliance disse que não sabia sobre os casos de trabalho escravo e que tomaria as medidas necessárias “de acordo com a severidade do caso” (leia a resposta na íntegra).
Café tipo exportação
O café produzido nas duas fazendas é exportado para diversos países, especialmente na Europa e América do Norte.
A Fazenda Olhos D’Água tem o selo de origem Cerrado Mineiro, que garante acesso a mercados que buscam qualidade – e que aceitam pagar um preço maior por isso. O café com essa denominação de origem só pode ser comercializado por exportadoras credenciadas. É o caso da Ally Coffee, que pertence ao Grupo Montesanto Tavares, uma das maiores empresas do agro no Brasil, além da multinacional NKG, fornecedora de gigantes do café, como Nestlé e Lavazza.
Em suas redes sociais, a Ally Coffee ressalta a parceria comercial com a Fazenda Olhos D’Água. A propriedade tem como dono Marcelo Assis Nogueira, autuado pelo Ministério do Trabalho e Previdência pela submissão de 20 trabalhadores a condições análogas à escravidão entre 13 de julho e 4 de agosto. Nogueira é sócio, junto com o cafeicultor Flavio Ferreira da Silva, da Bioma Café. Segundo descrição nas redes sociais, a empresa tem a “sustentabilidade como premissa”.
Outra relação comercial da Fazenda Olhos D’Água se dá com a Nucoffee, programa de qualidade da Syngenta, uma das maiores fabricantes de agrotóxicos do mundo. O mercado norte-americano é o principal destino do produto adquirido pela empresa no Brasil, por meio da sua subsidiária Nutrade Comercial Exportadora. Um vídeo publicado no Youtube da Nucoffee mostra a propriedade e apresenta detalhes da produção da Fazenda Olhos D’Água e de outros cafezais ligados à Bioma Café.
Questionada sobre o caso, a Nucoffee afirmou apenas que o produtor autuado lhe disse que já regularizou a situação com os órgãos competentes. Também declarou que não aceita fornecedores cadastrados na “lista suja” do trabalho escravo e que apoia práticas de sustentabilidade na cultura de café por meio de um programa voltado para produtores rurais.
A Ally Coffee não respondeu aos questionamentos enviados pela Repórter Brasil.
O produtor Marcelo Assis Nogueira negou a prática de trabalho escravo na Fazenda Olhos D’Água. Em nota, a advogada de Nogueira, Ana Paula Rezende, afirmou que os auditores fiscais não flagraram os safristas trabalhando de maneira irregular. “Os entendimentos dos fiscais basearam-se em depoimentos de trabalhadores encontrados em fazenda diversa e desconhecida deste empregador, que supostamente haviam trabalhado na fazenda no mês anterior ao da fiscalização”, disse. Veja as respostas na íntegra.
Segundo registros alfandegários acessados pela Repórter Brasil, uma subsidiária espanhola da multinacional NKG, uma das principais compradoras mundiais de café em grãos, possui histórico de compra de café da Fazendas Klem Importação e Exportação de Cafés. A família Klem é dona de diversos cafezais na região das Matas de Minas e ostenta dez selos de certificação em seu site. A empresa também produz e comercializa o seu próprio café orgânico. Em 6 de julho, 7 trabalhadores foram resgatados em uma das propriedades do grupo, em Manhumirim (MG).
Procurada pela Repórter Brasil, a NKG disse que pelo menos uma das companhias ligadas ao grupo já comprou café das Fazendas Klem no passado, mas que a última aquisição ocorreu em 2020. A multinacional também disse que a sua subsidiária brasileira, a NKG Stockler, removeu a Fazendas Klem do seu sistema de fornecedores após ter sido informada pela Repórter Brasil sobre o caso de trabalho escravo. Leia a íntegra.
Certificação não garante respeito aos direitos trabalhistas
“Café premiado ou certificado não é nenhuma garantia de dignidade aos trabalhadores e de respeito aos direitos trabalhistas”, critica o sindicalista Jorge Ferreira dos Santos Filho, coordenador da Articulação dos Empregados Rurais do Estado de Minas Gerais (Adere/MG).
O coordenador afirma ainda que a Adere recebe com frequência denúncias de desrespeito aos direitos trabalhistas em propriedades rurais que produzem e comercializam mercadorias de alto valor agregado. Entre os motivos, segundo ele, estão as poucas fiscalizações por parte do governo federal, a falta de transparência das certificadoras, a omissão de grandes empresas que compram de fazendas que desrespeitam a lei e a garantia de impunidade na Justiça.
“Estamos diante de um modelo de produção capitalista, em que o dinheiro vale mais que a saúde e a vida dos seres humanos, que o meio ambiente e que a dignidade das pessoas”, diz Santos Filho.
Sem banheiro, nem EPIs
A lista de prêmios da Fazenda Olhos d’Água-Bioma contrasta com a situação trabalhista encontrada na lavoura. Na propriedade, conforme apuraram auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Previdência (MTP), em uma operação conjunta com o Ministério Público do Trabalho e agentes da Polícia Rodoviária Federal, 20 pessoas foram submetidas a situação análoga à escravidão na colheita do café. Três das vítimas tinham menos de 18 anos de idade, sendo uma delas uma menina adolescente de 15 anos.
De acordo com o relatório da fiscalização, foi constatado uma “supressão generalizada de direitos trabalhistas”. Aliciados por um intermediário que atua na região, os safristas não tinham carteira de trabalho assinada e nem pagamento regular dos salários. “Os trabalhadores faziam suas refeições no chão, embaixo dos pés de cafés; faziam suas necessidades fisiológicas no mato; precisavam comprar seus equipamentos de proteção individual […] pois não eram fornecidos pelo empregador; não havia reposição de água potável”, afirma um trecho do relatório.
Os depoimentos dos trabalhadores foram tomados dias após o fim do contrato de trabalho na Fazenda Olhos D’Água, no dia 4 de agosto. O empregador Marcelo Assis Nogueira foi autuado pelas violações indicadas e teve que custear a passagem de volta dos trabalhadores para a Bahia, além de realizar o pagamento de multas.
As vítimas disseram, ainda segundo o relatório, que durante o período em que permaneceram na fazenda receberam um dia de dispensa do gerente local. O objetivo seria evitar que eles fossem vistos por uma vistoria agendada pela certificadora Rainforest Alliance.
A advogada do empresário negou que isso tenha acontecido: “Desconhecemos e discordamos por completo de tal afirmação”. Já a Rainforest Alliance afirmou que requisitou à auditoria responsável que apurasse esta informação. Leia as respostas na íntegra aqui.
Orgânicos de um lado, precariedade de outro
No dia 6 de julho, sete trabalhadores foram resgatados após fiscalização do Ministério do Trabalho e Previdência, com apoio da Polícia Militar, no cafezal das Fazendas Klem em Manhumirim (MG).
Arregimentadas no município baiano de Caetanos com a promessa de bons salários, as vítimas não receberam calçados ou outros equipamentos de segurança para trabalhar. Tampouco dispunham de um abrigo para proteção contra sol e chuva ou para realizar as refeições na lavoura.
No primeiro dia de serviço, os trabalhadores relataram que, após chegar à fazenda, tiveram que ir a pé para a zona urbana de Manhumirim para comprar mantimentos, como comida, roupas e produtos de higiene. Já o alojamento da fazenda era bastante precário: a água da torneira era de má qualidade, com coloração; não havia onde armazenar os alimentos; o banheiro não funcionava, o que levava as pessoas a terem que realizar as necessidades fisiológicas no mato, ao relento.
As condições de trabalho em que as vítimas se encontravam destoam da impressão causada pelos dez selos de certificação de boas práticas que a fazenda exibe em seu site, onde se lê que “a mão-de-obra humana […] é uma aliado fundamental na produção, onde o homem e o café convivem em perfeita harmonia”.
Além da Rainforest Alliance, o cumprimento de padrões socioambientais das Fazendas Klem também é chancelado pela UTZ (que pertence à Rainforest). O grupo também possui outros três selos que permitem a venda de produtos orgânicos no Brasil, EUA e União Europeia, bem como outros cinco selos que atestam o cultivo de grãos especiais.
Em uma segunda nota enviada à reportagem, a Rainforest Alliance afirmou que a propriedade rural onde foi encontrado trabalho escravo não é a mesma para a qual concedeu o selo de certificação. De acordo com a entidade, as Fazendas Klem são um grupo de empresas que pertencem a uma mesma holding e a área certificada se encontra em Luisburgo (MG). O município fica a 31 km de Manhumirim, onde ocorreu o flagrante de trabalho escravo.
Outro dos selos usados pela Fazendas Klem, o de orgânicos, é concedido pela Divisão de Orgânicos do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Procurado, o órgão afirmou que teve acesso às infrações emitidas pelos auditores fiscais do Ministério do Trabalho e retirou o nome do produtor do Cadastro Nacional dos Produtores Orgânicos.
A pasta também informou que investigará o ocorrido para decidir sobre manter ou retirar o certificado da fazenda. “Uma vez concluído o processo e confirmadas as irregularidades, o autuado será penalizado pelo descumprimento da legislação trabalhista e terá seu certificado de produtor orgânico cancelado”, declarou a assessoria de imprensa do MAPA.
Após o resgate dos trabalhadores, o empregador das vítimas e sócio da fazenda, Cesar Viana Klem, realizou o pagamento das verbas rescisórias e multas trabalhistas e custeou a passagem de volta delas para o seu município de origem.
A Repórter Brasil questionou a administração da propriedade, que negou que se tratava de trabalho escravo e afirmou que: “estes fatos não condizem com a verdade, haja vista que a empresa propõe sempre o bem-estar dos funcionários e possui o comprometimento com as normas legislativas”. Confira a resposta na íntegra.
*Colaborou Poliana Dallabrida
Edição: Mariana Della Barba