JBS, Amaggi e Bunge compram soja de fazendeiros desmatadores em Mato Grosso para produzir ração

Investigação da 'Repórter Brasil' mostra que aviários da JBS têm fornecedores de grãos que produziram em áreas desmatadas na Amazônia e no Cerrado
Gil Alessi
 06/10/2022
A fábrica de ração da JBS/Seara em Tangará da Serra (MT), destino final da soja comprada de desmatadores no Mato Grosso. Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil

Em alguns trechos dos acostamentos da rodovia BR-163, entre Sinop e Lucas do Rio Verde, no norte do Mato Grosso, famílias de baixa renda se dedicam a varrer e coletar a soja e o milho que caem das caçambas de caminhões que cruzam o estado, principal produtor de grãos do país. Elas usam essas sobras para alimentar seus animais.

É o mesmo uso que as grandes corporações dão aos grãos que compram. Mas as lavouras de soja e milho no Cerrado e na Amazônia, cultivadas principalmente para servir para a alimentação de frangos, porcos e outros animais, estão entre os principais vetores do desmatamento no país. E apesar dos compromissos socioambientais que assumiram, as companhias do setor fazem negócios com fazendeiros que destroem o meio ambiente.

É o que mostra uma investigação exclusiva da Repórter Brasil, que identificou diversas fazendas no MT que desmataram a Amazônia e o Cerrado para o plantio destes grãos – depois comprados por Amaggi, Bunge e repassados à JBS para fabricação de ração que alimenta as aves que a companhia abate e vende sob uma de suas marcas, a Seara.

O relatório “Floresta Racionada – A soja e o milho utilizados como ração animal estão aumentando o desmatamento no Brasil”, disponível em inglês e português, mostra como empresários do agronegócio driblam os mecanismos de controle e legislações ambientais para produzir grãos e, depois, fazem negócios com empresas signatárias da Moratória da Soja, que veta a produção do grão sobre terrenos desmatados. Também foram rastreadas vendas de produtores de milho em fazendas irregulares diretamente para a JBS, o que também coloca em dúvida os sistemas de checagem que as grandes empresas utilizam para evitar compras de áreas desmatadas ou ilegais.

Entre 2008 e 2019, fazendas produtoras de soja desmataram foram responsáveis, sozinhas, por 20% do desmatamento em Mato Grosso, o maior produtor da commodity no Brasil,  segundo o Instituto Centro Vida (ICV). “Deixamos de utilizar as terras que poderiam produzir e alimentar pessoas com alimentos diversificados e de alta qualidade e as usamos para plantar grãos para fabricar ração de aves em escala industrial, criados em grande parte em condições inadequadas”, exemplifica José Ciocca, gerente de Agropecuária Sustentável da Proteção Animal Mundial.

As empresas mencionadas no relatório dizem que, no momento da compra, as fazendas cumpriam os requisitos socioambientais adotados por seus procedimentos de aquisição de matérias-primas. Veja a íntegra das respostas da JBS, Amaggi e Bunge aqui.


“Cerca de três quartos dos antibióticos consumidos no mundo são usados no agro, principalmente nos suínos e aves, inclusive de forma preventiva, para evitar que fiquem doentes. E isso tem gerado uma preocupação em termos de saúde pública: a resistência aos antibióticos”, lembra Ciocca.

Fazenda de soja sem inscrição estadual

Um dos empresários investigados é João Luiz Lazarotto, produtor de soja em Tapurah (MT), e dono da União e União II – duas fazendas coladas uma na outra. Em 2017 a segunda propriedade recebeu autorização para o desmatamento de 689 hectares de floresta amazônica – uma área que deu lugar ao plantio de soja já a partir de 2018, segundo imagens de satélite analisadas por especialistas a pedido da Repórter Brasil. Já em 2019, Lazarotto vendeu soja para a planta da Amaggi em Lucas do Rio Verde (MT), e para a unidade da Bunge, em Nova Mutum (MT). Ambas são fornecedoras da JBS/Seara e enviam regularmente lotes de grãos para a fábrica de rações da empresa.

Até aí, tudo certo – e dentro da lei.

O problema ocorre quando se analisa mais de perto a transação. As vendas foram feitas através da fazenda União, mas a Repórter Brasil descobriu que a União II não possui registro que permita a venda direta – ou seja, para escoar os grãos produzidos ali, Lazarotto, precisa utilizar notas fiscais com origem em outra propriedade. Isso levanta a suspeita de que esteja ocorrendo a “lavagem de grãos”, manobra feita para esconder a origem de commodities produzidas em área desmatada – ainda que possua autorização para desmate, a Moratória da Soja impediria a compra desse grão, pois veta produção em áreas desmatadas, mesmo que regularmente, após 2008.

Além disso, em 2020 o empresário foi autuado pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Mato Grosso por “desmatar a corte raso no ano de 2018, sem autorização do órgão ambiental competente, 9 hectares de vegetação nativa em área objeto de especial preservação”. Isso rendeu um embargo à fazenda União II, que já não estava mais vigente em setembro de 2022.

A evolução do desmatamento na propriedade de Lazarotto. À esquerda uma imagem de satélite antes da derrubada. À direita, já com a área desmatada.

A Repórter Brasil esteve nas fazendas de Lazarotto em julho de 2022 e constatou o risco de “contaminação” da produção da fazenda União com soja fruto de desmatamento plantada na União II. Isso porque as duas áreas de lavoura das propriedades contíguas ficam distantes pouco mais de um quilômetro uma da outra e são unidas por uma estreita faixa de terra cultivada ao leste de ambas. Este corredor de lavoura permite o manejo integrado das duas fazendas, bem como o transporte dos grãos da União II até os silos de armazenamento, que estão localizados na União.

João Luiz Lazarotto foi procurado por meio de seu advogado. Por telefone, ele pediu para que a reportagem enviasse perguntas pelo WhatsApp. As perguntas foram enviadas, mas nunca foram respondidas. E o representante do produtor deixou de atender as ligações.

Caminhoneiros ouvidos pela reportagem nas plantas da Amaggi em Lucas do Rio Verde e da Bunge em Nova Mutum confirmaram o envio de grãos destas unidades para a Seara em Tangará da Serra (MT). “Sai todo dia [carregamento de farelo para a JBS]”, afirmou um fretista sob condição de anonimato.

De acordo com funcionários locais da Bunge Nova Mutum, são enviadas diariamente “entre três e quatro cargas” de farelo daquela unidade para a fábrica de ração da JBS/Seara. A Repórter Brasil também obteve documentos que comprovam as relações entre as empresas.

Além de Lazarotto, a reportagem identificou outros quatro produtores rurais que vendem milho e soja plantado em áreas de desmatamento para a JBS/Seara de Tangará da Serra. Três deles vendem diretamente para a gigante, enquanto que um outro empresário escoa a produção para a Amaggi e Bunge, que por sua vez comercializam com a JBS. Acesse o relatório para ler todos os casos investigados.

Comida que vira ração

Anualmente, a JBS abate 4,4 bilhões de aves – é a líder global isolada nesta categoria, segundo a publicação Watt Poultry International. Apenas em Tangará da Serra, a empresa tem um complexo de granja que possui 24 galpões para a criação de aves e se estende por vários quilômetros na área rural, além de uma fábrica de ração – esta última é o destino final do farelo de soja e do milho fornecidos por produtores rurais e tradings para a JBS/Seara.

O relatório também traz propostas para tentar fechar as lacunas ambientais existentes no atual modelo de produção de grãos e aves. Dentre elas, o fortalecimento de mecanismos já em vigor, como o Código Florestal e a Moratória da Soja – que deveria ser ampliada para abranger também o bioma Cerrado. Mas também é preciso repensar o modelo de consumo de proteína animal em si, e os perigos que ele oferece.

APOIE

A REPÓRTER BRASIL

Sua contribuição permite que a gente continue revelando o que muita gente faz de tudo para esconder

LEIA TAMBÉM