Condições degradantes de trabalho, alimentação insuficiente e de má qualidade, excesso de jornada, tráfico de trabalhadores sem experiência para atividades de alto risco. Enquanto as atenções se voltam às primeiras partidas da Copa do Mundo da Fifa de futebol masculino, essas são algumas das condições a que os trabalhadores no Qatar são submetidos.
As críticas em torno da escolha do país árabe como sede já eram conhecidas e ganharam fôlego com novas denúncias sobre as condições dos trabalhadores. Em um relatório publicado no início deste mês pelo grupo de direitos humanos Equidem, os trabalhadores relatam rotina de trabalho forçado baseada na cultura do medo e da xenofobia – 90% dos 2,8 milhões de habitantes do país vieram de outras regiões. Além disso, os operários relatam um esforço dos empregadores para escondê-los durante as inspeções da Fifa e a ocorrência de mortes.
Essa, contudo, não é uma realidade apenas do Qatar, situações semelhantes são encontradas nos canteiros de obras brasileiros. Nos últimos 12 anos, 2.742 pessoas foram encontradas em situação análoga à de escravo na construção civil no Brasil, segundo dados do Ministério do Trabalho e Previdência. O pico de resgates aconteceu em 2013, quando o país realizou um grande investimento em obras de desenvolvimento e infraestrutura para receber a Copa do Mundo (2014) e as Olimpíadas do Rio (em 2016) e também no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento.
A pressa para a conclusão das obras agrava a falta de compromissos das empresas com a segurança dos trabalhadores. Na Copa do Mundo de 2014, por exemplo, nove brasileiros morreram na construção de estádios – que se somaram aos mais de 1.400 trabalhadores da construção civil que foram vítimas de acidentes fatais entre 2010 e 2014, de acordo com informações do Anuário Estatístico de Acidentes de Trabalho (AEAT) .
Não há uma estimativa de quantos trabalhadores morreram em obras de preparação para a Copa e o governo do Qatar não garante transparência sobre isso.
A Organização Internacional do Trabalho afirma que, em 2020, houve pelo menos 50 mortes e 500 feridos relacionadas ao trabalho naquele país. No começo do ano passado, o jornal inglês The Guardian publicou uma estimativa de 6.571 mortes de trabalhadores de Bangladesh, Índia, Nepal, Paquistão e Sri Lanka no Qatar entre 2010 e 2020, sem afirmar quantos estavam atuando na preparação da Copa.
“Tanto no Qatar quanto no Brasil, foram acidentes trabalhistas passíveis de serem evitados. Uma análise de risco adequada, uso de equipamentos de proteção, treinamento dos trabalhadores, tudo isso são fatores que poderiam ter evitado essas mortes”, afirma Giuliana Cassiano, auditora fiscal do Ministério do Trabalho.
A mão-de-obra da construção civil tanto aqui quanto no país sede da Copa não são muito diferentes. A maior parte dos trabalhadores encontrados em situações degradantes nos canteiros de obras são jovens e negros que saem de regiões pobres com pouca oferta de emprego. Normalmente, são aliciados ilegalmente e partem para locais que apresentam um “boom” de crescimento – conjunto de características que possibilitam a superexploração do trabalho.
Apesar de, no Brasil, a maioria dos resgatados da escravidão na construção civil serem brasileiros, também já houve resgates de haitianos e de cidadãos de outras nacionalidades. No Qatar, os explorados são estrangeiros.
O quadro piora com a exigência de metas e a possibilidade de terceirização e subcontratação. “Isso pulveriza a responsabilidade e desemboca nas costas do trabalhador, que é quem paga o preço dessa estrutura de descaso”, pontua Christiane Nogueira, procuradora do trabalho. “São raízes profundas de desrespeito e de violações da dignidade dos trabalhadores, como se não tivessem direitos”, completa.
Desrespeito à legislação
Após críticas recorrentes de ONGs internacionais e sindicatos, entre 2018 e 2021, o Qatar promoveu diversas reformas em sua legislação trabalhista, a fim de minimizar os abusos cometidos contra os trabalhadores. A nova lei estabeleceu um novo salário mínimo, proibiu que os operários trabalhassem ao ar livre em períodos de calor intenso e flexibilizou o sistema de apadrinhamento adotado por alguns países do Conselho de Cooperação do Golfo, conhecido como “kafala”. Ele impede que os imigrantes troquem de trabalho, abram uma conta bancária ou deixem o país sem prévia autorização do contratante que o trouxe, ou seja um controle total do empregador sobre o trabalhador.
A auditora fiscal Giuliana Cassiano afirma que há casos com retenção de documentos e pertences no Brasil, algo que se assemelharia ao “kafala”. “Às vezes, a gente tem retenção dos documentos pelo intermediador, pelo ‘gato’ ou pelo dono da empreiteira”. Quando isso acontece, raramente o trabalhador deixa o local de trabalho, pois quer reaver os documentos e receber o salário, ela diz. “É muito vergonhoso retornar ao seu local de origem sem nada na mão. Como eles vão dizer para suas famílias que foram enganados?”
Isso está previsto entre as situações que configuram o crime no Brasil, segundo o artigo 149 do Código Penal. São elas: o cerceamento da liberdade de se desligar do empregador (através de retenção de documentos e salários, violência psicológica, ameaças e agressões); jornada exaustiva (quando a jornada coloca em risco a saúde, a segurança e a vida da pessoa); servidão por dívida (com o aprisionamento por conta de uma dívida contraída de forma fraudulenta); e condições degradantes de trabalho (que também colocam em risco a saúde, a segurança e a vida).
Em 2019, uma fiscalização realizada em obras de restauração da Rodovia Raposo Tavares, entre os municípios paulistas de Itapetininga a Paranapanema, resultou no resgate de 12 trabalhadores de condições análogas à de escravo. Devido ao caso, o Consórcio SP 270, responsável pela restauração da rodovia e formado pelas construtoras SA Paulista, Ellenco Construções e Bandeirantes, foi incluído na mais recente “lista suja” do trabalho escravo (cadastro divulgado semestralmente pelo governo federal com o nome dos empregadores responsabilizados pelo crime). Procurado pela Repórter Brasil, o consórcio não se posicionou até o momento.
De acordo com o relatório de fiscalização, os trabalhadores viviam em dormitórios sujos que poderiam pegar fogo a qualquer momento. A maioria deles também não tinha recebido pagamento nos três meses que estavam ali, fazendo-os recorrer ao serviço social dos municípios e à ajuda de vizinhos para poderem se alimentar.
Esse tipo de situação não é incomum no Brasil. Em 2013, 111 migrantes nordestinos foram resgatados da obra de ampliação do Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, gerenciada pela ex-OAS, atualmente grupo Metha. Segundo a fiscalização, os trabalhadores se espremiam em 11 casas enquanto aguardavam ser chamados para o serviço. Constatou-se ainda o aliciamento de pessoas e a servidão por dívida. Em nota publicada na época, a construtora negou que as vítimas fossem seus empregados.
Escravizando com dinheiro público
Obras de metrôs, hidrelétricas, casas populares, a lista é longa quando se trata do financiamento público do trabalho escravo. Ao longo de anos, milhões de reais dos cofres estatais foram destinados a infratores trabalhistas.
A falta de fiscalização dos canteiros de obra por parte dos bancos financiadores e das empreiteiras é um dos principais erros, segundo Cassiano. “A contratante tem corresponsabilidade pelas condições de segurança e de saúde do meio ambiente de trabalho. Não é porque a legislação atualmente permite a terceirização que o empregador está no direito de submeter pessoas a condições ruins de trabalho”, afirma.
A procuradora Christiane Nogueira afirma que há bancos que realizam a consulta baseiam dos empregados incluídos na “lista suja” para determinar se haverá ou não o repasse de dinheiro, como inclusive determina resolução do Conselho Monetário Nacional. Contudo, além da imprescindível verificação da lista suja, seria importante realizar também uma análise rigorosa sobre as práticas do parceiro de negócios para assegurar que os recursos públicos não financiem obras de infratores.
“É possível consultar a Justiça do Trabalho, verificar matérias jornalísticas, pesquisar sobre aquela empresa, fazer uma busca sobre qual sua postura em relação aos direitos humanos e trabalhistas, porque às vezes não chega a ser trabalho escravo, mas é um caso gravíssimo de violação trabalhista que não consta na ‘lista suja’”, ressalta Nogueira.