STF abre as portas para ouvir demandas da população em situação de rua

Entre 2019 e 2022, o número de pessoas vivendo nas ruas cresceu 38%, chegando a 281 mil pessoas em todo país; durante audiência pública, demanda foi por política efetiva de moradia
Por Tássio da Silva
 23/11/2022

Brasília (DF) – Um homem revira um caminhão de lixo atrás de seus pertences, entre eles uma dentadura. Desesperado, ele se revolta acompanhado de uma música alta de um quiosque no calçadão de Copacabana, uma das praias mais famosas do Rio de Janeiro. A cena ocorreu neste mês de novembro e foi exibida, em um vídeo, em uma audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF), ocorrida nesta segunda (21) e terça (22), por Vânia Maria Rosa, coordenadora do Fórum Permanente sobre População Adulta em Situação de Rua do Rio de Janeiro.

Em um momento raro na alta corte do país, lideranças de pessoas em situação de rua puderam ser ouvidas pelo ministro Alexandre de Moraes, relator da ADPF 976, que exige medidas do Estado brasileiro para garantir dignidade a essa parcela excluída da população. Mais de uma dezena de lideranças contaram suas histórias das ruas e exigiram participar da formulação de políticas públicas.

A prioridade para uma política efetiva de moradia esteve entre as principais reivindicações dos movimentos sociais. Para Darcy da Silva Costa, do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, o acesso a um teto deve ser a porta de entrada para garantia dos demais direitos sociais a essa população.

Darcy comentou sua própria experiência, em que passou apenas 18 meses, de seus três anos vivendo nas ruas, recebendo assistência habitacional. “Foi fundamental pra mim quando senti uma segurança dentro de uma moradia, num espaço onde eu pudesse chamar de meu. Porque foi nesse momento em que eu comecei a me organizar a minha vida”. Mas ele mesmo disse que aquela situação foi uma exceção, que poucos têm a mesma oportunidade de superar a vida na rua.

Audiência no STF debate possíveis políticas públicas para dar dignidade a pessoas que vivem nas ruas (Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF)

Dividindo hoje um lar com sua companheira, Darcy defendeu a centralidade da pauta habitacional para uma mudança da realidade de quem está nas ruas. “O acolhimento provisório se tornou obsoleto porque a quantidade de pessoas que entram em situação de rua, por falta de ausência de garantias, em cada ano só aumenta. Hoje nos compreendemos que sem uma moradia tudo fica mais difícil”.

Outra questão importante levada pelas lideranças das pessoas em situação de rua foi o impedimento da apreensão de pertences pessoais e até o recolhimento até de animais de estimação por agentes do estado, como policiais e guardas civis, uma forma de desumanização desta população. Vânia Maria Rosa relatou a crueldade destas situações. “Isso é como matar essa vida que ainda nos resta, desde o momento que a gente está lá, naquele papelão, embaixo da marquise. É o extremo da falta de dignidade”.

Fernanda Balera, defensora pública em São Paulo e representante da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos, ressaltou que essa é uma das diversas violências que a população sofre nas ruas, a violação de direitos pelo próprio Estado. “O que se nota é um profundo desprezo por seres humanos em situação de extrema pobreza, um lamentável misto de higienismo social com a aporofobia [aversão a pessoas pobres]. Os agentes públicos subtraem e destroem os poucos bens e pertences das pessoas. Documentos pessoais e receitas médicas são destruídas. As pessoas não são informadas da destinação dos seus bens e tão pouco que precisam fazer para reavê-los.”

Medidas contra arquitetura hostil também foram pedidas pelos movimentos como forma de garantir a sobrevivência dessa população nas ruas. Fabiana Alameda Miranda, integrante do Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias Públicas Estaduais e Distrital nos Tribunais Superiores, pediu que o STF impeça a sua instalação. Para ela, “violações ocorrem também pela instalação pelo poder público de equipamentos de arquitetura hostil, tais como grades, bancos, com geometrias irregulares, jardins com plantas como cactos. Pedras sem nenhuma conotação estética, em formatos geométricos estranhos nas calçadas, embaixo de marquises, apenas para impedir que um corpo humano, que não tem para onde ir, possa descansar”.

Coincidentemente, a Câmara dos Deputados aprovou, nesta terça (22), um projeto de lei que proíbe a arquitetura hostil. A proposta, que já havia sido aprovada no Senado, foi apelidada de “Lei Padre Júlio Lancelotti”, que tem lutado contra esse tipo de construção. Agora o texto vai à sanção do presidente Jair Bolsonaro.

Nas ruas, vivem 281 mil pessoas

Entre 2019 e 2022, o número de pessoas vivendo nas ruas cresceu 38%, chegando a 281 mil pessoas em todo país. Marco Antônio Carvalho Natalino, pesquisador do IPEA que realizou essa estimativa, lamentou que o Brasil não conta com dados oficiais sobre o número de pessoas em situação de rua, mesmo que a contagem esteja prevista na Política Nacional para a População em Situação de Rua.

Seu trabalho foi realizado com base em informações oficiais de prefeituras e do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico). Mas para o pesquisador, os dados se referem ao tamanho dessa população que o poder público consegue enxergar. “Infelizmente, tanto o censo de 2010 e o de 2022, não incluiu pessoas em situação de rua, exceto em domicílios improvisados e coletivos.”

Crescimento da população em situação de rua é resultado das crises econômica e social pelas quais passa o país (Foto: Mídia NINJA)

O crescimento da população nas ruas, resultado das crises econômica e social pelas quais passa o país, é mais uma preocupação dos movimentos sociais após o período mais duro da pandemia. Medidas emergenciais foram tomadas em vários estados, mas a maioria já foi suspensa com a passagem do momento crítico dos casos de covid-19.

Para Samuel Rodrigues, do Movimento da População em Situação de Rua de Minas Gerais, a pandemia escancarou a realidade de quem vive sem um teto. “O que restou pra nós foi uma população muito maior na rua, por conta da pandemia e por conta das outras crises, da crise econômica, das crises sociais, da crise do trabalho. Reflexo da pandemia, reflexo dos serviços emergenciais que fecharam, mas também reflexo das crises estruturais que o país também foi submetido nesses últimos anos”, afirma.

O Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) reforçou que existe uma grande subnotificação do CadÚnico e estimou que, em média, 47% da população em situação de rua esta fora da base de dados federal para assistência social. A professora Maria Fernanda Salcedo Repolês, coordenadora do Observatório, destacou que “93% das pessoas em situação de rua no Brasil encontram-se em condições de extrema pobreza e pobreza e não estão acessando o programa de benefícios sociais”.

A atualização do CadÚnico pelas prefeituras também sofreu uma grande queda durante a pandemia, avaliou o Observatório, com apenas 36% dos municípios informando os dados da população em situação de rua em 2021 – o que incide diretamente na transferência de recursos para políticas públicas municipais.

Representantes de movimentos sociais denunciam atitudes que retiram a dignidade dessas pessoas, como recolhimento dos pertences e de seus pets (Foto: Carlos Moura/SCO/STF)

O senador Randolfe Rodrigues (REDE-AP), membro da equipe de transição do novo governo Lula, esteve presente no encerramento da audiência pública no STF. Randolfe afirmou que o país passou, nos últimos quatro anos, por um momento de empobrecimento da população, com aumento da fome e de pessoas sem moradia. Ele disse que o grupo de transição já iniciou diálogo com os movimentos e que enfrentar a pobreza é uma das prioridades do futuro governo.

“Nós vamos voltar a construir casa, vamos voltar a priorizar a construção de casas para aquelas pessoas que estão na rua possam ter um acolhimento”, promete.

Samuel Rodrigues avalia que nesse momento de transição do governo é necessário refletir sobre políticas estruturantes. “A expectativa é muito grande. Nós vivemos um período de retrocesso, mas se nós lembramos da população de rua, nós vamos falar de um segmento que aumenta a cada ano, independente de quem esteja no governo. Creio que agora é o momento de fazer uma reflexão e de pensar políticas estruturantes.”

Representantes do atual Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos também estiverem presentes na audiência e defenderam uma mudança da Política Nacional para População em situação de Rua, aprovada em 2009, nos governos petistas, para priorizar a questão habitacional.

Carlos Alberto Ricardo Júnior, coordenador de Direitos de Minorias Sociais e População em Situação de Risco, concordou com os movimentos: “ninguém supera a situação de rua sem acessar a moradia, nem com acesso ao trabalho. Se o trabalho vier isolado, sem acesso à moradia, a pessoa não permanece no trabalho. É fundamental criarmos política para isso”, diz. Mas afirmou que a pasta destinou menos de R$ 10 milhões de reais para projetos na área.

APDF 976

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) é um instrumento legal para concretização dos direitos fundamentais previstos na Constituição. A ADPF 976 é de iniciativa da Rede Sustentabilidade, do PSOL e do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que alegam que as condições desumanas de vida da população em situação de rua no Brasil são inconstitucionais. A ação, protocolada em maio deste ano, é relatada pelo ministro Alexandre de Moraes.

Durante a audiência, Moraes ressaltou que o Poder Judiciário tem que atuar para evitar que as pessoas cheguem à situação de rua, dar-lhes dignidades enquanto estão nas ruas e ajudá-las a sair dessa situação. “A questão é trazer subsídios para que nós possamos construir, com apoio de todos vocês, a possibilidade de medidas concretas, levando a cada ente federativo, a União, os estados e municípios, dentro do âmbito de suas competências, propostas concretas com execuções possíveis.”

A ADPF pede ao STF que determine que os executivos federal, estaduais e municipais promovam ações para preservar a saúde e a vida da população em situação de rua, com a adoção de medidas legais, orçamentárias e administrativas para auxiliar essas pessoas em condição de vulnerabilidade.

A defensora pública Fernanda Balera ressalta que a audiência foi um momento histórico que mostra sensibilidade do STF para o tema. “Eles não querem ser destinatários da política pública apenas, eles querem construir a política junto com poder público. E ninguém pode falar melhor do que é viver na rua do que as pessoas que tiveram trajetória de rua, que podem dizer o drama, das dificuldades que enfrentaram. Isso é essencial para uma democracia, eles terem espaço de participação popular”, conclui.


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