Agenda 2023: Para lideranças indígenas, Lula deve priorizar demarcação, fortalecer Funai e expulsar invasores

Rever cortes orçamentários que prejudicaram áreas como proteção aos isolados também precisa entrar na pauta; líderes reiteram a importância de decisões serem tomadas sempre em conjunto com povos originários
Por Ariene Susui
 07/12/2022

Com maracás e firmeza nos passos, os protestos de diferentes povos indígenas em Brasília foram constantes durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL). As manifestações refletem como os últimos quatro anos foram de protesto – e luta – para os indígenas brasileiros que, além de terem de enfrentar uma pandemia sem o apoio governamental prometido e necessário, seguem sofrendo com invasão de territórios, garimpo ilegal, madereiros e um governo anti-indígena.

As ameaças se traduzem em números: em 2021, foram 118 casos de conflitos relativos a direitos territoriais em 2021, 305 casos de invasões, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio, afetando diretamente 226 terras indígenas em todo o país, segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). As violências contra dos direitos indígenas durante a gestão Bolsonaro foram tantas que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) apresentou as violações a instâncias globais com o “Dossiê internacional de denúncias dos povos indígenas do Brasil”.

Expulsar invasores dos territórios foi elencado por associações indígenas como uma das ações prioritárias do governo Lula; os Kayapó (foto) sofrem com garimpeiros que ameaçam várias de suas aldeias, mas há outros povos cujos terras vem sendo invadidas por madeireiros ilegais e grileiros (Foto: Lucas Landau/Repórter Brasil)

Com a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o movimento indígena vem refletindo sobre quais os próximos passos para que seus direitos sejam contemplados na agenda de reconstrução do novo governo. Mas quais são os passos mais urgentes? Ouvimos lideranças e organizações indígenas para saber quais são eles e entender o desafio de implementá-los.

1. Demarcação de terras indígenas

Faz cinco anos que o Brasil não demarca terras indígenas – uma das promessas de Bolsonaro durante sua campanha. Essa deveria ser justamente a prioridade número 1 do novo governo, segundo as lideranças indígenas ouvidas pela reportagem. Marivelton Baré, presidente da Federação das Organizações indígenas do Rio Negro (Foirn), ressalta que há territórios que já estão prontos para a homologação. “O governo Lula deve homologar as terras indígenas que estão esperando  há muito tempo, onde já foram concluídas todas etapas de estudos antropológicos, ambientais e fundiário”.

O GT (grupo de trabalho) dos povos indígenas no governo de transição inclusive já entregou a relação de 13 terras indígenas com processos finalizados e que podem ser homologadas imediatamente. Localizadas em áreas das regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul, as áreas prontas para serem demarcadas incluem territórios de povos como Pataxó, Tremembé, Kaingang, Guarani, Tukano e Komama, entre outros.

2. Funai com mais isolados e sem militares

Um exemplo do desmonte das políticas pró-indígenas no governo Bolsonaro é o veto parcial ao orçamento previsto na Lei Orçamentária Anual (LOA) destinado à “regularização, demarcação e fiscalização de terras indígenas e proteção dos povos indígenas isolados”. 

Reverter esse corte orçamentário deveria ser um tema prioritário do novo governo, segundo o líder Beto Marubo, da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), território que concentra a maior presença de povos isolados do planeta. Ele destaca que é preciso  rever os orçamentos da Funai (Fundação Nacional do Índio) e da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), pois esse esvaziamento tem um impacto direto nas aldeias.

“É preciso reorganizar esses órgãos, repor os orçamentos. Esses setores estão funcionando apenas com uma parte dos recursos e isso ocasiona uma série de problemas nos nossos territórios e principalmente aos parentes isolados que vivem na região e precisam da proteção dos órgãos governamentais” afirmou Marubo. No Brasil, há registrados 114 povos indígenas em isolamento voluntário, segundo dados da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

Cortes severos no orçamento da Funai e sua militarização impacta diretamente a vida as aldeias, prejudicando, por exemplo, a segurança dos indígenas em isolamento voluntário; territórios também ficam mais propensos a invasões, que podem começar com a abertura de estradas, como no caso da Na terra indígena
Parabubure (Foto: Bruna Obadowski/Repórter Brasil)

A desfiguração da Funai tem prejuízos também na demarcação das terras indígenas, o que seria uma de suas principais funções. “A gente passou quatro anos sem efetivamente contar com uma atuação do Estado em relação à Funai, que foi completamente militarizada”, afirma o coordenador executivo da Apib, Kleber Karipuna. “E o problema da presença desses militares, no contexto do bolsonarismo, é o autoritarismo. Temos um histórico recente de gestores que atuam pontualmente perseguindo servidores indígenas e não-indígenas por simplesmente estarem apoiando o movimento indígena ou se colocarem contra determinada de decisão que iria contra a própria política indigenista”, explica 

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Atualmente, a Funai é presidida pelo delegado de Polícia Federal Marcelo Augusto Xavier, nome que agrada à bancada ruralista do Congresso. Favorável à mineração em terras indígenas, ele já foi assessor do secretário especial de Assuntos Fundiários, Nabhan Garcia, que também atua como presidente licenciado da União Democrática Ruralista. 

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“É preciso fazer um realinhamento da Funai, estamos em um momento muito propício para que os povos indígenas assumam o protagonismo, com a nomeação de representações indígenas que retomem a demarcação de terras, criem grupos de trabalho e voltem a esquentar a discussão sobre política nacional de gestão territorial das terras indígenas”, completa Karipuna.

Para a liderança indígena Maial Kaiapó, é preciso retirar todos os militares que estão ocupando a saúde índigena e a Funai. “Não é apenas rever os orçamentos, é preciso tirar os invasores de dentro dos órgãos indigenistas, o governo deve olhar para isso, precisamos urgente que essas pessoas desocupem nossos espaços que foram conquistados com muita luta”. Baré, da Foirn, lembra ainda que além de fortalecer Funai e Sesai, é crucial a criação do Ministério dos Povos Originários.

3. Revogação de portarias e expulsão de invasores

Bolsonaro, publicou inúmeras portarias que violam os direitos indígenas, como o PL 490/2007, que prevê a mudança no Estatuto do Índio sobre o processo de demarcação; o PL 191/2020, que abre os territórios indígenas para grandes empreendimentos e exploração dos recursos hídricos sem a consulta prévia, livre e informada.

Neste aspecto, Maial Kaiapó pontua a urgência na anulação dessas portarias e a necessidade da expulsão dos invasores: “Há muitos pedidos de retirada de pessoas que estão entrando nas terras para destruir a floresta, então acredito que a missão é  retirar essas pessoas que estão destruindo a nossa casa. Outra prioridade é a revogação imediata desses PLs que estão em tramitação no Congresso”. 

Lideranças reforçam que o próximo governo precisa ter claro a importância de as decisões serem tomadas sempre em conjunto com representantes dos povos originários (Foto: Mídia NINJA)

Para Beto Marubo, essas medidas são extremamente nocivas aos povos indígenas e a desintrusão de invasores têm que ocorrer em parcerias com várias instituições. “Para enfrentar o alto índice de criminalidade e narcotráfico que vem acontecendo junto às invasões das terras indígenas, é preciso uma atuação conjunta da Polícia Federal, Ibama e Polícia Ambiental. Também é fundamental colocar uma força permanente de fiscalização e monitoramento das terras indígenas”. 

4. Fortalecimento de políticas e fundos ambientais

Em novembro, os olhares do mundo se voltaram à COP-27, que ocorreu em Sharm El Sheikh, no Egito. Para o Brasil, essa edição contou com a presença do presidente eleito Lula e ficou marcada pela volta do Brasil aos principais debates sobre mudanças climáticas – um cenário que traz esperança aos movimentos indigenistas diante de tantos retrocessos na área ambiental nesses últimos quatro anos, juntamente com o estancamento em fundos voltados principalmente para a proteção da Amazônia. 

Toya Manchineri, coordenador da Coordenação das Organizações da Amazônia Brasileira  (Coiab), ressalta a importância  de o governo retomar o Fundo da Amazônia e pontua a necessidade do fortalecimento das políticas ambientais. “Vivenciamos tempos sombrios, mas é hora de retornarmos. Acredito que o novo presidente vai trazer de volta o Fundo Amazônia, que é fundamental para apoiar os projetos dos territórios indígenas. Mas claro que tudo tem que ser nos consultando, nada de cima para baixo e sim em diálogo”, afirma. “Não podemos nos esquecer da presença dos povos tradicionais nos principais debates oficiais sobre mudanças climáticas”. 

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Marubo enxerga que repor o quadro de recursos humanos nos órgãos de proteção ambiental, como IBAMA e ICMBIO será necessário “ Vai ter que contratar gente e isso significa aumento do orçamento, será um custo, mas é preciso, esses espaços é de total importância estarem dentro do planejamento do governo” finalizou Beto.

5. Educação específica e diferenciada

Um desafio para o governo Lula é a implementação com seriedade da educação específica dos povos indígenas, prevista na Constituição de 1988. Maial reforça que é preciso um olhar mais para as escolas indígenas: “A educação indígena específica que visa a realidade dos nossos povos têm que ser uma prioridade no governo Lula, e para isso acontecer é essencial a escuta dos nossos povos pelo MEC”. 

Beto Marubo relata que a falta de uma educação de qualidade têm feito muitos alunos saírem do território.“A educação na aldeia tem sido horrível, pelo menos na minha região, mas eu acredito ser padrão em outras regiões. É um dos motivos do aumento dos jovens deixarem suas terras”, afirma. “E isso tem gerado graves problemas sociais, como a prostituição, a coptação do narcotráfico, a violência, pois quando saem para cidade são esquecidos, ficam sem nenhum acolhimento”. 

Nas diferentes áreas abordadas nessas reportagem, todas as lideranças indígenas ouvidas afirmam esperar que as bancadas, deputados e aliados possam dialogar e reconhecer as representatividades indígenas, sempre com consultas aos povos originários e respeitando suas formas de decisão. 


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