A aula ainda não havia começado, e Maria Eduarda Silva, de 6 anos, brincava no pátio com uma amiga quando seus olhos começaram a arder. Em poucos segundos, ela sentia dor de cabeça e tontura. A colega falou que também não estava se sentindo bem, e as duas foram ao encontro da professora, que já chamava para começar a aula. Neste momento, outro colega, Guilherme de Oliveira, sentia dores na cabeça e, ao ir ao banheiro, se assustou ao ver uma menina do 5º ano desmaiar.
Em outra sala, Aghata Santana, de 5 anos, começou a sentir uma coceira forte pelo corpo, ficando com o braço direito vermelho. Na sequência veio dor de cabeça, de estômago e náusea. Ao mesmo tempo, João de Almeida, também do Pré 1, ficou pálido e começou a reclamar de ânsia e muita dor no estômago.
As crianças se assustaram, sem entender o que estava acontecendo. “A professora não conseguia nem ficar em pé, estava mole”, lembra Gabriel Henrique Maciel, de 10 anos, que também sentia dor de cabeça e sonolência. O menino viu colegas vomitarem, com falta de ar e tontura. Um dos piores quadros foi o da zeladora, que passou a manhã na parte externa da escola. Segundo relatos, sua pele ficou vermelha, cheia de bolinhas, e ela reclamava de que a sua boca estava queimando enquanto jogava água no próprio corpo.
As cerca de 150 crianças e funcionários foram intoxicados por agrotóxicos aplicados na plantação de soja de Carlos Henrique Moreira Alves, a menos de 20 metros da Escola Municipal de Educação Básica Silvana. O caso ocorreu no dia 2 de dezembro na zona rural de Sinop, Mato Grosso. Conhecido como “o berço da soja”, Sinop é um dos municípios mais ricos do agronegócio no Brasil.
A pujança do agro, porém, em nada ajudou as vítimas. Os órgãos do Estado não só falharam em tomar diversas providências básicas como tentaram abafar a repercussão do caso, prejudicando ainda mais o atendimento.
O primeiro erro foi a reação no momento da crise. Nenhuma criança intoxicada – nem mesmo as com sintomas mais graves – foi levada para atendimento médico. Ônibus escolares transportaram de volta para casa os alunos que usam a condução, enquanto os outros ficaram na escola esperando os responsáveis. A direção enviou mensagem às famílias afirmando que elas só deveriam procurar uma unidade de saúde caso os sintomas persistissem “no decorrer do dia”. A reportagem apurou que essa foi a orientação dada à escola pelas secretarias de educação e saúde.
Quando Maria Eduarda e seu irmão Marcelo, 8, chegaram em casa, a família entrou em desespero. “Ela ficou com os olhos vermelhos cor de sangue”, afirma a avó Maria da Silva. Correndo e aos gritos, o neto implorava: “vó, pelo amor de Deus, liga pra mãe que a menina tá envenenada”. A cena ocorreu cerca de duas horas depois da contaminação.
“Eu acho que eles são irresponsáveis. A obrigação deles era levar direto para a UPA, não mandar pra casa”, afirma Marcia Antonia da Silva, mãe de Marcelo e Maria Eduarda. “Só depois que eu entendi que era veneno de soja.”
A segunda falha da gestão pública foi não divulgar o nome do agrotóxico, informação crucial para determinar o tipo de tratamento às vítimas. A equipe do Indea (Instituto de Defesa Agropecuária de Mato Grosso) fez uma inspeção na plantação logo após o incidente e teve acesso a todas as notas fiscais dos produtos utilizados, além de falar diretamente com o tratorista que aplicou o veneno naquela manhã. O órgão afirma, porém, que não foi possível descobrir o nome do produto. À reportagem, o tratorista afirmou que aplicou um agrotóxico do tipo fungicida. Já o responsável da plantação negou o uso de qualquer agrotóxico: “nenhum defensivo foi usado, só aminoácidos e manganês”, disse Moreira Alves.
“O Indea deveria ter a responsabilidade social de fornecer os [nomes dos] produtos para o corpo médico”, alerta Karen Friedrich, pesquisadora com ênfase em toxicologia pela Fiocruz, que acompanhou o caso com preocupação pelas notícias que saíram na imprensa.
Operação abafa
O erro da Prefeitura Municipal de Sinop foi pior: tentou ocultar o caso. Funcionários receberam ordem para não tocar mais no assunto e foram proibidos de falar com a imprensa – essa orientação foi passada por áudio, ao qual a Repórter Brasil teve acesso. Todos os funcionários que deram entrevista falaram sob anonimato ou escreveram depois, pedindo cuidado com o que seria publicado.
A prefeitura minimizou o incidente. Primeiro, informou à imprensa que nenhuma criança procurou atendimento médico – o que não é verdade. A reportagem confirmou que algumas famílias buscaram assistência por conta própria.
Procurada pela Repórter Brasil com as diversas dúvidas que a escola não tinha autorização para responder, a prefeitura afirmou apenas que “tomou todas as medidas necessárias para garantir a integridade dos alunos” e que, “por ora, não se manifestará sobre o assunto”. Confira a resposta na íntegra.
Antes de dar o caso por encerrado, a prefeitura afirmou à imprensa que, logo que o incidente ocorreu, a Secretaria de Saúde teria comunicado às Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) para que equipes médicas permanecessem de prontidão, em regime especial. A reportagem foi à UPA mais próxima da escola, e as duas diretoras da unidade negaram ter recebido qualquer informação sobre o caso.
“Nós não ficamos a par da situação, de quando foi, o que que foi. A única coisa que chegou é que algumas crianças deram entrada”, afirma a diretora Tatiane Salu da Silva. Ao serem questionadas sobre a afirmação da prefeitura, a outra diretora, Nalu Rodrigues Felix, confirmou que não tinha conhecimento, mas afirmou que talvez o corpo técnico pudesse ter sido comunicado.
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Se alguém foi informado, certamente não foi o profissional que atendeu Ana Clara. Os pais levaram a menina de 9 anos para ver um médico dias depois, pois ela reclamava de fortes dores abdominais. Segundo eles, a médica não soube dizer o que poderia ter causado aquele sintoma. Foi apenas durante a entrevista que os pais associaram uma coisa à outra, ao lembrar que as dores da menina começaram na manhã do incidente.
O atendimento falhou até mesmo para uma família que relacionou diretamente os sintomas ao caso de intoxicação por agrotóxico. Maria Valdirene Landgraf, mãe de Aghata Santana, ligou para a UPA e perguntou se deveria levar a filha, que tinha dor de cabeça, dor no estômago, náusea e coceira após o incidente na escola. Ouviu que não era preciso, “só em caso de vômito ou desmaio”.
Sem orientação dos órgãos públicos, os pais ficaram sozinhos e perdidos.
A avó de Maria Eduarda deu leite à neta. “Eu não vou deixar mais faltar leite em casa de jeito nenhum, porque Deus me livre acontece de novo”, diz a avó. Apesar da boa intenção, órgãos de saúde recomendam que as pessoas intoxicadas não bebam e não comam logo após a exposição.
Houve até quem tomou antídoto para veneno de cobra para tentar amenizar os sintomas.
O que deveria ser feito
O caso foi agravado pela falta de orientação sobre os cuidados necessários. A Repórter Brasil conversou com mais de 40 pessoas sobre o caso, dentre eles alunos, pais, funcionários da escola e profissionais da saúde. O sentimento que pairava no ar, mais de uma semana depois do ocorrido, era de absoluta desinformação sobre como proceder.
Algumas crianças sequer tomaram banho ao chegar em casa depois do incidente. De acordo com Friedrich, o cuidado mais básico seria trocar de roupa, tomar banho e lavar a roupa separada das outras, além de higienizar os materiais escolares.
“Essas crianças sentaram com aquela roupa no sofá, na cama, aquilo ali está passando, está contaminando os irmãos”, afirma Karen. “Depois vão dizer: ‘o irmãozinho que não foi para a escola apresentou os mesmos sintomas, então não tem nada a ver com a contaminação, é uma virose’, mas pode ser justamente porque a criança levou a contaminação para casa.”
Na escola, ações de descontaminação também deveriam ter sido tomadas. Segundo a especialista da Fiocruz. todas as salas de aulas, cozinha, objetos e bebedouros deveriam ter sido limpos com produtos e equipamentos específicos, além de todos os alimentos serem jogados fora. Entretanto, esse processo não aconteceu e, três dias após o incidente, a escola voltou a funcionar normalmente.
Para piorar, antes de embarcar no ônibus, as crianças receberam um melão embrulhado em um plástico filme. “Quando eu vi o melão na mão das crianças, logo joguei fora, sabe-se Deus se estava contaminado”, conta Maria Valdirene Landgraf, que tem outros três filhos e um neto que estudam no local. De acordo com Friedrich, a chance de haver resíduos no alimento era alta.
A especialista explica que os sintomas de intoxicação aguda acontecem de imediato, mas também podem aparecer ou se agravar depois de dias ou semanas. “Esse tipo de exposição pode dar problemas no fígado, nos rins. É muito importante que se faça um acompanhamento”. Segundo ela, exames de sangue e urina deveriam ter sido colhidos para verificar a presença dos agrotóxicos no corpo das crianças e dos funcionários – o que, até a publicação da reportagem, não foi feito.
As famílias ouvidas pela Repórter Brasil afirmam que não houve qualquer tipo de monitoramento. Nenhuma professora, coordenadora ou membro da direção entrou em contato para saber como os alunos estavam no final de semana. As crianças ouvidas também confirmaram que, na escola, ninguém conversou com elas sobre o que tinha acontecido.
Renata de Almeida conta que encontrou o filho de 5 anos ainda pálido quando chegou em casa, mas ele só vomitou dias depois. “O João não queria nem comer, ficou assim até domingo, quando vomitou”. As crianças mais novas foram as que mais sentiram os efeitos dos agrotóxicos, justamente a faixa etária que mais sofre com os impactos do envenenamento, por estarem em fase de desenvolvimento.
A família de João mora em uma casa do outro lado da rua da escola. Assim como ele, outras crianças são expostas continuamente aos efeitos do veneno por morarem cercadaos pela soja. No entanto, mesmo aqueles que se dizem “acostumados” com o cheiro dos agrotóxicos se assustaram com o episódio na escola.
Vento tóxico
A punição ao sojicultor responsável pelo caso foi apenas uma multa de R$ 44 mil. Carlos Henrique Moreira Alves foi autuado por aplicar agrotóxico a menos de 90 metros da escola, o que está em desacordo com o Decreto Estadual 1.651/2013.
A depender das autoridades locais, o nome do infrator permaneceria sob sigilo, mas a Repórter Brasil conseguiu descobrir sua identidade. Moreira Alves arrenda a área próxima da escola e é sócio de uma loja de agrotóxicos na cidade. O agricultor afirmou à reportagem se sentir injustiçado. “Eles só fizeram isso [aplicaram a multa] porque a imprensa ficou em cima”. Ele nega todo o ocorrido: “as crianças não foram intoxicadas, não teve nenhuma que passou mal, eu já fui multado, o caso está resolvido”.
A Repórter Brasil também investigou quais agrotóxicos intoxicaram as crianças. Dois fungicidas cujos efeitos colaterais batem com os relatos foram encontrados na plantação pelo Indea. Náuseas, vômitos, vertigens e irritação ocular são alguns dos sintomas listados na bula dos produtos Cronnos e Armero. Ambos têm, na sua fórmula, o ingrediente ativo mancozebe – este é o 3º agrotóxico mais vendido no país e é classificado como provavelmente cancerígeno pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos
O Cronnos tem ainda o ingrediente ativo tebuconazol, cujos efeitos colaterais são irritação dérmica, irritação ocular, efeitos tóxicos como no fígado, além da diminuição da capacidade respiratória.
Ambos são fabricados pela Adama, companhia comprada pela China National Chemical Corp (ChemChina), empresa estatal chinesa do mesmo grupo da Syngenta.
Questionada pela reportagem sobre a sua responsabilidade no caso, a empresa afirmou, em nota, que todas as informações podem ser acessadas pelo site e que a segurança “depende da atenção do aplicador ao cumprimento das normas de uso do produto”. Sobre a “deriva”, quando o vento carrega o agrotóxico, a empresa afirma que essa “não é uma característica de um produto, mas sim um fenômeno decorrente de condições climáticas”. A empresa diz ainda que em 2021 “capacitou diretamente 12 mil agricultores, clientes da companhia, e, até outubro deste ano, outros 9 mil”. Leia a resposta.
No mesmo local, o Indea informou ter encontrado o herbicida glifosato – agrotóxico mais vendido no Brasil, que é o maior responsável pelos casos de intoxicação e o segundo pelos casos de morte entre 2010 e 2019. O glifosato é classificado como provavelmente cancerígeno pela Organização Mundial da Saúde. De acordo com a bula, o produto pode causar irritação e sensação de queimação ocular, tosse, rinite, além de inflamações na pele. O Indea, porém, não confirmou o nome comercial do glifosato utilizado.
Esta reportagem faz parte do projeto Por Trás do Alimento, uma parceria da Agência Pública e Repórter Brasil para investigar o uso de agrotóxicos. Clique para ler a cobertura completa no site do projeto.