Organização criminosa comandava grilagem em terra de indígenas isolados no Pará, aponta investigação

Operação conjunta de Polícia Federal, Ibama e MPF na TI Ituna Itatá retirou invasores de área que protege povo indígena isolado e expediu mandado de busca e apreensão contra ‘antropólogo dos ruralistas’ e coordenador da Funai
Por Isabel Harari
 16/12/2022

Uma organização criminosa está comandando a invasão e grilagem de terras dentro de área protegida onde há indícios da existência de indígenas isolados, no sudeste do Pará. Entre os possíveis envolvidos há um coordenador da Funai e um antropólogo conhecido por fazer laudos contrários aos povos indígenas.

É o que revela uma investigação conjunta feita por Ministério Público Federal do Pará, Ibama e Polícia Federal que culminou, nesta semana, em uma mega-operação de retirada de invasores na Terra Indígena Ituna Itatá.

A Repórter Brasil falou com fontes próximas à investigação e que, sob a condição de anonimato, confirmaram que um imóvel do antropólogo Edward Luz, em Santarém, está entre os 16 endereços alvo de busca e apreensão no Pará, Distrito Federal, Tocantins, Minas Gerais e Bahia. Conhecido como o ‘antropólogo dos ruralistas’, Luz foi preso duas vezes dentro da terra indígena Ituna Itatá, em julho deste ano e em janeiro de 2020, por impedir a fiscalização na área. Ele também é réu em uma ação do MPF em que o órgão pede R$ 100 mil de indenização ao povo Kayapó por atos racistas do antropólogo contra o cacique Raoni. 

A Repórter Brasil procurou Luz por telefone e e-mail, mas ele não respondeu. “É uma perseguição política. Não há nada contra ele. Talvez estejam procurando aquilo que ele gravou quando foi preso [na Ituna Itatá]”, afirma o advogado João Carlos de Souza Lima Figueiredo, que defendeu Luz em uma das detenções deste ano. A família do antropólogo nega que tenha havido busca no imóvel de Santarém.

Participantes da invasão da terra indígena Ituna Itatá podem ser condenados a até 40 anos de cadeia por formação de quadrilha (Foto: Ibama/MPF/PF Divulgação)

A investigação também chegou até a sede da Funai em Brasília e na casa do coordenador geral de índios isolados da Funai, Geovanio Katukina, segundo o jornal O Globo. Em julho, a Repórter Brasil revelou que Katukina boicotou provas da existência dos isolados na Ituna Itatá. Procurado, Katukina não atendeu nem respondeu as mensagens enviadas pela reportagem.

“A operação quer entender por que a Funai, o órgão responsável pela defesa dos direitos indígenas, procedeu dessa maneira. Não descartamos a possibilidade da participação de servidores, isso vai ser mais apurado na análise do material apreendido”, alerta Gilberto Batista Naves Filho, procurador do MPF que atua na operação.

Os investigados podem ser acusados de crimes ambientais, organização criminosa, falsidade ideológica, lavagem de dinheiro, entre outros. A pena para alguns investigados pode chegar a 40 anos de prisão. 

“O que se verificou nesta investigação é que é uma organização criminosa que atua de forma complexa. O que existe hoje na Ituna Itatá são grandes propriedades ocupando área pública com grande lucro”, explica Naves. 

Localizada nas margens do rio Xingu, a Ituna Itatá vem sendo ocupada por grileiros e bois – que, apesar da ilegalidade, entram na cadeia produtiva de grandes frigoríficos. Mais de 21 mil hectares, o equivalente à área de João Pessoa (PB), já foram derrubados entre 2008 e 2020, colocando a terra indígena entre as mais desmatadas nos últimos anos. 

Por conta dessa pressão, o indigenista Bruno Pereira, assassinado no Vale do Javari em junho deste ano, mostrou preocupação com a área, conforme revelou uma entrevista póstuma, publicada pela Folha de S. Paulo após a confirmação de sua morte. Para ele, Ituna Itatá, Piripkura (MT) e Jacareúba-Katawixi (AM) “são de interesses fundiários e minerários monstruosos. São terras relativamente grandes e que valem milhões e milhões de reais”. 

Vila foi montada em um mês

A operação realizada nesta semana retirou os invasores de dentro da terra indígena. Batizada de “Vetiti Terra” (“terra proibida”, em latim), conseguiu desmontar uma vila no interior do território que tinha pista de pouso, estrada e até luz elétrica.

Depois que a ocupação, conhecida como “Vila Novo Horizonte”, foi aberta, o desmatamento entrou numa curva ascendente. “Tomamos a vila e retiramos todos os invasores. Destruímos cerca de 63 bases de apoio ao desmatamento”, revela Tatiane Leite, coordenadora geral de fiscalização do Ibama, que planejava operações há mais tempo na TI.

Localização e infraestrutura da Vila Novo Horizonte, erguida em apenas um mês, dentro de terra de indígenas isolados no Pará (Mapa: Rede Xingu +)

Apesar da infraestrutura, a comunidade havia sido erguida em apenas um mês, agosto, para servir “como uma barreira e impedir a entrada do Estado”, explica Leite.

“Era uma trincheira de defesa do gado pirata”, concorda Hugo Loss, analista do Ibama e diretor da Associação Nacional dos Servidores Ambientais (Ascema). 

Para Gilberto Batista Naves Filho, do MPF, os moradores da vila podem ter sido enganados com a promessa de que a área seria uma terra regular para viver. “Foram doados lotes para pessoas vulneráveis apenas para serem utilizadas no enfrentamento contra o poder público, quando as autoridades tentam cumprir o seu dever legal”. Entender como opera a desinformação no caso é um dos objetivos da investigação, segundo o procurador.

O temor era que o povoado consolidasse a ocupação criminosa, tornando cada vez mais difícil combater as invasões, como ocorre na terra indígena Apyterewa, vizinha da Ituna Itatá. A Apyterewa lidera o ranking das mais desmatadas na Amazônia e desde 2016 tem uma vila com rede elétrica, bares, igrejas e até hotéis. “Há uma grande dificuldade de desestruturação da rede de logística e grilagem. Uma base mais estruturada viabiliza não só o desmatamento de novas áreas, mas a consolidação de áreas já abertas”, explica Thaise Rodrigues, especialista em sensoriamento remoto da Rede Xingu +.  

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Funai cancela expedição

A terra indígena Ituna Itatá foi reconhecida em 2011, mas nunca recebeu proteção definitiva No lugar disso, a Funai vinha editando portarias de restrição de uso temporárias, renovadas a cada três anos. Mas em 2022 isso não ocorreu, e a Justiça precisou intervir para garantir a prorrogação. Em janeiro, a Funai renovou a portaria apenas por seis meses, após decisão judicial, e em junho houve renovação nos moldes anteriores, com proteção vigente até 2025.

Após a última portaria, a Funai deveria realizar expedições para monitoramento e busca de novas evidências do “povo nº 110 – Igarapé Ipiaçava”, mas nada saiu do papel. 

Leia mais: Novo coordenador de indígenas isolados da Funai boicotou provas para registro de povo no Pará

Questionado pela Repórter Brasil via Lei de Acesso à Informação, o órgão indigenista disse que planejou uma expedição para localização dos isolados em abril, mas ela foi suspensa por coincidir com uma operação de fiscalização no mesmo período. Depois disso, alegou que, “devido às demandas de trabalho e à escassez de servidores”, a ação foi adiada para o ano que vem. (Leia a resposta na íntegra aqui)

A justificativa surpreendeu fontes ouvidas pela reportagem sob a condição de anonimato, uma vez que, em novembro de 2021, a Funai contratou 52 funcionários temporários para trabalhar na Frente de Proteção Etnoambiental Médio Xingu, que atende o território da Ituna Itatá. 

“A terra indígena Ituna Itatá pode e deve ser salva, não é um caso perdido. Isso vai  depender de uma ação articulada de cooperação entre diferentes órgãos, conforme a complexidade que essa questão demanda”, pondera Naves Filho.


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