Uma casa sem camas, armários, mesa ou cadeiras. Também não tinha fogão, geladeira ou qualquer outro eletrodoméstico. Até porque eles não funcionariam: não havia energia elétrica no alojamento. O banho era frio e a descarga da privada era feita com balde. Quando chovia, o telhado vertia a água para dentro dos cômodos. Assim viviam 15 trabalhadores contratados para a colheita de laranja na Fazenda Alagoas, propriedade localizada em Ibiraci, no Sul de Minas Gerais.
O grupo foi resgatado de condições análogas à escravidão no final de novembro por agentes do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM). “Esse alojamento, que havia acabado de ser desativado dias antes da nossa ação, era apelidado pelos trabalhadores de ‘casa mal-assombrada'”, afirma Vinícius Castro Barbosa, auditor-fiscal do Trabalho que participou da operação. “Era uma situação horrível, sem conforto algum”.
Da ‘casa mal-assombrada’ os trabalhadores haviam sido transferidos para outro alojamento, também localizado no perímetro urbano de Ibiraci. A nova moradia, no entanto, não oferecia condições muito melhores aos safristas: os colchões ficavam no chão, onde eram feitas as refeições, e a presença de baratas era constante. Um dos resgatados relatou aos agentes da operação de fiscalização que “o maior problema é que só tem um banheiro para 15 homens”.
13 horas, de domingo a domingo
Mas a falta de estrutura enfrentada pelos trabalhadores não se resumia ao local de descanso. Na frente de trabalho, onde atuavam na colheita de laranjas, a situação era ainda mais drástica: jornadas de até 13 horas diárias, de domingo a domingo, sem registro em carteira, sem folgas e sem equipamento de proteção individual fornecido pelo empregador.
Durante a colheita da laranja, as necessidades fisiológicas eram feitas ali mesmo, entre as árvores. Além de não haver banheiro no campo, a água para beber era pouca e morna, e as refeições eram feitas no chão, sob sol ou chuva. Os funcionários recebiam pouco mais de R$ 2 reais por cada sacola de 23 quilos colhida, mas eram descontados R$ 350 a cada quinzena “pelo almoço e janta”. Dos 15 contratados para a colheita, um viera do Piauí, enquanto o restante do grupo saiu do município paulista de Paranapuã, a 430 km de Ibiraci.
A fazenda era arrendada por Renato Ferrari dos Reis. Apesar de ter alegado não ser o responsável direto pela contratação dos trabalhadores, dizendo ter vendido “a fruta no pé” para um intermediário que recrutou a equipe, ele foi identificado como sendo o principal beneficiário da atividade. Dias após a ação, Reis, que é doutor em Agronomia, pagou pouco mais de R$ 100 mil em verbas indenizatórias aos safristas da fazenda. A Repórter Brasil entrou em contato com o produtor rural, por meio do seu advogado, mas ele não quis se manifestar. O espaço segue aberto para manifestações futuras.
Sem acesso a materiais de primeiros socorros na lavoura, quem se machucasse continuava na frente, aumentando o risco de acidentes e agravamento das lesões. Um dos resgatados relatou aos auditores-fiscais ter trabalhado um dia inteiro apenas com um braço, pois o outro estava “doendo muito”. Queixou-se ao encarregado, que deu de ombros. No dia seguinte, ainda com dor, derrubou uma escada em sua cabeça e quase desmaiou. “A vista ficou escura”, disse, em depoimento ao grupo de fiscalização trabalhista.
Clientes em todo o Brasil
As laranjas produzidas na Fazenda Alagoas eram vendidas por todo o país. De uma lanchonete em um shopping de Franca, em São Paulo, a um mercado no Recife, em Pernambuco. Um dos compradores é a Petry Comércio de Alimentos, produtora de suco e outros gêneros alimentícios com forte presença na região Sul do país.
A reportagem questionou a empresa, que enviou nota afirmando não ter tido conhecimento dos fatos. “Esclarecemos que não pactuamos com qualquer tipo de mão de obra irregular, e a nossa política só permite parceiros que atuam de acordo com a legislação trabalhista, a partir de um protocolo de consultas. Nesse sentido, não firmamos, nem renovamos parcerias, ainda que eventuais ou indiretas, com quem não cumpra esta legislação”.
Histórico de violações
A cadeia produtiva da laranja tem registrado uma série de violações trabalhistas e de direitos humanos nos últimos anos. Em abril, a Repórter Brasil revelou que um grupo de 13 trabalhadores briga na Justiça contra a gigante do setor de laranja Sucocitrico Cutrale e um produtor rural, alegando terem sido submetidos a condições análogas à escravidão em fazendas no interior paulista.
À época, a empresa, que é uma das principais produtoras de suco concentrado de laranja do mundo, afirmou que seus contratos de compra de fruta “possuem cláusulas claras sobre a necessidade de cumprimento da legislação trabalhista brasileira”.
Em novembro de 2021, meses antes deste caso vir à tona, a Cutrale se envolveu em outra violação de direitos. Trabalhadores safristas ouvidos pela Repórter Brasil acusaram a empresa de demitir grávidas, extinguir vale-alimentação e não fornecer EPIs em quantidade suficiente. Tudo isso durante o período da pandemia de covid-19.
Dados da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) mostram que 57 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão no cultivo de laranja em 2021 – o maior número desde o início das operações de fiscalização no setor, em 2008.
Apesar das ações de combate ao trabalho escravo no Brasil terem começado em 1995, somente 25 estabelecimentos ligados ao cultivo da fruta foram fiscalizados no país. No café, em comparação, foram 276 fazendas fiscalizadas e 3.230 trabalhadores resgatados entre 1996 a 2021, também segundo dados da SIT.