Usada em remédios, batons e balas, carnaúba tem produção marcada por trabalho escravo

Na última década, quase 400 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão no setor; a cera produzida a partir das folhas da carnaúba, palmeira que cresce apenas no Nordeste brasileiro, é usada por gigantes como L’Oreal, Nestlé e Mars
Por Catarina Barbosa*
 06/12/2022

Imersa em uma paisagem de caatinga, com uma vegetação que suporta altas temperaturas e baixíssimos níveis de chuva, Campo Maior é uma cidadezinha de 46 mil habitantes, localizada a 84 km de Teresina, capital do Piauí. É de lá que sai o produto no qual o estado é o maior produtor nacional: a carnaúba.

O nome pode soar desconhecido, mas o pó, extraído da palmeira de mesmo nome, está presente em muitos produtos bem conhecidos: do remédio para dor de cabeça ao protetor solar, do chiclete ao batom, da cera para polir carro aos chips de celulares. Gigantes como L’Oreal, Nestlé e Mars – fabricante do chocolate M&M – importam do Brasil essa matéria-prima, produzida exclusivamente no Nordeste.  

A geração de renda dessas empresas (a L’Oreal, por exemplo, faturou quase US$ 30 bilhões em 2019) contrasta com o grave cenário de pobreza e violações de direitos humanos da produção de carnaúba, marcada pelo trabalho infantil e escravo.

Antônio Francisco, morador de Campo Maior, tem 47 anos e trabalha na extração da carnaúba desde os seis anos. Seu pai, seu avô e outros moradores do assentamento onde vive, o Lagoa Seca, também começaram na infância a trabalhar na extração da carnaúba. Com os cabelos brancos e a pele queimada de sol, Francisco contou à Repórter Brasil que o mais difícil é trabalhar sob sol forte – em Campo Maior, as temperaturas chegam a 42 graus. Por isso, iniciar o trabalho antes de o sol nascer é obrigatório. “Quanto mais cedo a gente acordar, melhor. Tem que cortar a palha, riscar, colocar para secar e bater para poder tirar o pó”, explica.

A carnaúba é cultivada exclusivamente no Nordeste brasileiro. Em 2021, o Piauí foi responsável por 56% da produção nacional.
Folhas da carnaúba, chamadas de palha, são atadas umas às outras antes de secarem ao sol. (Fotos: Catarina Barbosa/Repórter Brasil)

A extração do pó de carnaúba também é marcada com flagrantes de trabalho em condições análogas à escravidão. As primeiras fiscalizações no setor ocorreram em 2012. Desde então, 359 trabalhadores foram resgatados. “Muitos vêm de outros estados, principalmente do Ceará. Chegam em [caminhões conhecidos como] gaiolas trazendo 30 homens, junto de bois e jumentos. Depois de terminarem o trabalho em um carnaubal, voltam para a gaiola e são levados para outra área e assim sucessivamente”, explica Francisca Reis, presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Campo Maior. 

A situação é tão grave que as cinco principais empresas exportadoras de carnaúba brasileira já foram responsabilizadas por casos de trabalho escravo em seus fornecedores e tiveram de assinar Termos de Ajuste de Conduta (TAC) junto ao Ministério Público do Trabalho do Piauí (MPT-PI). São elas: Pontes, Foncepi, Agrocera, Brasil Cera e Carnaúba do Brasil.

‘Não somos capazes de auditar os fornecedores’

Segundo dados alfandegários dos últimos dois anos acessados pela Repórter Brasil, as cinco exportadoras têm como principais clientes empresas dos Estados Unidos e Europa. Uma delas é a holandesa Koster Keunen, que compra a matéria-prima das empresas Foncepi e Carnaúba do Brasil.

A empresa, que se intitula “líder mundial em ceras naturais”, vende para a L’Oréal, segundo o relatório de sustentabilidade da própria empresa. A multinacional francesa – a mais valiosa do setor – usa a carnaúba na fabricação de batons, protetor solar, creme para o cabelo e hidratantes. 

Em setembro de 2017, um grupo de 19 trabalhadores foi resgatado de condições análogas à escravidão em um carnaubal em Vargem Grande, no Maranhão. Sem água potável, as pessoas bebiam, cozinhavam e tomavam banho em um açude próximo ao barraco improvisado. Duas pessoas foram identificadas como os empregadores e admitiram que a produção seria repassada para a Carnaúba do Brasil. Segundo depoimentos registrados no relatório de fiscalização, “mais de 80% da produção do pó da carnaúba” era entregue diretamente ou via intermediários para a empresa, com sede em Itarema (CE), no norte do estado.

Nos meses após o flagrante, a Koster Keunen seguiu comprando da Carnaúba do Brasil. E segue comprando até hoje.

Em resposta à Repórter Brasil, John Koster, presidente da empresa, afirmou que a Koste Keunen “não é capaz de auditar fornecedores do pó [de carnaúba]” porque entende que “essa parte da cadeia produtiva é formada por fornecedores independentes”. Koster também disse que a última auditoria, realizada na fábrica da Carnaúba do Brasil, ocorreu em janeiro de 2018 e que “nenhuma irregularidade foi encontrada”. (Leia na íntegra a resposta).

Já a Carnaúba do Brasil afirmou que, dos dois empregadores mencionados no relatório de fiscalização, apenas um forneceu uma única vez para a empresa, em junho de 2017, dois meses antes do flagrante de trabalho escravo. Pedro Azevedo, diretor de operações da Carnaúba do Brasil, afirmou que a empresa não foi informada do flagrante de trabalho escravo à época. “Quando tomamos ciência de casos como esse, suspendemos qualquer tipo de compra de quem não segue as boas condições legais de trabalho”. (Leia na íntegra a resposta).

A L’Oreal não respondeu aos questionamentos enviados pela reportagem. 

Folha que vira ‘flecha’ e outros riscos

A carnaúba pode ser explorada de forma contínua por até 50 anos sem que uma única árvore precise ser derrubada. Sua resistência é tanta que é comum encontrar carnaúbas nas margens das estradas atingidas pelo fogo que, mesmo com suas raízes e caules queimados, mantém as folhas verdes. É justamente das folhas que se retira o pó – o responsável por protegê-las e evitar a perda de água (veja infográfico).

(Infográfico: Débora De Maio e Richard Nakamura/A V O A _ estúdio de design)

Nessa primeira etapa, que é o corte da palha, é comum alguma folha desgarrar e cair como uma flecha em cima do trabalhador, causando ferimentos especialmente nos braços, no rosto ou no olho. Como a maioria dos trabalhadores é formada por safristas que atuam na informalidade, esse grupo fica sem qualquer tipo de amparo em caso de acidentes.

Segundo Edno Carvalho Moura, procurador do Ministério Público do Trabalho do Piauí, a produção da carnaúba sempre foi feita às margens das leis trabalhistas: a extração do pó é realizada, em 2022, praticamente da mesma maneira como no final do século XIX.

“Em todos esses anos, os trabalhadores ficam alojados das formas mais degradantes possíveis. Alguns vão para o mato e lá improvisam um alojamento sem cobertura, improvisando fogareiro, se alimentando de qualquer forma, sem acesso a água, eletricidade e sem instalações sanitárias. Essa situação que se via no passado e se vê até hoje”, afirma Moura.

Em setembro deste ano, 11 trabalhadores foram resgatados do trabalho escravo em Patos do Piauí, a 400 km da capital do estado. A fiscalização trabalhista registrou que eles dormiam em redes amarradas nas árvores, comiam no chão e não tinham acesso a banheiros nem à água potável. Condições de trabalho semelhantes foram flagradas em novembro, quando outros 20 foram resgatados em um carnaubal em Upanema, no Rio Grande do Norte.

Leia também: Bolsonaro distorce fiscalização na carnaúba, setor campeão de trabalho escravo no Ceará

‘Laranjas’ no carnaubal

Nesse ciclo de violações de direitos na produção de carnaúba, é comum encontrar empregadores se escondendo atrás dos chamados “gatos” ou “laranjas” para driblar a lei. São pessoas pagas para assumir a gestão do carnaubal ou de alguma etapa da produção para que o nome do verdadeiro dono da terra fique oculto.

Para contornar esse problema, o Ministério Público do Trabalho no Piauí firmou TACs não só com produtores, mas também com proprietários de carnaubais ou arrendadores – que “alugam” a terra para que outros exerçam a atividade –, e com intermediários e proprietários de máquinas de bater pó e de processadoras. O objetivo era fazer com que todos os elos da cadeia produtiva cumpram as normas de saúde e segurança do trabalho. 

No caso das cinco empresas que assinaram o TAC, os trabalhadores resgatados não estavam nas dependências da empresa em si, mas nas de seus fornecedores. Dentre as cinco, apenas a Foncepi, que tem sede em Piripiri (PI), negou, inicialmente, a existência de trabalho escravo em sua cadeia produtiva. Foi preciso ajuizar uma ação judicial. Posteriormente, a companhia acabou admitindo falhas no monitoramento de seus fornecedores.

Depois de secas, folhas são batidas – manualmente ou com auxílio de maquinário – para extrair o pó que dará origem a cera. (Foto: Catarina Barbosa/Repórter Brasil)

“A nossa carnaúba tinha um lado obscuro. Nos preocupávamos mais com o que acontecia a partir dos nossos muros: funcionários, indústria, qualidade do produto”, explicou Ana Caroline Fontenele, proprietária da Foncepi, durante o evento “Diálogos da Carnaúba”, promovido em setembro em Teresina (PI). “Hoje, enxergo claramente que estávamos colocando em risco o futuro do produto. O TAC foi doloroso, mas foi de extrema importância e mudou a cultura da nossa empresa”.

‘Inaceitável’

Para Paula Maria Mazullo, auditora fiscal do trabalho no Piauí, é preciso que os empresários e produtores percebam também o risco econômico da presença de trabalho escravo nessa cadeia produtiva. Para exemplificar esse risco, Mazullo menciona as tentativas realizadas nos últimos 15 anos pelo Brasil para ingressar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

“Estamos tratando de uma commodity usada em todo o mundo. É inaceitável que ainda estejamos falando de trabalho escravo nessa cadeia. Aquele trabalhador que está na ponta e tem seus direitos humanos violados pode ser o motivo do fim de um acordo internacional”, aponta.

Os maiores importadores da cera de carnaúba brasileira são os Estados Unidos, Alemanha, China e Japão. Grande parte da carnaúba exportada sai do Piauí, responsável por 56% da produção nacional. Quase 20 mil toneladas de pó de carnaúba foram produzidas no estado em 2021, ano em que o valor da produção bateu R$ 277 milhões nacionalmente. Uma riqueza, no entanto, que não chega às mãos dos trabalhadores rurais do estado, onde a média salarial da categoria era de R$ 1,8 mil mensais em 2020, segundo último levantamento do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). 

O assentado Antônio Ribeiro da Paz, de 43 anos, conta que precisa produzir e vender 100 vassouras para ganhar R$ 50. Os itens são produzidos com a palha da carnaúba que já foi batida. O trabalhador precisa vender de 10kg a 15kg do pó de carnaúba para juntar R$ 600, o equivalente a meio salário mínimo. “Para isso, preciso 3 mil palhas [folhas] de árvore. Atualmente, o valor pago é de R$ 30 por quilo”, explica.

A situação no setor é tão grave que até a Iniciativa para Carnaúba Sustentável reconhece, em seu site, que as “más condições de trabalho, baixos salários e alguns incidentes de trabalho infantil” são desafios sociais graves na cadeia de aquisição do produto. O IRC, sigla do projeto em inglês, foi criado em 2018 para orientar sobre boas práticas no setor.  

A iniciativa é formada por organizações da sociedade civil e empresas que usam a carnaúba em seus produtos, como as multinacionais Haribo, fabricante alemã de balas em forma de ursinho, que já foi acusada comprar carnaúba de fornecedores com trabalho escravo no Brasil, mas negou as denúncias. A cera é usada para dar brilho às balas e evitar que elas grudem umas nas outras. A gigante estadunidense Mars, dona das marcas Snickers e M&Ms, a Nestlé, a brasileira Natura e a já mencionada L’Oréal também integram a iniciativa.

*Colaboraram Poliana Dallabrida e Isabel Harari


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