O agricultor Neri Gomes de Souza, de 65 anos, chegou ao Mato Grosso ainda adolescente, aos 13. Seus pais migraram de Ipatinga, Minas Gerais, na década 1970, após as terras em que viviam, cedidas por um fazendeiro, darem lugar à mineração. Foi no novo estado que Souza conquistou o lugar que hoje chama de lar, no assentamento Roseli Nunes, consolidado em junho de 2002 em Mirassol D’oeste, a aproximadamente 300 km de Cuiabá. O lugar ficou conhecido pela produção agrofamiliar e se tornou referência na distribuição de alimentos na região. Contudo, o assentamento tem sofrido com o avanço da fronteira agrícola. Cercado por soja, cana e outros monocultivos, a pulverização de agrotóxicos tem contaminado as plantações e a água de poços e do Rio dos Bugres, que abastece a comunidade com mais de 300 famílias. “Trabalhamos muito para produzir orgânico, aí por causa da soja e da cana, que não alimenta ninguém, contaminam tudo”, desabafou Neri.
A conclusão é do relatório técnico “Agrotóxicos no Pantanal”, publicado pela ONG Federação de Órgãos para Assistência Social (Fase), em parceria com Instituto de Saúde Coletiva (ISC) e o Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador da Universidade Federal de Mato Grosso (Neast/UFMT). O trabalho apontou 10 tipos de agrotóxicos em amostras de água do assentamento. “Na época de maturar a cana, eles jogam um secante para madurar mais rápido. Eles passam o avião aqui por cima [do assentamento], tem vez que até serena. A gente nem produz mamão direito, porque morre tudo por causa do veneno”, diz.
Segundo o relatório, no assentamento, estabelecido em uma região de transição dos biomas Pantanal e Amazônia, foram detectados nas amostras coletadas nas águas da chuva, rios, córregos, cachoeiras, poços artesianos, caixas d’água de escolas rurais e tanques de piscicultura, os herbicidas Atrazina, Picloram, 2,4-D, Clomazone, Tiobencarbe, Clorimurom etílico; os inseticidas – Imidacloprido e Fipronil; e os fungicidas Tebuconazol e Carbendazim.
Dentre os princípios ativos detectados, em quatro comunidades nos municípios de Poconé, Cáceres e Mirassol D’Oeste, cinco são proibidos em países da União Europeia (UE), Suíça, Austrália e Canadá, por riscos à saúde humana e ao meio ambiente, são: os herbicidas Atrazina e 2,4-D; os inseticidas Imidacloprido e Fipronil; e o fungicida Carbendazim. Esses agrotóxicos são proibidos e foram classificados pela Rede de Ação contra Agrotóxicos (PAN, na sigla em inglês) como altamente perigosos.
A Atrazina, segundo o relatório “Lucros altamente perigosos – Como a Syngenta ganha bilhões vendendo agrotóxicos altamente perigosos”, é um ativo duradouro na contaminação de água potável e pode causar distúrbios endócrinos, afetando o sistema hormonal. Já o Fipronil está na lista Pan por ser fatal a abelhas e é classificado como possivelmente cancerígeno pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (Environmental Protection Agency, na sigla em inglês). O Carbendazim consta na lista por poder causar alterações do DNA e ser tóxico para o sistema reprodutivo. Devido a estes riscos, a ANVISA recomendou o banimento do Carbendazim no relatório toxicológico de fevereiro de 2022.
O relatório “Agrotóxicos no Pantanal” ainda aponta que dos 10 agrotóxicos identificados nas amostras, oito não se encontram listados na Resolução do CONAMA de Limites de quantificação praticáveis (LQP) de águas Subterrâneas e quatro não se encontram listados na portaria de potabilidade na água . Uma vez não listados nestas portarias, não existem parâmetros legais para estipular o que está dentro do volume máximo destes ativos permitido em água. O que interfere diretamente na segurança e saúde da população.
A contaminação das águas por agrotóxicos inviabiliza o trabalho em agroecologia, cuja proposta é justamente oferecer alimentos sem estes químicos, causando perdas sociais e econômicas às famílias do assentamento. A situação também põe em risco a garantia do certificado da Associação Regional de Produtores Agroecológicos (ARPA) – 37 famílias do assentamento estão associadas a ela –, que fornece ao produtor um documento que garante a conformidade de produção orgânica participativa. Através da certificação é possível encontrar todas as informações sobre o produtor e seus produtos no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA).
“Nós não podemos fazer propaganda do nosso produto porque a água que a gente usa para regar as plantas é contaminada. A água que nós bebemos é contaminada. O poço tá cheio de veneno. O ‘Rio Bugre’ também. Tudo tem agrotóxico. Até a caixa d’água da escola tá envenenada”, denuncia Neri. Conforme o relatório, foram identificados sete tipos de agrotóxicos no Bugres e quatro na caixa d’água da escola do assentamento, que atende mais de 400 alunos.
ASSINE NOSSA NEWSLETTER
Convivendo com o veneno
Para o professor José Gomes da Silva, 45 anos, a escola é o coração do assentamento Roseli Nunes, porque é nela que se consolida toda a cultura campesina através dos ensinamentos de agroecologia, agricultura familiar, economia solidária, dentre outros assuntos do dia a dia dos assentados. Com isso, explica o professor, ter a caixa d’água da escola envenenada é o mesmo que envenenar o coração do assentamento. “É uma alusão que a gente pode fazer. O coração bombeia o sangue para o corpo, mantendo a gente vivo. Ele tá ali sempre pulsando. Se ele parar a gente morre. E pra mim a escola é como esse coração, representado pelas crianças e jovens que estão nela”, explica José.
O relatório pontua os riscos da concentração de agrotóxicos nas águas e a constante ingestão humana deste produtos. O documento salienta que a detecção de agrotóxicos em água, em qualquer concentração, estejam eles listados ou não nas portarias do Ministério da Saúde e CONAMA, indica risco para a população exposta e para o ambiente. “Considerando o processo de interação química e a capacidade de acumulação dos agrotóxicos nos tecidos humanos, sabe-se que não há limite seguro de ingestão de agrotóxicos, sendo que a soma de diversas exposições, ainda que em pequenas quantidades, pode desencadear processos de intoxicação crônica, tais como câncer, malformação fetal, doenças endócrinas e metabólicas, infertilidade, aborto, mutações, doenças neurológicas e psiquiátricas e doenças renais”, ressalta o texto.
Franciléia Paula de Castro, mestre em Saúde Pública, engenheira agrônoma, educadora da FASE e uma das autoras do relatório, defende a ideia de que o ciclo do agrotóxico é uma ferramenta para o adoecimento dos territórios tradicionais. Para a pesquisadora, este adoecimento vai além da contaminação direta, porque também afeta os modos de vida e as práticas de convivência com a natureza de cada povo. “O uso de agrotóxicos nesta região está muito relacionado com o modelo agrícola estabelecido. Os conflitos por terra e território estão diretamente ligados ao avanço e aumento da produção de monocultivos de soja, pecuária, milho e cana, nos últimos anos”, diz Franciléia. “À medida que o agronegócio avança sobre o território, a agricultura familiar e camponesa, as comunidades tradicionais, vão recuando ou ficando ilhadas em meio aos monocultivos e utilização excessiva de agrotóxicos”, aponta.
A dor pela terra envenenada
Miraci Pereira Silva conheceu o que é um agrotóxico à medida que o assentamento foi sendo cercado por monocultivos. “Antes disso, eu não conhecia. Nunca tinha sentido cheiro de veneno”, conta a agricultora de 69 anos. Para Miraci, ver a terra tomada por veneno é doloroso, porque afeta diretamente o bem-viver da comunidade. “Para o ser humano ter saúde é preciso ter alimento saudável. E para a gente ter alimento saudável, a terra tem que estar saudável. E para a terra ser saudável, a água também precisa ser”, afirma. Para a agricultora, a terra só pode ser salva se houver harmonia entre seres humanos, plantas e animais. “Quem trabalha com a monocultura nem mora aqui. É gente muito rica, que vive em mansões, cheio de conforto. A única preocupação deles é ganhar dinheiro. A agroecologia não pensa assim. A gente planta para o bem-estar de todos”, conclui.
Franciléia explica que apenas medidas a médio e longo prazo podem cooperar com a diminuição dos agrotóxicos que estão contaminando as águas que abastecem o assentamento. “Os dados da pesquisa demonstram não apenas uma contaminação superficial dessas águas, mas subterrâneas também. Não tem como retirar agrotóxicos do meio ambiente apenas com ações pontuais”, explica Franciléia. Para a pesquisadora é necessário que se estabeleça um processo de transição para a redução e restrição do uso de agrotóxicos próximo a fontes hídricas.
Outro lado
Questionada sobre os dados apontados pelo relatório, a Secretaria de Meio Ambiente do Mato Grosso (SEMA) afirmou que “no monitoramento da qualidade da água superficial realizado pela SEMA, não foi constatado até o momento nenhum caso de contaminação da água por aplicação de agrotóxicos”. Contudo, não especificou sobre como se deu o monitoramento em Mirassol D’Oeste.
A Secretaria de Estado de Saúde (SES-MT), por meio da Coordenadoria de Vigilância em Saúde Ambiental, disse à reportagem que não foi oficialmente notificada pelo município ou demais órgãos competentes sobre o uso de agrotóxicos em Mirassol D’Oeste. Quanto ao consumo de água contaminada, o órgão afirmou que “cabe às Secretarias Municipais de Saúde exercerem a vigilância da qualidade da água em sua área de competência, em articulação com o responsável, conforme estabelecido no Programa Vigiagua e na Diretriz Nacional do Plano de Amostragem”. O órgão ainda disse que “uma equipe técnica atua no acompanhamento e supervisão das ações estabelecidas no Programa de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano e cobra dos gestores municipais o cumprimento, tanto por parte das ações de vigilância, quanto das ações do controle da qualidade da água, em especial quanto à responsabilidade do cumprimento do Plano de Amostragem”.
A Agência Pública procurou o Instituto de Defesa Agropecuária de Mato Grosso (Indea), que é responsável pela fiscalização do uso de agrotóxicos no estado, mas não obteve respostas até a publicação da reportagem.
*A reportagem viajou ao Mato Grosso com o apoio da iniciativa Observa-MT.
Esta reportagem faz parte do projeto Por Trás do Alimento, uma parceria da Agência Pública e Repórter Brasil para investigar o uso de agrotóxicos. Clique para ler a cobertura completa no site do projeto.