Com 139 vítimas na cana, resgate de escravizados é o 3º maior em 5 anos

Usina Nova Gália terceirizou ilegalmente a contratação de trabalhadores para quatro empresas sem idoneidade nem capacidade financeira
Por Leonardo Sakamoto*
 17/02/2023
Operação resgatou 139 trabalhadores da escravidão em fazenda de cana em Acreúna (GO) (Foto: Inspeção do Trabalho)

Uma operação do grupo especial de fiscalização móvel resgatou 139 trabalhadores de condições análogas às de escravo em uma fazenda de cana-de-açúcar, em Acréuna (GO). De acordo com a Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho, é o terceiro maior resgate de pessoas em um único estabelecimento nos últimos cinco anos.

“Eles deixaram suas famílias para trás na expectativa de enviar algum dinheiro para casa. Mas chegando lá, viram que as promessas eram falsas e que descontos indevidos eram feitos sobre a alimentação e o transporte”, explicou à coluna o auditor fiscal do trabalho Roberto Mendes, que coordenou a ação que terminou nesta quinta (16).

Além da Inspeção do Trabalho, a operação contou com a participação do Ministério Público do Trabalho, do Ministério Público Federal, da Defensoria Pública da União e da Polícia Federal.

A Agropecuária Nova Gália, responsável pela Usina Nova Gália, terceirizou ilegalmente para “gatos” (contratadores de mão de obra) a responsabilidade pelos trabalhadores, segundo a fiscalização. Dessa forma, quatro pequenas empresas de prestação de serviço sem idoneidade e capacidade financeira evitaram que a beneficiária final arcasse com os custos trabalhistas.

De acordo com o site da Usina Nova Gália, ela tem capacidade para processamento anual de 3,5 milhões de toneladas de cana, produzindo 128 milhões de litros de etanol hidratado e 17,7 milhões de anidro, além de açúcar.

A reportagem tentou contato com a empresa por telefone e e-mail. Assim que um posicionamento for recebido, será aqui publicado.

Os trabalhadores haviam sido contratados para atuar no plantio, mas chegando lá foram colocados em atividades de limpeza do terreno, que pagam menos. Descontos ilegais eram feitos em seu salário para quitar dívidas de transporte da região Nordeste até Goiás, porém a lei obriga que esse deslocamento seja bancado pelo patrão.

De acordo com a fiscalização, após os gastos com alimentação e os descontos de passagens, alguns trabalhadores ficavam sem nada no bolso e sequer tinham condições de retornar para seus estados de origem. Parte estava endividada com o comércio local sob a supervisão dos gatos.

Trabalhadores receberam quase R$ 1,2 milhão em direitos e indenizações

Eles estavam alojados em 11 abrigos no município em condições precárias. Um grupo cozinhava usando lenha. Não eram fornecidos equipamentos de proteção individual adequados e não havia sanitários nem local para guardar as refeições nas frentes de trabalho, levando a comida a azedar.

Ônibus que faziam o transporte para a fazenda estavam em condições igualmente precárias tanto que um acidente por problemas de conservação com um deles deixou trabalhadores feridos.

“As usinas começaram a praticar o que faziam antigamente, antes da fiscalização agir de forma mais incisiva. Quando ela reduziu, voltaram a adotar intermediação ilegal de mão de obra”, afirmou à coluna o procurador do Trabalho Tiago Cabral, que participou da operação. “Eles estão achando que podem fazer qualquer coisa”, avalia.

Essa “virada” de produtores rurais coincide com os quatro anos do governo Jair Bolsonaro. O ex-presidente da República é criticado por enfraquecer a fiscalização ambiental e trabalhista, responsável pelo cumprimento da lei.

A empresa não questionou o que foi encontrado e assumiu a responsabilidade, segundo a equipe de fiscalização.

Ao todo, R$ 877 mil foram pagos aos trabalhadores como verbas rescisórias e direitos devidos. A Defensoria Pública da União negociou mais R$ 283 mil para eles, a título de dano moral individual, e o Ministério Público do Trabalho acertou o pagamento de dano moral coletivo no valor de R$ 315 mil, a ser destinado a instituições sociais de Acreúna e de outros municípios goianos.

Os outros dois maiores resgates dos últimos cinco anos, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, foram os de 433 trabalhadores em atividades econômicas em uma seita e os 273 em uma fazenda de cana, ambos nos Estado de Minas Gerais.

Trabalhadores de fábrica de ração e caseiro são resgatados na mesma operação

Mais 13 trabalhadores trabalhavam em condições consideradas desumanas pela fiscalização em uma fábrica de ração animal também em Acreúna. O alojamento de cinco deles seria impróprio até para a criação de animais, dormindo em um chão sujo, com pedaços de espumas velhos e muito lixo. Todos estavam sem registro e não recebiam salários regularmente.

E um trabalhador doméstico de 67 anos que morava em condições análogas à escravidão foi resgatado em Quirinópolis (GO). Ele atuava como caseiro em uma pequena propriedade rural, morando com sua esposa em um pequeno barraco, sujo, precário, sem banheiro e ameaçando desabar. O valor das verbas rescisórias e direitos trabalhistas foi de R$ 14 mil, o que foi pago pela empregadora.

Para quitar o dano moral individual e coletivo, a empregadora firmou um Termo de Ajuste de Conduta com o Ministério Público do Trabalho e a Defensoria Pública da União se comprometendo a comprar e repassar para o nome do resgatado uma casa na cidade de Castelândia (GO) em 180 dias.

Todos os resgatados receberão três parcelas de seguro-desemprego especial para vítimas da escravidão.

Trabalho escravo hoje no Brasil

A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.

Desde a década de 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel, base do sistema de combate à escravidão no país, em maio de 1995, mais de 60 mil trabalhadores foram resgatados e R$ 127 milhões pagos a eles em valores devidos.

Denúncias de trabalho escravo podem ser feitas de forma sigilosa no Sistema Ipê, sistema lançado em 2020 pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Dados oficiais sobre o combate ao trabalho escravo estão disponíveis no Radar do Trabalho Escravo da SIT.

*Colaborou Daniel Camargos

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