O que as vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton têm em comum com a Zara, a Animale, a M.Officer, a MRV, a OAS, a Odebrecht, a Cutrale, a Citrosuco, a Cosan, a Nespresso, a Starbucks, a JBS, a Marfrig e o Minerva? São exemplos de grandes empresas que foram acusadas de envolvimento direto ou indireto com trabalho escravo.
Parte dos 207 resgatados da escravidão em Bento Gonçalves (RS) trabalhava para a Fênix, uma prestadora de serviço das três vinícolas gaúchas, atuando na carga e descarga de uvas. Isso gerou comoção devido à violência com a qual eles eram tratados – o que incluía o uso de armas de choques, spray de pimenta e cassetetes. Contribuiu o fato de o vinho ser visto no Brasil como produto de elite.
Mas o trabalho escravo contemporâneo está presente nas relações laborais muito mais do que as pessoas imaginam, e em cadeias produtivas voltadas ao mercado interno e externo.
Só para citar os exemplos presentes no início deste texto, resgates de escravizados ocorreram na linha de fabricação de roupas da Zara em 2011, da Animale em 2017, da M.Officer, em 2013 e 2014.
Obras da MRV foram palco de resgates em 2021, 2014, 2013 e 2011. Em 2013, trabalhadores das obras de ampliação do Aeroporto Internacional de São Paulo, da OAS, foram resgatados. A Odebrecht respondeu na Justiça do Trabalho por escravizar brasileiros em Angola em contratações até 2014 e fechou um acordo de R$ 30 milhões com o Ministério Público do Trabalho para encerrar a ação.
A produção de laranja para a Cutrale foi alvo de resgate de escravizados em 2013 e para a Citrosuco, em 2013 e 2020. A Cosan foi palco de um resgate de trabalhadores de uma de suas usinas de cana em 2007.
Um produtor de café flagrado com trabalho escravo em 2018 era fornecedor certificado com selo de qualidade tanto da Nespresso quanto da Starbucks.
Todos os dados são do Ministério do Trabalho e Emprego. E os frigoríficos JBS, Marfrig e Minerva receberam e processaram gado que passaram por pecuaristas flagrados por esse crime nos últimos cinco anos.
Os mais de 60 mil resgatados da escravidão desde 1995, quando o governo brasileiro criou o sistema público de combate a esse crime, foram encontrados em dezenas de atividades econômicas. Ou seja, temos “escravizados do vinho”, mas também da madeira, do bife, do couro, do aço, da soja, do algodão, do café, do suco de laranja, do tomate, da pimenta-do-reino, da erva-mate, da batata, da cebola, da farinha de mandioca, do sisal, do ouro, das roupas, dos bordéis, da construção civil. E claro, os escravizados de nossas residências pelo trabalho escravo doméstico. Os dados também são do governo federal.
Após terem seu envolvimento descoberto, parte das empresas tomou ações para melhorar o controle de suas cadeias produtivas, pois a vinculação de seus nomes com a escravidão costuma gerar até queda de ações na Bolsa de Valores.
Como foi o caso da Cosan. Após a sua inclusão na “lista suja”, o Walmart e outras redes varejistas divulgaram que estavam suspendendo a compra de açúcar das marcas União e Da Barra, pertencentes à empresa. E o BNDES decidiu suspender, em caráter preventivo, “todas as operações com a empresa” até que ela saísse da lista. Com isso, as ações tiveram desvalorização de 5,32% na Bolsa de São Paulo no dia 7 de janeiro de 2010.
A justificativa-padrão é a de que não sabiam o que acontecia, como a que foi dada pelas vinícolas do Rio Grande do Sul, o que não é mais aceito sem contestação de investidores, de financiadores e dos mercados interno e externo.
Rompimento de contratos e bloqueio de financiamento
A França, por exemplo, criou uma lei em que corporações instaladas no país podem ser responsabilizadas por lucrar com trabalho escravo mesmo que o crime tenha sido cometido fora. O banco BNP Paribas está sendo denunciado pela Comissão Pastoral da Terra e por organizações francesas por violar a Lei Francesa do Dever de Vigilância devido ao financiamento de desmatadores e de escravagistas no Brasil.
Já nos Estados Unidos, se há indícios de que um produto foi fabricado no exterior com o uso de formas contemporâneas de escravidão, a legislação impede que ele entre no país.
As empresas começaram a se mexer no Brasil após a criação do cadastro de empregadores responsabilizados por mão de obra análoga à de escravo, conhecido como “lista suja”. Desenvolvido em 2003 pelo governo Lula, ele dá transparência aos nomes de quem foi flagrado por esse crime e teve direito à defesa em duas instâncias administrativas. É utilizado pelo setor empresarial para gerenciamento de risco de seus negócios.
Por uma decisão do Conselho Monetário Nacional, de 2010, que proíbe a concessão de crédito rural a quem esteja nela relacionado, bancos públicos e privados precisam checar a lista. O Ministério Público do Trabalho avalia que o bloqueio de financiamento tem falhas e acionou os bancos para que ele seja efetivado. Fundos de investimento nacionais e estrangeiros, como o fundo de pensão norueguês, têm sido bastante diligentes ao usar a lista.
A “lista suja” enfrentou resistência por aqui,apesar de ser considerado pelas Nações Unidas um dos principais instrumentos de combate à escravidão em todo o mundo, porque ela gera pressão real. Associações do agronegócio e do setor imobiliário tentaram derrubar a lista, mas o Supremo Tribunal Federal confirmou a constitucionalidade do cadastro em 2020.
Em 2005, foi lançado o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, que chegou a envolver 30% do PIB no combate a esse crime, usando a lista como alicerce.
Confisco de propriedades flagradas com escravizados foi aprovada em 2014
Há outras medidas que ajudam no combate aos lucros do trabalho escravo.
Após o resgate de 207 trabalhadores em Bento Gonçalves, as redes sociais bombaram a ideia de aprovar uma lei para confiscar propriedades onde o crime foi cometido e destiná-las à reforma agrária ou ao uso habitacional urbano. Acontece que essa lei já existe há quase nove anos, fruto de uma das maiores mobilizações sociais desde a redemocratização. Mas sua regulamentação ficou empacada por conta da pressão da bancada ruralista.
O Estado de São Paulo conta com uma lei, aprovada em 2013, e já regulamentada, que prevê o banimento por dez anos de empresas condenadas por trabalho escravo.
Já a capital paulista tem legislação, desde 2016, que prevê multa de até R$ 100 milhões por trabalho escravo e cassação da licença de funcionamento no município. Ainda não há empregadores punidos por ambas as leis.
Empresas costumam responsabilizar terceirizados
No momento em que foram acusadas de envolvimento com trabalho escravo, a maioria das grandes empresas culpou prestadores de serviço.
A Aurora afirmou que se solidarizava com os trabalhadores da empresa terceirizada, que repassava recursos suficientes para remuneração digna e que não havia diferenciação entre as condições dos contratados e dos terceirizados na empresa. A Cooperativa Garibaldi afirmou que desconhecia a situação relatada e que o contrato com a prestadora de serviços foi cancelado.
A Salton afirmou que repudia violações aos direitos humanos, rescindiu contrato com a prestadora de serviços e intensificou a fiscalização de terceirizados e prestadores. Também afirmou que repudia declarações de políticos e associações que imputem responsabilidade sobre as vítimas.
A Zara e a Animale disseram que não tinham conhecimento do que acontecia em seus fornecedores na época dos resgates. A M.Officer negou responsabilidade pela situação encontrada.
A MRV afirmou, na época do último flagrante, que não compactua com irregularidade na contratação de colaboradores e que suspendeu o contrato com a empresa de recrutamento. A OAS disse que as pessoas não eram funcionários da construtora, mas de terceirizados. A Odebrecht apontou que as condições de trabalho na empresa sempre foram fiscalizadas e atestadas positivamente por autoridades angolanas.
A Cutrale afirmou que seus contratos têm cláusulas sobre a necessidade de cumprir a lei e pode interromper relações comerciais. A Citrosuco afirmou que repudia trabalho escravo em seus fornecedores. A Cosan disse que as irregularidades foram cometidas por uma prestadora de serviços.
A Nespresso afirmou que não aceita fazendas que descumpram a lei e suspendeu relação com o produtor após tomar conhecimento do caso. A Starbucks disse que iria investigar o episódio, o que poderia levar à suspensão da relação comercial.
JBS, a Marfrig e o Minerva afirmam utilizar a “lista suja” para bloquear fornecedores, mas não possuem mecanismos eficientes para identificar as vendas realizadas através de laranjas ou intermediários.
Trabalho escravo hoje no Brasil
A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.
Desde a década de 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
Desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel, base do sistema de combate à escravidão no país, em maio de 1995, mais de 60 mil trabalhadores foram resgatados e R$ 127 milhões pagos a eles em valores devidos.
Denúncias de trabalho escravo podem ser feitas de forma sigilosa no Sistema Ipê, sistema lançado em 2020 pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Dados oficiais sobre o combate ao trabalho escravo estão disponíveis no Radar do Trabalho Escravo da SIT.