“Isso não vai ficar assim. Vão se foder todos vocês! Vocês não podem roubar minha máquina, ela tem dono.”
Foi em tom de ameaça que, numa manhã de fevereiro de 2022, João Anilton Brandão da Silva teria recebido oficiais de Justiça e policiais militares na casa de seus familiares, localizada no município de Tucumã, sudeste do Pará.
Um mandado judicial determinava a apreensão de uma retroescavadeira para garantir o pagamento de mais de R$ 400 mil devidos a sete ex-empregados de um garimpo controlado por sua família. Três parentes de João Anilton já haviam sido condenados em primeira instância na Justiça do Trabalho por não registrarem a carteira e por deixarem de pagar FGTS, férias e décimo terceiro salário.
No dia do cumprimento do mandado, João Anilton teria dito ainda que iria “matar a todos”, de acordo com um documento do Ministério Público Federal. Um dos alvos seria o juiz que havia autorizado a apreensão da máquina, Vanilson Rodrigues Fernandes, titular da Vara do Trabalho de Xinguara (PA).
“Eles não estão acostumados a resolver por meio do processo legal, então resolvem as coisas por intermédio da violência”, diz o juiz.
“A gente está muito aflito, nenhuma autoridade pública deveria ser ameaçada desse jeito”, complementa Fernandes, que até o começo deste ano tinha autorização do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 8ª Região para atuar fora de Xinguara, sede da Vara. Quando precisava despachar presencialmente no município, ele contava com escolta policial.
Um ano após o início do caso, Fernandes afirma atravessar um momento delicado. Em breve, a retroescavadeira deve ser leiloada pela Justiça — e ele teme que a iminente venda do maquinário, avaliado em R$ 600 mil, provoque uma nova onda de intimidações.
A apreensão e a venda dessas peças, que praticamente não são controladas por autoridades, como já demonstrado pela Repórter Brasil, inviabilizam a atividade dos garimpeiros.
A reportagem entrou em contato com João Amilton — ele alega não ter feito qualquer ameaça. “Eu fiquei bravo com a polícia, mas não falei besteira de juiz, nem nada. Foi o policial militar que falou que ia me foder. E aí ele inventou isso [as ameaças] perante o escrivão”, disse à Repórter Brasil, por telefone.
João Anilton nega ainda que a escavadeira seja utilizada no garimpo de seus familiares. Ainda segundo ele, a máquina não pertence a seus parentes, mas a uma agricultora da região.
O caso de Fernandes se soma a outros semelhantes no sudeste do Pará. Ao menos outros três magistrados relatam ter sofrido ameaças após a penhora ou confisco de bens para o pagamento de verbas trabalhistas na região, nos últimos doze anos.
“As ameaças contra o juiz se inserem em um processo mais amplo de violência na Amazônia”, afirma Ana de Souza Pinto, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Xinguara.
Ela lembra que mais de 600 assassinatos relacionados a disputas por terra e questões trabalhistas aconteceram nas últimas quatro décadas no Sul do Pará. Para ela, “é necessário um enfrentamento mais eficaz contra a impunidade, investigando as denúncias, apurando e responsabilizando aqueles que praticam os crimes e toda essa violência”.
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“Mesmo fim da irmã Dorothy”
A família Brandão é acusada de ameaçar pessoas bem antes daquela manhã em que foi apreendida a retroescavadeira. Durante uma audiência trabalhista em 2019, Marcos Araújo (sobrinho de João Anilton) teria intimidado a advogada dos empregados do garimpo. Na frente de outras pessoas, insinuou que ela poderia ter o mesmo fim da “irmã Dorothy” — uma referência à missionária católica Dorothy Stang, assassinada em Anapu (PA), em 2005.
Marcos Araújo teria dito ainda que havia contratado uma pessoa por R$ 5 mil para “acabar com a vida” de duas testemunhas. Uma delas chegou a afirmar que a família Brandão tinha “fama na região de contratar pistoleiros para resolver problemas particulares do garimpo”.
A advogada dos trabalhadores do garimpo registrou um boletim de ocorrência no mesmo dia da audiência. Procurada pela reportagem, ela confirmou o teor da história.
A reportagem também tentou contato com Marcos Araújo por meio do número de telefone que consta dos autos do processo, mas não obteve resposta. Já a advogada que aparece como representante dos Brandão afirmou não atuar mais na defesa dos réus.
Polícia Federal arquivou o caso após recuo de testemunhas.
Em 17 de março de 2023, o TRT-8ª Região determinou o fim do trabalho remoto para o juiz Vanilson Rodrigues Fernandes. Atualmente, ele tem de ir cotidianamente à Vara de Xinguara, onde se diz mais exposto.
A decisão do TRT foi tomada após uma investigação sobre o caso ser arquivada pela Polícia Federal (PF).
O inquérito foi finalizado após um tenente da PM e dois oficiais de justiça, presentes no dia da apreensão da retroescavadeira, negarem ter presenciado qualquer “ameaça de mal grave”. Contudo, o sargento que havia relatado as ameaças não chegou a ser ouvido no inquérito.
Em abril deste ano, o juiz Vanilson Rodrigues Fernandes solicitou novamente ao TRT autorização para fazer jornada híbrida.
Em nota, o TRT afirmou: “Com a decisão do Conselho Nacional de Justiça de retorno presencial dos magistrados para atuação a partir da sede das varas em que são titulares, a presidência solicitou verificação sobre o andamento das investigações e, tanto na esfera civil quanto na da PF, ficou configurada a ausência de elementos que comprovassem a ocorrência de ameaça, bem como sua possível efetivação, o que ocasionou o encerramento dos inquéritos nas duas esferas, não justificando mais o aparato de segurança que vinha sendo destinado ao juiz, desde o início das investigações”.
Região tem histórico de ameaças a juízes do Trabalho
Ao solicitar medidas de segurança ao tribunal, o advogado de Vanilson Rodrigues Fernandes compilou outros casos de juízes que passaram por situações semelhantes na região.
Em 2011, a magistrada Tatyanne Rodrigues de Araújo, então titular da Vara de Xinguara, também recebeu ameaças de morte depois de determinar a penhora de um carro de um empregador. Após se alterar e levantar a voz contra Tatyanne, ele teria afirmado que “voltaria armado” para encontrar a juíza.
Já em 2013, o juiz Jonatas dos Santos Andrade, responsável pela Vara do Trabalho em Marabá, recebeu ameaças após autorizar a penhora de 18 veículos e mais 900 cabeças de gado de um fazendeiro da região.
No início deste ano, no município de Redenção, a juíza Alessandra Silva Meyer Maciel também foi vítima de ameaças durante uma audiência trabalhista.
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