Marco temporal: cobiça da soja por terras indígenas ignora pressão internacional por desmatamento zero

Entidades do agronegócio defendem em Brasília os interesses de multinacionais e impedem criação de novas terras indígenas com base no marco temporal
Por Hyury Potter e Diego Junqueira
 07/06/2023
Em Itaituba, na região Tapajós, o número de plantações de soja aumentou após a construção de porto graneleiro da Cargill. (Foto: Christian Braga/ClimaInfo/Agosto de 2022)

O lobby da soja é uma das principais forças operando em Brasília a favor do chamado “marco temporal” para terras indígenas – tese aprovada na semana passada pela Câmara dos Deputados e que volta à pauta de julgamentos do Supremo Tribunal Federal (STF) nesta quarta-feira (7). Dezenas de entidades do setor integram o processo na Corte e atuam localmente para impedir que novas áreas sejam reconhecidas como indígenas, principalmente no Pará e Mato Grosso. Mas o apetite dos sojeiros pelos territórios tradicionais pode ter um reflexo negativo para os negócios no exterior, segundo especialistas.

No oeste do Pará, os sojeiros tentam impedir a criação da terra indígena Planalto Santareno, área reivindicada por povos Munduruku desde 2008, mas cujo processo de identificação se arrasta desde 2018. A região é tomada por fornecedores da gigante norte-americana Cargill, que construiu um porto graneleiro em Santarém em 2003, o que intensificou os casos de grilagem e a disputa de terras para a produção do grão, afetando as comunidades locais.

Municípios da região Tapajós, no sudoeste do Pará, como Belterra, viraram alvo de sojeiros após a construção do porto graneleiro da Cargill em Santarém. (foto: Christian Braga/ClimaInfo/Agosto de 2022)

“O agronegócio mata a nossa fome de viver”, afirma Josenildo Munduruku, cacique da aldeia Açaizal, no Planalto Santareno. Ele critica o uso de maquinário pesado e agrotóxicos na monocultura. “As máquinas fazem muito barulho até de noite, e não conseguimos produzir como antes porque o veneno é muito forte e prejudica as nossas terras”, diz.

A Justiça Federal determinou em 2018 que a Funai iniciasse os estudos para a demarcação do território, mas o processo não andou durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). Procurada, a Cargill respondeu que “não compra grãos produzidos em Terras Indígenas homologadas” (nota na íntegra).

No estado que mais produz soja no país, o Mato Grosso, os indígenas também encontram dificuldades para demarcar suas terras em razão da pressão econômica da soja e de outras commodities, como milho, algodão e carne. Para os ruralistas locais, o marco temporal virou a tábua de salvação, já que a tese determina que uma área só pode ser considerada indígena se os indígenas ocupassem o local na data da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988. Isso inviabilizaria o retorno de vários povos expulsos nas décadas de 1960 e 1970 de seus territórios.

Na época, o avanço de seringueiros, a abertura de estradas e a invasão de sulistas, estimulada pelo governo militar, obrigou alguns povos a se deslocarem para outras áreas, como o Parque Indígena do Xingu (PIX), regularizado em 1961. As etnias, porém, sempre reivindicaram o retorno a suas terras originárias, onde afirmam estar enterrados seus antepassados.

É o caso do povo Ikpeng, que vive atualmente no parque do Xingu, mas pleiteia a Terra Indígena Roro-Walu, uma área de aproximadamente 270 mil hectares no município de Paranatinga (MT), às margens do rio Jatobá. Os estudos da Funai para identificação do território estão paralisados por decisão judicial a pedido do sindicato dos produtores rurais de Paranatinga.

Na mesma região, o pedido de ampliação da Terra Indígena Bakairi (já regularizada) foi travado pela gestão anterior da Funai, apesar de decisão judicial obrigando novos estudos.

Nos dois casos, o marco temporal limitaria o direito dos indígenas a suas terras. Por isso, associações de sojeiros defendem a tese com tanto afinco. “O município [de Paranatinga] tem o potencial para se tornar um dos maiores municípios produtores de soja sem derrubar uma árvore, aproveitando áreas de pastagens. Porém, com a revisão do marco temporal, todo esse potencial pode ser perdido. Como ficam agricultores, trabalhadores, e até a população urbana?”, diz o vice-presidente da Associação dos Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso (Aprosoja/MT), Lucas Costa Beber, em comunicado publicado pela organização na semana passada.

Mais ao norte de Mato Grosso, em Brasnorte, o pedido de ampliação da TI Menkü também enfrenta pressão dos sojeiros. A identificação do novo limite da terra, que havia sido aprovada pela Funai, foi anulada pelo governo anterior em novembro passado, um ato inédito nas demarcações de terras. Neste ano, fazendas de soja foram certificadas dentro da área reivindicada pelo povo Myky, segundo revelou a Agência Pública.

O relatório “Os Invasores”, lançado pelo De Olho nos Ruralistas em abril deste ano, identificou 1.692 propriedades rurais sobrepostas a 213 terras indígenas homologadas ou em processo de homologação pela Funai.

Em Santa Catarina, o povo Guarani Mbya luta há mais de 14 anos para o reconhecimento da terra Morro Alto, em São Francisco do Sul. Já identificada, o principal empecilho para a homologação do território é o “Projeto São Francisco 135”, que se sobrepõe a uma parte da TI. Até 2022, o imóvel pertenceu à Bunge Alimentos S.A., subsidiária da gigante estadunidense do agronegócio, segundo o De Olho nos Ruralistas.

Apesar da venda em 2022, o imóvel continua registrado em nome da multinacional. Em nota, a empresa informou que “não é parte em nenhum processo administrativo onde se discute a demarcação como área indígena e, pelas informações públicas disponíveis, essa demarcação não aconteceu, não havendo, portanto, qualquer ilegalidade por parte da empresa”.

Lobby organizado

A Aprosoja é quem organiza o lobby do setor. A entidade é a mais atuante das 136 que apresentaram pedidos para participar da ação do marco temporal no STF, segundo levantamento da organização Terra de Direitos.

“As empresas não aparecem diretamente. Enquanto essas associações pressionam congresso, governo e judiciário, as multinacionais fazem ‘greenwashing’”, explica Pedro Martins, do Terra de Direitos, indicando que as companhias utilizam estratégias de marketing para se apresentarem como sustentáveis, embora apoiem a articulação dessas entidades. Procurada, a Aprosoja não respondeu à Repórter Brasil.

“O agro hoje é mais organizado que as bancadas da bala e da indústria”, diz Juliana de Paula Batista, advogada do Instituto Socioambiental, organização não governamental que acompanha a ação do marco temporal.

O lobby em Brasília conta também com o Instituto Pensar Agropecuária, que é financiado pelas gigantes globais da soja e ligado à Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), mais conhecida com “bancada ruralista”. A entidade produziu uma cartilha para orientar deputados sobre a defesa do marco temporal, segundo o The Intercept Brasil.

Em nota, a FPA diz “não ser contrária aos direitos indígenas”, e que “é a favor do marco temporal para garantir a segurança jurídica de quem compra uma propriedade privada” (veja todos os posicionamentos completos).

Para quem trabalha na ponta da resistência contra a pressão de sojeiros em terras indígenas, a articulação fica ainda mais evidente. “Eles atacam os povos indígenas em três esferas. No local, ameaçando as comunidades; no legislativo, em projetos de leis como o PL 490 [que institui o marco temporal]; e também no Judiciário, tentando influenciar o julgamento no STF”, diz Dinamam Tuxá, advogado e coordenador-executivo da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas (Apib) no Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo.

Plantações de soja pressionam terras indígenas e unidades de conservação em Itaituba, no sudoeste do Pará. (foto: Christian Braga/ClimaInfo/Agosto de 2022)

Visão arcaica

Os olhos do mundo estão atentos ao que acontece em Brasília. A eurodeputada do partido Verde da Alemanha, Anna Cavazzini, que também é vice-presidente para relações do Parlamento Europeu com o Brasil, enviou uma carta ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD/MG), pedindo para que contenha legislações questionáveis e garanta “os direitos ambientais e indígenas”.

“O avanço do agro sobre terras indígenas espanta investimentos, pois há uma demanda internacional por preservação da floresta e esses territórios são as áreas mais preservadas. O que essa parcela do Congresso e de empresários têm é uma visão arcaica de desenvolvimento, que é predatória ao meio ambiente”, diz Batista, do ISA.

A FPA respondeu não acreditar em sanções internacionais, no caso de aprovação do marco temporal. Para a entidade, o agronegócio deverá ter prejuízo de R$ 520 bilhões, caso o marco temporal não seja aprovado. A entidade também nega que a agropecuária seja um “vetor relevante de desmatamento”, contrariando evidências científicas. A agropecuária foi responsável por 97% do desmatamento de floresta nativa no país entre 2019 e 2021, segundo estudo publicado pela organização Mapbiomas.

Para a advogada do ISA, o andamento da ação do marco temporal no STF, em julgamento desde 2017, é uma peça importante para frear o avanço dos sojeiros sobre terras tradicionais que deveriam ser preservadas.

“O que a sociedade espera é que o STF mantenha a pauta e julgue o caso, pois enquanto se espera por isso, os direitos dos povos indígenas estão sendo atacados com um Congresso querendo produzir leis notoriamente inconstitucionais”, afirma a advogada.

Entenda o julgamento do Marco Temporal

A ação do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, com repercussão geral, popularmente conhecida como marco temporal, discute se 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, deve ser adotada como marco temporal para definição da ocupação tradicional da terra por indígenas.

O caso foi originado em uma disputa entre governo de Santa Catarina e os povos xokleng, kaingang e guarani. O governo estadual reivindica parte da Terra Indígena Ibirama Laklãnõ. Mesmo com a declaração de ocupação tradicional indígena pela Funai, o Tribunal Regional da 4ª Região (TRF-4) chegou a determinar a reintegração de posse aos órgãos catarinenses.

Um dos principais argumentos dos povos xokleng é que eles sofreram perseguições na região, por isso tiveram que migrar de seus territórios tradicionais. Esse também é um dos pontos debatidos no STF, pois muitos povos defendem que a perseguição é um dos fatores que fizeram outros povos serem removidos das próprias terras. O governo catarinense diz que a área pretendida era pública e pertence a produtores rurais desde o final do século 19.

Em 2021, o relator do caso, ministro Edson Fachin, votou contra o marco temporal, destacando que os direitos territoriais indígenas “não tiveram início apenas em 5 de outubro de 1988”.

Já o ministro Nunes Marques, nomeado por Bolsonaro, votou a favor do governo catarinense e a favor do marco temporal. Na sequência, o ministro Alexandre de Moraes pediu mais tempo para analisar o caso, que volta ao plenário nesta quarta (7).

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