Quase 90% dos quilombolas ainda vivem em territórios não titulados

Brasil tem 1.327.802 pessoas quilombolas registradas, mostra primeiro censo da história. Levantamento aponta demora nos processos de reconhecimento dos territórios.
Por Marina Rossi e Naira Hofmeister
 27/07/2023

Com orgulho, a aposentada Lígia Maria da Silva, 67, mostra o Diário Oficial da União de 26 de outubro de 2006 que ela emoldurou e pendurou na parede da sala. O quadro é o símbolo da declaração do Quilombo da Família Silva, que fica em Porto Alegre e é considerado o primeiro quilombo urbano reconhecido.

A declaração da área é uma das fases para que o território chegue enfim a ser titulado (leia mais abaixo). Essa última etapa do processo só foi conquistada por 147 territórios até hoje, incluindo o Quilombo da Família Silva – uma área anexa ainda está em processo de titulação.

Dona Lígia tem orgulho de mostrar a declaração do território porque o processo até chegar à titulação é extenso e pode levar anos. Assim, das 1.327.802 pessoas quilombolas registradas no país, quase 90% ainda vivem em comunidades que não foram tituladas. Quase 500 territórios estão em alguma fase da delimitação formal, como o da Família Silva.    

Os dados foram levantados pelo primeiro censo quilombola da história realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas) e divulgado nesta quinta-feira (27). De acordo com o IBGE, quilombolas são os grupos étnicos, segundo critérios de autoatribuição, “com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão historicamente sofrida”.

Com mais outros dez quilombos autodeclarados na cidade, Porto Alegre é um dos 1.696 municípios brasileiros com esses territórios. Há quilombos  espalhados por todos os estados, exceto Acre e Roraima. O censo contabilizou 473.970 domicílios com pelo menos um morador quilombola. A média de moradores por domicílio é de 3,17 pessoas, número maior que a média do resto do Brasil, de 2,79.

O levantamento, inédito, começa a fazer um desenho dessa parcela da população que representa 0,65% dos brasileiros e brasileiras hoje. O censo mostra que o Nordeste concentra 68% desta população, seguido pelo Sudeste (14%), Norte (12,5%), Centro-Oeste (3,5%) e finalmente o Sul, com 2%. Bahia, Maranhão, Minas Gerais, Pará e Pernambuco, nesta ordem, são os estados com mais pessoas quilombolas, com 76,5% do total populacional. Já no Rio Grande do Sul, onde está a comunidade da Família Silva, a população quilombola corresponde a 0,16% dos residentes no estado. 

Titulação não afasta desigualdades

Situado no bairro Três Figueiras, local com o metro quadrado mais caro de Porto Alegre, o território em que dona Lígia vive desde que nasceu ocupa 6.511 m², área menor que um campo de futebol. Ela recebe um salário mínimo por mês de aposentadoria e complementa a renda com diárias de R$ 80 que faz como trabalhadora doméstica. Para chegar ao serviço, dona Lígia precisa pegar três conduções. 

Sua realidade é parecida com a dos demais moradores do Quilombo da Família Silva, que em 2021 contabilizava 63 habitantes. “Aqui, a maioria das mulheres trabalha de doméstica, enquanto os homens são jardineiros, guardinhas de guarita ou trabalham em obras”, diz ela.

Por outro lado, a vida dessas famílias é muito diferente da dos demais moradores do bairro Três Figueiras, onde a renda média declarada por domicílio é de mais de 17 salários mínimos, segundo o dado mais recente divulgado, do censo de 2010

As casas de madeira do quilombo, várias em estado precário, contrastam com muros altos de concreto que as separam dos imóveis de alto padrão. Houve um tempo em que os moradores do território dividiam todos o mesmo banheiro. 

Ligia Maria da Silva, presidente da associação do Quilombo da Família Silva, em Porto Alegre (Foto: Naira Hofmeister/Repórter Brasil)

“Era um só, grande, na casa da Preta, minha irmã. Mas depois veio a Funasa (Fundação Nacional de Saúde) e fez 12 banheiros para a gente. Os vizinhos dos condomínios viam as retroescavadeiras das janelas e gritavam ‘vão levar a negrada embora’”, conta a aposentada.

Uma visita ao Quilombo da Família Silva mostra que, embora o processo de reconhecimento formal de um território seja importante para que sua população tenha acesso a determinadas políticas públicas, a realidade se impõe: o quadro de dona Lígia na parede não blinda sua comunidade das desigualdades sociais. 

Wallace dos Santos, professor do departamento de ciência política da UFRJ, lembra, no entanto, que, apesar das desigualdades socioeconômicas, esses territórios têm diversas outras riquezas. “A perspectiva de vida dos quilombolas, assim como a dos indígenas, é diferente da perspectiva eurocêntrica, que vê a natureza como objeto de riqueza”, diz.

“São perspectivas de interpretação de mundo muito distintas uma da outra. Uma tem asfalto, indústria, riqueza capitalista, e a outra pode não ter essas riquezas mas é muito mais rica e valorosa em outro cenário”, afirma o professor, que é  também um dos fundadores do Quilombo do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais , que engloba alunos indígenas e do coletivo de docentes negros da UFRJ.

Processo longo e complexo

O que não cabe nos dados é o impacto da insistência dos Silva em reivindicar o pedaço de chão que sempre chamaram de casa em meio a uma região cobiçada pela construção civil. Saindo da comunidade e cruzando a avenida Nilo Peçanha, dá-se de cara com um mural colorido ao lado de uma estreita viela. No muro, entre ilustrações artísticas, lê-se “Quilombo Kédi”. A comunidade, antes conhecida como Vila Kédi, se autodeclarou território quilombola em 2021 e já obteve o certificado da Fundação Cultural Palmares, que o autoriza a batalhar pela regularização da área

“Os Silva inauguraram um capítulo da história com sua coragem de permanecer no território. Graças a esse exemplo, hoje Porto Alegre conta com 11 comunidades quilombolas, 8 delas já certificadas pela Fundação Cultural Palmares”, diz Onir de Araújo, integrante da Frente Quilombola do Rio Grande do Sul.

Para ser considerado oficialmente um território quilombola, a comunidade precisa obter a certidão de autodefinição de remanescente junto à Fundação Cultural Palmares. Depois, é preciso requerer a abertura do processo de regularização junto ao Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), ou, em alguns estados, com os institutos estaduais de terras.

O processo de regularização é então iniciado, com a elaboração de uma série de estudos na área. A partir do levantamento de uma série de informações cartográficas, fundiárias, socioeconômicas e ambientais, o Incra elabora o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). O objetivo é identificar os limites de cada território.

A conclusão dos estudos é publicada no Diário Oficial e os eventuais titulares de imóveis situados no território são notificados. Os interessados têm 90 dias para contestar na Justiça o RTID e os recursos são julgados. Só então o Incra publica uma portaria de reconhecimento, definindo os limites finais do território. No entanto, a titulação final só é emitida após desapropriações e indenizações pagas, quando necessário. O título da terra, enfim, é sempre coletivo e em nome da associação legalmente constituída para representar a comunidade. O documento não prescreve com o tempo e a área titulada não pode ser dividida, vendida e nem penhorada.

A complexa série de etapas burocráticas explica, em parte, a demora para a conclusão dos reconhecimentos dos territórios. Para o professor Wallace dos Santos, reconhecer e titular os quilombos é importante para que esses territórios não sejam tomados de volta. “Reconhecer essas comunidades é o mínimo. O estado deveria ainda pagar indenização a todos os negros e negras do país”.

O Incra afirmou, por meio de nota, que “o processo de regularização é complexo, com várias etapas e depende de informações de terceiros, sejam particulares ou públicos”. E que “fatores como disponibilidade de recursos humanos, orçamentários e financeiros, a capacidade operacional de cada unidade do Incra, assim como a conclusão do processo judicial de desapropriação, impactam o andamento regular do procedimento de regularização de forma diferenciada para cada comunidade”.

Especificamente sobre o Quilombo da Família Silva, visitado pela reportagem, o Incra informou que a comunidade está de posse de todo o território. Mas que a titulação da parte ainda não titulada depende do resultado de ações judiciais interpostas pelos antigos proprietários cartoriais do local, que contestam o valor da indenização depositada em juízo pelo instituto.

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