Risco de trabalho escravo leva certificadora a impor mais rigor a fazendas brasileiras

Plantações de café detentoras do selo da Rainforest Alliance foram palco recente de flagrantes de escravidão. Para o diretor da iniciativa no Brasil, são casos excepcionais e os investimentos exigidos nas fazendas melhoram as acomodações e salários dos trabalhadores.
Por André Campos e Naira Hofmeister
 25/07/2023

Auditorias durante o período da colheita, consulta a documentos derivados de fiscalizações do governo e a processos judiciais são algumas das práticas adotadas pela Rainforest Alliance como um ‘pente fino’ para monitorar as condições de trabalho em fazendas brasileiras. A certificação, uma das mais respeitadas no mundo na verificação de boas práticas, teve a sua imagem afetada por flagrantes recentes de violações trabalhistas e até mesmo de escravidão contemporânea em cafezais detentores do selo.

No mais recente exemplo, noticiado pela Repórter Brasil, uma produtora certificada de manga no Rio Grande do Norte foi multada por diversas irregularidades trabalhistas, entre elas não oferecer descanso aos safristas. Em 2022, duas fazendas detentoras do selo Rainforest Alliance tiveram 27 safristas resgatados do trabalho escravo pelo governo federal durante a colheita do café. 

“Reconhecemos os riscos trabalhistas em fazendas no Brasil [e, por isso] desenvolvemos uma política específica para o país, que amplia a definição de trabalho forçado”, explica o diretor da Rainforest Alliance no Brasil, Yuri Feres. As fazendas detentoras do selo empregam cerca de 70 mil trabalhadores rurais em território nacional.

Setenta mil brasileiros trabalham em fazendas certificadas pela Rainforest Alliance no país, a maioria das propriedades produz café (Foto: Lela Beltrão/Repórter Brasil)

O protocolo de certificação da iniciativa alerta que o “Brasil é considerado um país de alto risco para temas sociais”. Por isso, além de checar se empregadores ou fazendas estão incluídas na ‘Lista Suja do Trabalho Escravo’, auditores credenciados pela iniciativa fazem buscas por processos trabalhistas e se comprometem a visitar as propriedades durante o período da colheita – quando a mão de obra fica mais abundante e, os trabalhadores, mais expostos a violações.

“Tais casos são excepcionais e não representam a maioria das fazendas certificadas que têm trabalhado diligentemente para promover melhores condições de trabalho”, assegura Feres, que concedeu entrevista, por e-mail, para explicar os desafios da certificadora no país. A íntegra pode ser lida abaixo.

Repórter Brasil: Segundo o relatório anual da Rainforest Alliance, há 58 países com fazendas certificadas, nas quais trabalham 4 milhões de agricultores e que perfazem um total de 6 milhões de hectares de área certificada e 54 mil produtos com o Certificado Rainforest. Qual é a fatia desse total que corresponde ao Brasil? É possível detalhar os números para o nosso país?

Yuri Feres, Rainforest Alliance: No Brasil, existem 1.047 fazendas certificadas pela Rainforest Alliance que cobrem cerca de 590.000 hectares e empregam mais de 70.000 trabalhadores. No mercado brasileiro encontram-se aproximadamente 200 produtos com o selo Rainforest Alliance. A maioria das fazendas com certificação da Rainforest Alliance concentra-se no setor de café e uma seleção menor em cacau e frutas. 

Selo de sustentabilidade garante acesso a mercados mais rigorosos com o respeito aos direitos humanos e o meio ambiente (Foto: Lela Beltrão/Repórter Brasil)

Repórter Brasil: A Rainforest Alliance sistematiza indicadores próprios sobre as condições trabalhistas em fazendas certificadas? Quais impactos positivos podem ser reportados? Existem indicadores específicos para o Brasil?

Yuri Feres, Rainforest Alliance: A Norma da Rainforest Alliance consiste em um conjunto de requisitos fundamentais que inclui tanto critérios obrigatórios quanto de melhoria opcional. Estes critérios abrangem aspectos sociais, ambientais e econômicos de sustentabilidade.

Para obter a certificação, um conjunto de requisitos fundamentais deve ser atendido. Isso inclui critérios relacionados a temas sociais-chave, como direito e segurança no trabalho, melhoria de salários, jornada de trabalho e condições de segurança. Adicionalmente aos requisitos fundamentais, existem requisitos de melhoria, alguns obrigatórios e outros opcionais, que visam promover e medir o progresso da sustentabilidade das fazendas.

Para lidar e resolver problemas relacionados a possíveis violações dos direitos trabalhistas, os detentores de certificados seguem um processo de “Avaliar e Abordar”. Trabalho infantil, trabalho forçado, discriminação, violência e assédio no local de trabalho nunca foram e nunca serão tolerados pela Rainforest Alliance. No entanto, aprendemos ao longo de muitos anos de experiência, que simplesmente proibir essas violações de direitos humanos em nossa Norma não é suficiente. Por isso, nosso programa 2020 de certificação promove uma abordagem baseada em riscos, focada na prevenção, engajamento, melhoria e incentivo a agricultores e empresas para enfrentarem esses problemas em vez de escondê-los.

“Simplesmente proibir violações de direitos humanos em nossa norma não é suficiente. Nossa abordagem foca na prevenção e incentivo a agricultores e empresas para enfrentarem esses problemas em vez de escondê-los”. Yuri Feres, diretor da Rainforest Alliance no Brasil

Repórter Brasil: Nos últimos anos tivemos fiscalizações, algumas delas publicadas pela Repórter Brasil, que apontaram casos de violações trabalhistas e até mesmo de trabalho escravo em fazendas detentoras do selo da Rainforest Alliance. Essas denúncias tiveram algum impacto na forma como a Rainforest Alliance trabalha no Brasil?

Yuri Feres, Rainforest Alliance: Reconhecemos os desafios significativos representados pelos riscos trabalhistas em fazendas no Brasil. Considerando esses desafios contínuos, desenvolvemos uma política específica para o Brasil, que amplia a definição de trabalho forçado em linha com a legislação brasileira, e vai além das diretrizes da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da nossa própria definição de trabalho forçado.

A política exige especificamente que as Entidades Certificadoras verifiquem se há alguma fazenda incluída na Lista Suja do Trabalho Escravo. Também exigimos que as Entidades Certificadoras conduzam investigações adicionais para verificar se há processos judiciais ou casos em andamento nos Tribunais Regionais do Trabalho. A política também exige que os produtores realizem auditorias na época da colheita, quando a presença dos trabalhadores é maior, para que as condições de trabalho possam ser devidamente verificadas.

Embora levemos qualquer violação da nossa norma a sério, é importante observar que tais casos são excepcionais e não representam a maioria das fazendas certificadas que têm trabalhado diligentemente para promover melhores condições de trabalho e aderir à legislação brasileira e padrões internacionais.

Repórter Brasil: Como é o processo de due diligence em casos de empresas com infrações trabalhistas que possuem o certificado da Rainforest Alliance? Há casos concretos, no Brasil, em que o certificado foi retirado da empresa? Se sim, poderia dar exemplos?

Yuri Feres, Rainforest Alliance: Se uma fazenda certificada pela Rainforest Alliance não cumprir os critérios de certificação, a Rainforest Alliance pode tomar um conjunto de ações, conforme estabelecido nas regras do nosso programa. Isso pode incluir a condução de investigações, exigir ações de remediação, suspensão com prazo para correção de não-conformidades ou o cancelamento da certificação da fazenda. O processo específico e os critérios variam dependendo das circunstâncias e da gravidade das violações. Para obter informações sobre certificados específicos da Rainforest Alliance, consulte nosso banco de dados público.

É importante observar que, embora o programa de certificação da Rainforest Alliance tenha sido desenvolvido para incentivar práticas sustentáveis, nenhum programa de certificação respeitável pode garantir que todos os aspectos de uma fazenda ou empresa certificada estejam completamente livres de não-conformidades. Nosso objetivo principal é ajudar agricultores a melhorarem seus padrões operacionais, incluindo as condições de trabalho, conforme exigido pela lei e nossa norma.

Yuri Feres, diretor da certificadora no Brasil, confia que metodologia especial para o país tem efeito positivo na redução de riscos sociais (Foto: Rainforest Alliance/Divulgação)

Acreditamos em oferecer aos agricultores a oportunidade de melhorar suas condições, e reconhecemos que a perda automática da certificação muitas vezes tem o efeito oposto, afastando os produtores das melhores práticas. No entanto, se um agricultor deixar de atender recorrentemente nossos critérios, ele poderá ser removido de nosso programa de certificação. Isso garante a integridade do nosso programa e incentiva a melhoria contínua entre todos os participantes.

Para abordar questões de direitos humanos nas cadeias de abastecimento agrícola, é necessário um enfoque multifacetado. Isso envolve esforços colaborativos entre diversos atores, incluindo a aplicação das leis pelo governo, monitoramento das empresas, educação sobre direitos trabalhistas e engajamento com representantes dos trabalhadores. As empresas que compram do Brasil também devem assumir a responsabilidade oferecendo preços justos, recursos e parcerias sustentáveis para apoiar os agricultores e promover a equidade nas cadeias de abastecimento.

A Rainforest Alliance reconhece a importância crucial da implementação de intervenções que vão além da certificação. Estamos totalmente comprometidos em desempenhar nosso papel e, portanto, nossas estratégias incluem não apenas a certificação, mas também programas de paisagem e comunidade e defesa de direitos, todos trabalhando em conjunto para atingir nossos objetivos.

“Acreditamos em oferecer aos agricultores a oportunidade de melhorar suas condições, e reconhecemos que a perda automática da certificação muitas vezes tem o efeito oposto, afastando os produtores das melhores práticas”. Yuri Feres, diretor da Rainforest Alliance No Brasil

Repórter Brasil: O Brasil é o principal fornecedor global de café certificado. A produção estimada das fazendas cobertas pelo selo Rainforest Alliance equivale a mais do que 10% da produção nacional de café. Garantir o respeito às relações trabalhistas num universo crescente de fazendas traz dificuldades adicionais?

Yuri Feres, Rainforest Alliance: O desafio não reside necessariamente no número crescente de agricultores. Todos os anos, todos os detentores de certificado de fazendas passam por uma auditoria para manter sua certificação, garantindo que recebam uma inspeção minuciosa, conforme detalhado anteriormente.

O principal desafio é garantir que os agricultores cumpram os planos apresentados e revisados durante a auditoria ao longo do ano seguinte. Para endereçar essa questão, auditorias com não-conformidades significativas não são encerradas até que um plano de ação seja apresentado e implementado. Nos casos em que um agricultor não cumpre as correções e melhorias necessárias, a Rainforest Alliance, como último recurso, pode cancelar sua certificação.

A competitividade do mercado leva os produtores a minimizarem os custos de produção para manter a rentabilidade dos negócios. A certificação exige maiores investimentos em infraestrutura para melhorar as acomodações dos trabalhadores, oferecer melhores salários e implementar práticas de gestão mais rigorosas para reduzir o uso de pesticidas e agroquímicos.

Do mesmo modo, a certificação permite que os produtores acessem mercados mais exclusivos, comprometidos em pagar um diferencial adicional para apoiar e recompensar práticas social e ambientalmente responsáveis. De acordo com a norma da Rainforest Alliance, uma parte desse diferencial deve ser alocada para projetos sociais e ambientais dentro das fazendas certificadas.

“A certificação exige maiores investimentos em infraestrutura para melhorar as acomodações dos trabalhadores, oferecer melhores salários e implementar práticas de gestão mais rigorosas para reduzir o uso de pesticidas e agroquímicos”. Yuri Feres, diretor da Rainforest Alliance no Brasil

Auditores credenciados pela certificadora recebem treinamento antes de verificar condições socioambientais em fazendas brasileiras (Foto: Rainforest Alliance/Divulgação)

Repórter Brasil: Em relação às auditorias presenciais, nota-se um grande crescimento da modalidade de “certificação em grupo”, em que diversas fazendas (dezenas em alguns casos), são cobertas por um único certificado gerenciado por uma trading, cooperativa ou outra entidade administradora. Quais as dificuldades de realizar um monitoramento efetivo das fazendas nesse contexto? Há, por exemplo, menor frequência de auditorias em comparação com as fazendas certificadas individualmente?

Yuri Feres, Rainforest Alliance: É fundamental entender que a certificação em grupo pode facilitar a transformação em sustentabilidade em uma escala maior, aumentando o acesso aos agricultores de pequeno porte. Esse enfoque é especialmente benéfico para eles, pois individualmente muitas vezes carecem de recursos, conhecimentos técnicos ou capacidade para atender aos requisitos de certificação.

Garantir a conformidade consistente entre todos os participantes pode ser desafiador devido às variações na adoção e implementação de práticas sustentáveis e isso pode levar a inconsistências na garantia de sustentabilidade dentro do grupo. 

No Brasil, nossos detentores de certificado incluem pequenos agricultores, alguns dos quais são certificados como grupo, além de médias e grandes propriedades. O principal desafio é garantir que o administrador do grupo de fazendas possa avaliar de forma eficaz e eficiente seu grupo de acordo com a Norma Rainforest Alliance. Adicionalmente, eles devem ter as ferramentas necessárias para garantir a conformidade dentro do grupo.

O processo de auditoria para grupos de fazendas é mais complexo, pois envolve avaliar tanto a capacidade do administrador do grupo de implementar a norma da Rainforest Alliance quanto realizar avaliações de campo de membros do grupo de fazendas selecionadas aleatoriamente durante a auditoria. Para manter a objetividade e evitar qualquer potencial manipulação, a seleção das amostras de fazendas é anunciada aos membros do grupo apenas no dia anterior à auditoria. Essa prática visa evitar que algum grupo de fazendas influencie ou altere as amostras a seu favor.

“A intensa atividade agrícola combinada com as mudanças climáticas tornou o Brasil um dos maiores consumidores de pesticidas perigosos em todo o mundo”. Yuri Feres, diretor Rainforest Alliance no Brasil

Repórter Brasil: Quais outros desafios e soluções a Rainforest identifica no Brasil?

Yuri Feres, Rainforest Alliance: O Brasil desempenha um papel significativo na indústria global do café, mas seus métodos de agricultura em grande escala estão cada vez mais vulneráveis às mudanças climáticas e choques de mercado.

Implementar boas práticas agrícolas, como o uso adequado de fertilizantes, irrigação e cultivos de cobertura, pode dobrar a produtividade média do café, de acordo com dados da Rainforest Alliance. No entanto, a intensa atividade agrícola combinada com as mudanças climáticas tornou o Brasil um dos maiores consumidores de pesticidas perigosos em todo o mundo. Isso levanta preocupações sobre a degradação ambiental e os riscos para a saúde humana.

Para enfrentar esse problema, a colaboração entre empresas, governos e organizações da sociedade civil é crucial para aumentar a conscientização e garantir a aplicação, descarte e uso seguros de agroquímicos pelos agricultores.

A Rainforest Alliance apoia os agricultores na redução gradual do uso de pesticidas por meio de programas de treinamento e capacitação, promovendo práticas de Manejo Integrado de Pragas e fornecendo orientações para adoção de métodos agrícolas mais sustentáveis que reduzam a dependência de produtos químicos prejudiciais. Esses esforços visam melhorar a sustentabilidade ambiental e social das práticas agrícolas, ao mesmo tempo em que mantêm a produtividade e os meios de subsistência dos agricultores.


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