Com histórico de 467 resgatados, novo Minha Casa, Minha Vida não tem regras de combate ao trabalho escravo

Levantamento inédito identificou 18 empreendimentos do programa habitacional com casos de trabalho escravo, em sua maioria financiados por dinheiro público. Em julho, o governo federal lançou uma nova versão do Minha Casa, Minha Vida, sem regras para evitar novos problemas
Por Piero Locatelli*
 14/08/2023

Ao menos 467 operários foram encontrados em condições de escravidão em obras do programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV), aponta levantamento exclusivo da Repórter Brasil. Os casos ocorreram em 18 empreendimentos – a maioria financiada por dinheiro público – entre 2011 e 2017.

Esses trabalhadores representam 20% do total de 2.351 submetidos à escravidão na construção de edifícios desde 2009, ano de lançamento do programa. Dentre os autuados pelos auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em obras do MCMV, aparecem nomes de peso, como Cury, MRV e Tenda, construtoras com ações na bolsa de valores do Brasil, a B3.

No entanto, esse histórico passou batido na nova versão do MCMV, recriado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em julho, após ser extinto em 2020. As 13 portarias e instruções normativas editadas pelo Ministério das Cidades, responsável pelo programa, não prevêem medidas para evitar novos casos de trabalho escravo.

Lula entrega de moradias do Minha Casa, Minha Vida em Santo Amaro (BA): nova versão do programa não traz regras para evitar trabalho escravo, dizem especialistas (Foto: Joédson Alves/Agência Brasil)

As novas regras deveriam, por exemplo, restringir a contratação de construtoras envolvidas em violações anteriores, afirmam especialistas ouvidos pela reportagem. “É urgente que haja essa vedação”, diz Lys Sobral Cardoso, procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) e membro da Conaete (coordenadoria de erradicação do trabalho escravo).

A maior parte dos casos aconteceu em modalidades do programa voltadas à população de baixa renda, bancadas com verba do Orçamento Geral da União. Mas há também quatro obras com financiamento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), gerido pela Caixa Econômica Federal.

Os relatórios das fiscalizações revelam diversos tipos de irregularidades, como não pagamento de salários, jornadas exaustivas, ausência de equipamentos de segurança e até restrição à livre circulação. A falta de água potável, de banheiros limpos e de locais adequados para armazenar comida nos alojamentos também aparece com frequência nos documentos.

Matheus Viana, chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho do MTE, teme que violações trabalhistas voltem a acontecer com o reaquecimento da economia. “Momentos assim propiciam também aumentos no número de casos de trabalho escravo, ainda mais se a fiscalização por parte do Estado não acompanhar o crescimento da atividade”, analisa.

Cama improvisada em alojamento de trabalhadores de uma obra do Minha Casa Minha Vida em Cuiabá (MT), em 2014 (Foto: MTE)

‘Quarteirização’ e ‘Quinteirização’

A maior parte dos casos de escravidão no Minha Casa, Minha Vida ocorreu em canteiros de obras tocados por trabalhadores de firmas terceirizadas.

Em geral, quando identificam irregularidades, os agentes do MTE responsabilizam não apenas as subcontratadas, mas também as responsáveis pelos empreendimentos. Contudo, é comum que as construtoras acionem a Justiça para anular os autos de infração e transferir às terceirizadas a culpa pelas violações.

Em uma obra da Tenda em Juiz de Fora (MG), em 2014, auditores fiscais apontaram uma “intrincada” rede de prestação de serviços, em que até mesmo as terceirizadas subcontratavam mão-de-obra – as chamadas “quarteirização” e “quinteirização”.

Segundo o relatório da operação, a prática tinha como objetivo “baratear custos e precarizar o trabalho”. Os operários estavam alojados em “condições degradantes”, dormindo em colchões velhos e rasgados, sem cama. Ainda segundo o documento, o grupo foi impedido de retornar para sua região de origem por meio da retenção de salários. “Caso decidissem sair do ‘emprego’, poderiam, mas sem receber seus direitos laborais”, prossegue o texto.

Em julho de 2014, a Tenda chegou a ser incluída na chamada “Lista Suja”. Atualizada semestralmente pelo Ministério do Trabalho e Emprego, ela torna públicos os dados de empregadores autuados por trabalho escravo. Uma vez citadas no cadastro, pessoas físicas e jurídicas podem sofrer restrições de financiamentos de bancos públicos e privados por um período de até dois anos.

Porém, ainda em julho de 2014, a companhia conseguiu uma liminar no Superior Tribunal de Justiça (STJ) para ter seu nome retirado da relação. Em nota, a construtora sustenta que foi responsabilizada de forma indevida e que os autos de infração registrados pela fiscalização foram posteriormente anulados na Justiça. Ainda segundo o posicionamento da empresa, o magistrado responsável pelo caso considerou que os auditores “apontaram infrações de natureza trabalhista que não caracterizaram condição análoga à de escravidão”.

Por meio de nota, a Cury informou que “não tem ligação com o tema, e que opera com pleno respeito aos direitos humanos e trabalhistas”.

“Periodicamente, todos os contratos são avaliados em requisitos trabalhistas, financeiros e técnicos, e contam com cláusulas anticorrupção, sociais e mencionam o código de conduta da companhia”, acrescenta o texto.

A MRV não respondeu à Repórter Brasil. Campeã em empreendimentos do Minha Casa, Minha Vida, a companhia chegou a ser autuada em sete fiscalizações por trabalho escravo – considerando também as obras fora do programa habitacional. No ano passado, a construtora fechou um acordo com o governo federal, prevendo o pagamento de uma indenização de R$ 7 milhões por dano moral coletivo, para que seu nome fosse retirado da “Lista Suja”.

Alojamento de trabalhadores em obra inspecionado por auditores fiscais do Ministério do Trabalho, em 2013, no município de Belford Roxo (RJ) (Foto: MTE)

Terceirização ou fraude?

A retomada do Minha Casa, Minha Vida ocorre após a aprovação irrestrita das terceirizações pela Reforma Trabalhista de 2017. Antes disso, apenas tarefas que não eram consideradas “atividades-fim” de uma empresa, como faxina e vigilância, podiam ser subcontratadas.

Para que uma terceirização seja lícita, a atual legislação prevê, dentre outras exigências, que as prestadoras de serviço tenham condições financeiras para garantir a segurança dos empregados e para arcar com os custos de eventuais demissões. Caso contrário, a terceirização pode ser considerada uma fraude, explica o auditor fiscal Matheus Viana.

Quando a terceirização é lícita, a responsabilização recai sobre a empresa contratada e sobre a contratante. Mas, em caso de fraude, a inspeção faz o resgate dos trabalhadores e caracteriza o vínculo empregatício com a construtora principal, acrescenta Viana.

No entanto, posicionamentos recentes do Supremo Tribunal Federal causam preocupação quanto à responsabilização das empresas que contratam as terceirizadas, afirma Rafael Gomes, procurador do MPT em São Paulo. “Basicamente, só é empregado quem a própria empresa disser que é. Se ela disser que é autônomo, ou terceirizado, e apresentar um contrato fajuto, que não reproduz a realidade, não importa [se existem] provas de fraude”, critica.

Atuação da Caixa contra Trabalho Escravo é insuficiente, diz MPT

Dos 18 empreendimentos pesquisados, 14 foram erguidos com financiamentos da Caixa Econômica Federal, banco público que opera os recursos do FGTS e lidera as concessões de crédito imobiliário no país, com 66% de participação de mercado.

Apesar de a nova legislação do MCMV facilitar a atuação de outras instituições financeiras, a perspectiva é de que a Caixa continue na dianteira. Procurado, o banco informou que suas operações de crédito imobiliário, incluindo as do MCMV, seguem “processos internos” de verificação, incluindo a checagem da lista suja do trabalho escravo (leia a íntegra da resposta).

Em 2019, o MPT chegou a mover uma ação contra a Caixa e outros seis concorrentes com questionamentos às suas políticas socioambientais. “As regras em si não são ruins, mas não há fiscalização do cumprimento, muito menos punição”, diz o procurador Rafael Gomes.

Para entrar em um dos alojamentos de uma obra do MCMV em Belford Roxo (RJ), em 2013, trabalhadores precisavam subir escada de madeira e sem corrimão (Foto: MTE)

A procuradora Lys Sobral Cardoso defende que o governo federal crie diretrizes detalhadas para o MCMV. “Os bancos argumentam, de forma genérica, que já existe política de responsabilidade socioambiental. Mas seria importante [uma regulamentação] direcionada especificamente para o programa”, diz a procuradora.

Procurado, o Ministério das Cidades afirmou, em nota, que a seleção das construtoras aptas a receber crédito é responsabilidade dos bancos que financiam os empreendimentos (leia a íntegra aqui).

*Colaborou Beatriz Vitória

Esta matéria foi atualizada no dia 15/08/2023, às 14h55, para acrescentar o posicionamento da construtora Cury.

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