Laboratórios da América do Sul estão desafiando as gigantes farmacêuticas Pfizer e Moderna na corrida pela vacina de RNA mensageiro (mRNA) contra a Covid-19. Brasil e Argentina lideram os esforços para formar um pólo regional de produção independente, com apoio da Organização Mundial da Saúde (OMS). Mas a disputa por patentes da tecnologia, travada pelas empresas dos Estados Unidos, ameaça o projeto.
As vacinas de mRNA utilizam uma parte do código genético do vírus para levar às células uma “receita” que ensina o sistema imunológico a produzir anticorpos contra a infecção. Essa tecnologia é distinta da adotada pelas vacinas tradicionais, que usam o vírus inteiro inativado (como o imunizante da gripe) ou atenuado (como os de sarampo e pólio) para despertar a reação do corpo.
A principal pesquisa sul-americana pela nova tecnologia é encabeçada por Bio-Manguinhos, laboratório da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ligado ao Ministério da Saúde. Cientistas já vinham desenvolvendo uma vacina própria de RNA antes da pandemia, com foco no tratamento do câncer. O projeto foi redesenhado para a Covid-19, mas os inúmeros pedidos de patente apresentados por Pfizer e Moderna dificultam o desenvolvimento.
A patente é um título que protege a propriedade intelectual de uma invenção, garantindo ao inventor a exclusividade de produzir e vender um produto em determinado país, geralmente por 15 ou 20 anos. Porém, antes mesmo de uma patente ser concedida, a simples apresentação do pedido já afasta outros desenvolvedores em razão de possíveis riscos econômicos.
No segmento farmacêutico, também é possível patentear técnicas e moléculas necessárias à fabricação de um remédio ou vacina.
Com a vacina de mRNA para Covid não é diferente. A Moderna já apresentou 21 solicitações de patentes no mundo todo, sendo 13 só na América Latina, segundo monitoramento realizado por Bio-Manguinhos. Destas, uma já foi concedida no Brasil e outras nove estão em análise no país.
Já a Pfizer solicitou 13 patentes no Brasil, de acordo com o laboratório da Fiocruz. Uma já foi concedida, outra foi recusada e as 11 restantes estão em análise no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual.
Esse elevado número de pedidos de patentes é visto por alguns especialistas como forma de impedir a entrada de novos produtores no mercado. É o que afirma a pesquisadora peruana Ximena Benavides, da Universidade de Yale, em entrevista para esta investigação da Rede de Jornalistas da América Latina por Transparência e Anticorrupção (Red Palta) – coordenada por OjoPúblico (Peru) e na qual participaram Repórter Brasil, Perfil (Argentina), LaBot (Chile), La Silla Vacía (Colombia), Ojoconmipisto (Guatemala), Poder (México) e La Diaria (Uruguay).
Benavides faz parte de um grupo liderado pelo pesquisador Matthew Herder sobre inovação em doenças infecciosas e que atualmente está focado no projeto global de transferência de tecnologia de mRNA da OMS.
O desafio dos cientistas sul-americanos não é propriamente o de quebrar as patentes, mas sim de driblá-las. Ou seja, trata-se de encontrar substâncias e técnicas análogas às usadas pelas gigantes farmacêuticas dos Estados Unidos, mas ainda não patenteadas.
Um caso ilustra como as patentes da Pfizer e da Moderna dificultam a pesquisa da Fiocruz. Essas vacinas adotam em sua fórmula vários tipos de lipídios que permitem ao RNA mensageiro alcançar as células sem sofrer desintegração.
Pfizer e Moderna, contudo, apresentaram patentes para alguns dos lipídios usados na formulação. Até mesmo a proporção de cada lipídio é alvo de patentes. Isso levou Bio-Manguinhos a buscar partículas equivalentes para aplicar na vacina brasileira.
“Nós ficamos paralisados durante pelo menos seis meses porque a gente não encontrava um local que pudesse produzir esses lipídios com boas práticas de fabricação para nossos estudos clínicos e [que fossem] livres para utilização”, explicou Patrícia Neves, pesquisadora de Bio-Manguinhos, durante webinário realizado em agosto sobre o projeto.
A proteína spike, que permite a entrada do patógeno na célula humana, é alvo de disputa entre as farmacêuticas norte-americanas na Justiça dos Estados Unidos. A Moderna alega que a Pfizer violou sua patente ao utilizar a mesma sequência genética da spike em sua formulação.
“Esse foi o primeiro desafio que tivemos para desenvolver a vacina”, diz Neves, explicando que Bio-Manguinhos adotou uma outra sequência da spike no projeto nacional.
O pesquisador Jorge Bermudez, da Escola Nacional de Saúde Pública, também ligada à Fiocruz, afirma que as vacinas de Covid revelaram um cenário ainda mais complexo em relação à propriedade intelectual. Para um mesmo produto, além das patentes das próprias empresas, existem uma série de nanopartículas patenteadas e materiais utilizados na vacina que não pertencem à empresa fabricante.
“A Pfizer não é detentora de todas as patentes de sua vacina. É uma rede de patentes que permite à Pfizer fabricar a vacina”, afirma.
Para o vice-diretor de Inovação de Bio-Manguinhos, Sotiris Missailidis, que coordena o desenvolvimento do imunizante nacional, “essas barreiras patentárias são comuns no desenvolvimento de vacinas e biofármacos”, mas o caso da vacina de mRNA é “especial” em razão do número de patentes submetidas. “Todas as empresas tentam fechar uma parte [da tecnologia] para garantir que possam avançar, mas também para bloquear o avanço dos outros”, avalia.
Procurada, a Pfizer declarou que não registra patentes “com o objetivo de limitar a competição” e que suas solicitações refletem uma “inovação genuína”. A Moderna não respondeu.
Atraso latino-americano
As vacinas de RNA mensageiro são consideradas um marco na história da ciência, em razão de sua elevada eficácia e da facilidade para serem adaptadas às variantes do coronavírus – incluindo versões mais próximas geneticamente da nova cepa Éris, monitorada por autoridades de saúde e que já registrou seus primeiros casos no Brasil.
Essas vacinas dominaram o mercado da Covid-19 e se tornaram preferenciais em países como Brasil, Argentina, Chile e Peru, segundo levantamento da Red Palta. Mas as versões atualizadas dos imunizantes, como as bivalentes, que passaram a ser comercializadas há cerca de um ano, chegaram a poucas nações até o momento.
Dos 51 países e territórios das Américas, apenas 6 adquiriram as doses bivalentes da Pfizer que protegem contra a cepa original e as variantes ômicron BA.4/BA.5, e somente um recebeu as da Moderna, segundo levantamento da Opas.
As doses mais avançadas da tecnologia de mRNA têm como mercado inicial os países de renda mais alta, assim como aconteceu com as doses monovalentes no início da pandemia.
Essas nações, geralmente do norte global, também puderam pagar mais por cada dose: em 2021, por exemplo, enquanto nos Estados Unidos pagava-se entre 19,50 e 24 dólares por cada vacina da Pfizer, no Brasil a negociação era de 10 dólares.
Isso contribuiu para que as empresas farmacêuticas registrassem ganhos recordes nos últimos anos. O lucro da Pfizer saltou de US$ 9,1 bilhões em 2020 para mais de US$ 50 bilhões em 2021 e 2022 somados. Já a Moderna, que até 2020 era apenas uma start-up, atingiu o status de Big Pharma com a sua vacina de mRNA. A companhia registrou prejuízo em 2018, 2019 e 2020, mas teve faturamento superior a US$ 20 bilhões nos últimos dois anos somados.
Procurada, a Pfizer afirmou estar comprometida com o acesso equitativo à sua vacina desde o início da pandemia e disse trabalhar com governos e organizações internacionais, como a Unicef e o mecanismo Covax, “para apoiar programas de fornecimento e doação de vacinas”. A empresa destacou que já entregou 1,8 bilhão de doses a 112 países de baixa e média renda, o que representa 39% das 4,6 bilhões de doses entregues no total.
Reação
A América Latina e o Caribe foram uma das regiões mais afetadas pela Covid durante a emergência sanitária. Em julho de 2022, a região concentrava 13% dos casos de coronavírus documentados e 27% das mortes registradas até então, de acordo com análise do Banco Mundial, apesar de representar apenas 8,5% da população mundial.
Diante da necessidade de vacinas devido à pandemia, alguns laboratórios da região assumiram iniciativas de produção local. Cuba foi o primeiro país a alcançar um imunizante 100% latino-americano, enquanto na Argentina dois laboratórios se envolveram na produção da vacina da Astrazeneca e na da russa SputinikV.
Já no Brasil, as principais apostas foram a da vacina da Astrazeneca, produzida pela Fiocruz, e a da Coronavac, por Butantan.
Embora tenham sido fundamentais para o controle da propagação do coronavírus e para salvar milhares de vidas nos primeiros meses de vacinação, essas vacinas perderam o protagonismo para a vacina da Pfizer, que é mais eficaz, principalmente em idosos e pessoas imunossuprimidas, e tem capacidade maior de evitar o agravamento da doença nessas populações.
“Essas vacinas foram primordiais para o Brasil. Mas a vacina da Pfizer dominou o mercado na sequência. Trata-se de uma evolução natural das tecnologias de vacinas”, explica José David Urbaez, presidente da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal.
Hubs da OMS
Para difundir a tecnologia de mRNA, a OMS lançou em 2021 um modelo de transferência de tecnologia entre laboratórios de países emergentes.
Pfizer e Moderna não aceitaram participar da empreitada.
Consultada, a Pfizer confirmou que não está envolvida no hub da OMS, mas afirmou “saudar com satisfação as iniciativas voluntárias” para promover o acesso equitativo às vacinas e terapias contra a Covid. A Moderna não fez declarações.
A Pfizer afirmou ainda que se comprometeu com o acesso equitativo à sua vacina desde o início da pandemia e que apoia programas de fornecimento e doação de vacinas, como a Covax. A empresa destacou que já entregou 1,8 bilhão de doses para 112 países de baixa e média renda, de um total de 4,6 bilhões de doses entregues no total.
A África do Sul lidera a iniciativa da OMS, por meio do laboratório Afrigen. O hub já conta com laboratórios de 15 países, incluindo Brasil e Argentina.
A Fiocruz foi escolhida para criar uma vacina livre de royalties e cuja tecnologia seja compartilhada a outros produtores regionais. O plano conta com a participação do laboratório argentino Sinergium, que começou o desenvolvimento “do zero”, segundo disse em nota.
Os projetos sul-africano e brasileiro estão mais avançados. A Afrigen já produziu os primeiros lotes da vacina, que é baseada na fórmula da Moderna.
Já a vacina brasileira está atualmente em fase de estudos pré-clínicos e em breve serão realizados os testes em hamsters e exames toxicológicos. Se a vacina superar essas fases, os testes em humanos devem começar no início de 2024. A fabricação dos primeiros lotes da vacina nacional para os testes clínicos está prevista para ocorrer ainda em 2023.
A falta de compartilhamento entre os projetos levanta dúvidas se haverá uma real transferência de tecnologia, observa Benavides, de Yale. “Não está claro se o projeto de transferência de tecnologia será bem-sucedido, uma vez que foi modificado mais de uma vez, redirecionando seus esforços à medida que a pandemia se desenvolvia.”
Os especialistas alertam que dominar essa tecnologia é fundamental para o enfrentamento de diversas outras doenças, como para o tratamento do câncer. “Ela vai trazer vários novos produtos ao mercado, que até agora não tem sido possível com as tecnologias disponíveis”, diz Misailidis, de Bio-Manguinhos.
“É importante dominar a produção porque nos oferece vantagens em termos de preparação para epidemias ou pandemias e capacidade de atualizar rapidamente vacinas como da própria Covid e da influenza”, diz.
Além disso, ele ressalta que uma vacina brasileira poderá custar até 10 vezes menos do que os preços praticados por Pfizer e Moderna.
Esta reportagem faz parte da série #VacunasLatam. Um projeto de investigação da Rede de Jornalistas da América Latina para a Transparência e Anticorrupção (Red PALTA), coordenada por OjoPúblico (Peru).